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Prisão em tempo de pandemia

Trata-se de ato de cunho autoritário, que não encontra qualquer ressonância típica na lei excepcional editada pelo governo.

19/4/2020

A pandemia da covid-19 vem provocando um verdadeiro flagelo à população mundial, ceifando inúmeras vidas. Com um efeito devastador vai acumulando vários outros transtornos em todas as áreas das atividades humanas, muitas delas limitadas até mesmo de realizar suas tarefas profissionais.

Atingiu também, de forma inevitável, o Direito em seus diversos meios de expressão, como o tributário, médico, contratual, trabalhista, consumidor e muitos outros, até mesmo o Direito Penal que, na interpretação de alguns governantes, serve de apoio para lançar mão da prisão e fazer valer o isolamento determinado em lei, incumbindo a Polícia Militar ou a Guarda Municipal para exercer tal função. Quando se fala em prisão as pessoas ficam de certa forma intimidadas e, principalmente, quando se trata de prisão em flagrante delito, em que o agente é conduzido perante a autoridade policial, iniciando aí, com a lavratura do auto flagrancial, uma extensa peregrinação policial e processual.

Não é bem assim. Trata-se de uma interpretação equivocada e sem qualquer sustentação jurídica. Pode até ser que a intenção do governante seja louvável tendo em vista que o isolamento social não vem sendo respeitado pela população, ultrapassando, e em muito, o nível de segurança recomendado pela Organização Mundial da Saúde, mas aplicar a pena de prisão é um ataque que esbarra na ilegalidade.

Assim, merece um rápido cotejo o conteúdo legislativo recente a respeito da matéria penal. O Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia do coronavírus pela Organização Mundial da Saúde. Prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do estado endêmico. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, que interessam ao presente estudo, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Paralelamente foi editada, após a decretação do estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), a Portaria 356, de 11 de março de 2020, que regulamenta a operacionalização da lei acima, em casos de isolamento ou quarentena recomendados pela vigilância epidemiológica.

 Após, nova portaria foi assinada, pelos Ministros da Saúde e Justiça, que leva o nº 5/2020, disciplinando que, em casos de descumprimento das determinações impostas pelos órgãos públicos, o responsável poderá incorrer nas penas do artigo 268 (infração de medida sanitária preventiva) e do artigo 330 (desobediência), ambos do Código Penal.

De tudo o que foi dito, resume-se em texto corrente que a medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local. Deve ser prescrita por médico ou por recomendação do agente de saúde, devendo ser cumprida preferencialmente em domicílio, mas nada impede que seja em hospital público ou privado, conforme recomendação médica. Importante observar que, quando feita pelo poder público, o paciente deve ser comunicado a respeito da compulsoriedade da medida, vez que originariamente é uma recomendação e não lei cogente.

A medida de quarentena, por sua vez, tem alcance limitado à pessoa que está suspeita de contaminação e será decretada por ato administrativo formal pelo prazo até de 40 dias, podendo ser ampliado se for necessário para reduzir a transmissão comunitária e garantir a manutenção dos serviços de saúde no território.

Somente nestes casos, excepcionalmente, ocorrerá a intervenção mínima do Direito Penal, como verdadeira ultima ratio. Tanto é que a Portaria Interministerial foi incisiva em esclarecer que os profissionais de saúde, os dirigentes da administração hospitalar e os agentes de vigilância epidemiológica poderão solicitar o auxílio de força policial nos casos de recusa ou desobediência por parte de pessoa submetida às medidas previstas. O mesmo diploma legal deixou bem claro que, na realidade, não se trata de providência policial e sim do órgão de saúde quando enfatiza que, no exercício do poder de polícia administrativa, a autoridade policial poderá encaminhar o agente à sua residência ou estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas no art. 3º lei 13.979, de 2020, conforme determinação das autoridades sanitárias.

Além de tudo, se presentes as provas de descumprimento por parte do agente, mesmo assim não será levado à prisão se assinar o termo de compromisso de comparecer a todos os atos processuais.

Por derradeiro, o Supremo Tribunal Federal, analisando a ADI 6.341, que questionava a Medida Provisória 926, de março de 2020, reafirmou o poder dos governadores e prefeitos para determinarem as medidas restritivas adequadas ao enfrentamento do coronavírus, assim como definir quais as atividades serão suspensas e os serviços que não serão interrompidos, em razão de seu peculiar interesse, prevalecendo, desta forma, a tese da competência concorrente.

Desta forma, a eventual promessa de prisão fica distante da realidade presente. Trata-se de ato de cunho autoritário, que não encontra qualquer ressonância típica na lei excepcional editada pelo governo. Permanecem intactos, portanto, os direitos consagrados nas cláusulas pétreas da Constituição Federal. Assim, o cidadão carrega consigo o direito de ir e vir (jus eundi et ambulandi), no âmbito de sua mais ampla liberdade.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp e advogado.

 

 

 

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