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Reflexos fiscais-penais da pandemia: Não pagamento do ICMS deve preocupar o empreendedor?

Juridicamente, para que uma conduta seja considerada criminosa é preciso que esta seja uma ação ou omissão típica (enquadrar-se em um conceito legal de ilícito), antijurídica (contrariar a lei) e culpável (quão reprovável é a conduta).

17/4/2020

Em um cenário de isolamento social, o impacto nos negócios é gigante, mas nem por isso os tributos deixam de ser devidos. Alarmista ou realista, não há quem negue os efeitos econômicos da pandemia da covid-19.

E quem terá fôlego para suportar a já asfixiante carga tributária no Brasil, diante das complexidades atuais?

No meio fiscal, diversas medidas foram tomadas pelo Poder Público como forma de diminuir os impactos financeiros da pandemia global (descontos, prorrogações de prazo, diferimentos e linhas de crédito). Todos remédios apontando para uma só doença: falta de liquidez.

Sem saber a duração de incertezas causadas pelo cenário e da consequente crise financeira, tal como vacinas e máscaras, é possível que os remédios financeiros faltem aos empreendedores enfermos.

Na falta de caixa para liquidar todas as obrigações, decisões difíceis precisarão ser tomadas. E, se esse dia chegar, se fornecedores e mão-de-obra são desembolsos que geram receitas, tributos não o fazem.

Isso não quer dizer, é claro, que deixar de pagar tributos não traga consequências que impactem a continuidade do negócio e, mais importante, que não podem gerar responsabilidade para os seus respectivos sócios.

É justamente sobre as consequências para os sócios que se pretende propor uma reflexão.

O ano passado acabou com o que para muitos operadores do direito foi uma bomba: a posição do Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334. Nele ficou definido que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no artigo 2º, inciso II, da Lei nº. 8.137/90”.

Traduzindo: não pagar ICMS pode constituir crime sujeito à pena que pode variar entre seis meses e dois anos de medida restritiva de liberdade. Deixar de pagar o imposto, incidente sobre a venda, repassado no preço, obrigação do varejo (proibido de funcionar), de bares e restaurantes (fechados pela pandemia), em tese, poderia motivar uma persecução criminal.

Não é que concordemos com este posicionamento (é absolutamente o oposto), mas ele reforça o cenário de incertezas vivido pelo empreendedor e é preciso discutir seus efeitos em tempos de crise. É necessário adotar como premissa que o posicionamento firmado no RHC 163.334 é válido e vigente.

Pode então o empreendedor, impedido de funcionar plenamente por conta da covid-19, ser responsabilizado criminalmente por eventual não pagamento de ICMS?

Juridicamente, para que uma conduta seja considerada criminosa é preciso que esta seja uma ação ou omissão típica (enquadrar-se em um conceito legal de ilícito), antijurídica (contrariar a lei) e culpável (quão reprovável é a conduta).

Voltemos, pois, à análise do não pagamento do ICMS em um cenário de pandemia.

Sobre tipicidade, é preciso retomar o conceito do min. Barroso, que conduziu a posição do STF: “para que seja reconhecida a tipicidade de determinada conduta impende haver um nível de reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso”.

Quem reprovará o não recolhimento por empreendedor com caixa sufocado em tempos de covid-19? Presume-se que ninguém, e, assim sendo, não há que se falar em fato típico. Ademais, a suposta tipicidade demandaria dolo de apropriação por parte do agente, o que não é possível pressupor nesse cenário.

Seria antijurídica uma conduta fruto de atenção à lei? A resposta precisa ser negativa. Os estabelecimentos estão fechados em virtude de normas editadas pelos Estados. Em última análise, se não houve receita suficiente para quitar obrigações, é possível dizer que isso se deu por respeito a um mandamento legal.

Haveria culpabilidade no não pagamento do ICMS? Não há alternativa para o empreendedor em tempos de crise. Em termo jurídicos, denominamos “inexigibilidade de conduta diversa”.

Logo, se o cenário de pandemia impõe ao empreendedor a difícil missão de escolher entre suas obrigações, este já possui motivos suficientes para preocupação. Responsabilização criminal não pode ser mais um motivo.

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*Rafael Dinoá é sócio do escritório Rennó, Penteado, Reis e Sampaio Advogados.

*Bernardo Joanes é sócio do escritório Rennó, Penteado, Reis e Sampaio Advogados.

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