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Quarentena com o inimigo: o aumento dos índices de violência doméstica em tempos de Covid-19

Mesmo diante de medidas sanitárias excepcionais (e, particularmente, no caso da violência doméstica), o Estado deve se organizar para o atendimento de urgências sociais.

16/4/2020

A população mundial acompanha diariamente com espanto e temor o aumento vertiginoso dos números de contaminações e mortes por Covid-19. No último dia de 2019, após registros de casos de uma pneumonia desconhecida na China, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o alerta da doença.

O novo Coronavírus teve sua primeira confirmação no Brasil no dia 26 de fevereiro. Em menos de dois meses, conta com 28.320 casos confirmados e 1.736 mortes (segundo informações atualizadas pelo Ministério da Saúde até às 19h08 de 15 de abril).

Diante deste cenário de incertezas, os governos de diferentes níveis da federação adotaram medidas extremas recomendadas pelo Ministério da Saúde e pela OMS, incluindo a quarentena.

Reconhecido, em todo o mundo, como essencial para combater a rápida disseminação do vírus, o confinamento vem revelando diversos comportamentos sociais. Dentre eles, um em especial foi previsto por estudiosos:  a tendência de aumento dos índices de violência doméstica e de feminicídio.

Corroborando essa observação, o plantão judiciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informou no dia 23 de março ter registrado um aumento de 50% no número de denúncias de vítimas de violência doméstica e familiar.

Este aumento não causa surpresa: a violência contra a mulher possui características próprias que nos fazem compreender facilmente a dinâmica do crime e nos levam à conclusão de que a permanência por longos períodos no lar é fator fundamental para que o número de vítimas aumente. A violência doméstica é um crime praticado predominantemente em casa pelo marido, companheiro, namorado, filho e pai (ordinariamente, sujeitos ativos do crime).

Estamos, portanto, diante de um crime afetivo, familiar. De acordo com a ONU Mulheres, o contexto de emergência aumenta os riscos de violência contra mulheres e meninas, especialmente a violência doméstica, em razão das tensões em casa e, também, do isolamento das mulheres. E ainda adverte:  

“As sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena. O impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para deixar um parceiro violento, além de mais risco à exploração sexual com fins comerciais.” 

O start do ciclo de violência se dá exatamente com as tensões. Esta primeira fase é identificada pela impaciência, desrespeito, irritabilidade e acessos de raiva por parte do agressor diante de situações banais, insignificantes. Neste momento, o homem costuma reagir gritando e humilhando a vítima.

Ainda nesta etapa inicial, uma das maiores dificuldades da vítima é de se perceber no contexto de violência e isso se dá, comumente, pelo fato dela evoluir gradualmente. É muito comum também que a mulher minimize o comportamento do parceiro e se responsabilize, como se tivesse contribuído para a violência.

A fase seguinte se caracteriza pela materialização das tensões anteriores em agressões física, psicológica, sexual, moral e/ou patrimonial. Esta etapa é conhecida por dois possíveis comportamentos da vítima: a inércia, pois até então não se percebia como tal e se mantém no contexto de violência; ou pela tomada de decisão em pedir ajuda e denunciar.

Quando não há a ruptura do ciclo de violência na segunda fase, avança-se para a terceira que consiste no arrependimento temporário por parte daquele que violenta. Na “lua de mel”, nomenclatura muito utilizada para identificar essa fase, o homem retoma o comportamento carinhoso, cuidadoso, disposto a mudar e a fazer valer uma reconciliação.

Normalmente, esgotado o momento de arrependimento, o ciclo recomeça e se mantém por meses e anos de forma gradual. Ao ser naturalizada a violência pela manutenção do relacionamento, o espaço entre as agressões diminui e a frequência delas aumenta.

Em tempos de isolamento social e de quarentena, com a permanência no lar em tempo integral com o agressor, o ciclo é intensificado e a ordem lógica se perde, as fases se confundem e se completam numa velocidade excepcional, tal qual a pandemia que assola o mundo inteiro.

A consequência última da violência doméstica é o feminicídio, a morte de mulheres em razão do gênero. Este crime revela que o silêncio, seja das mulheres agredidas, seja da população, propicia a escalada da violência e o consequente assassinato.

Em que pese a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) ser uma das leis mais conhecidas pela população e uma das mais eficazes, a tendência das mulheres (e de todas as pessoas que se identificam com o gênero feminino e que sofram violência em razão disto) ainda é suportar um longo período dentro de casa até pedir ajuda.

A demora em denunciar a violência sofrida, pelo temor da incompreensão dos amigos e familiares e da eventual falta de credibilidade perante a Justiça e demais autoridades, além da dependência psicológica e econômica do parceiro, podem levá-la à morte.

Mesmo após a decisão de registrar a ocorrência do crime, muitas mulheres tendem a se retratar, por vários motivos, inclusive pelo ônus que o processo penal lhe impõe. Desta forma, se mostram imprescindíveis tanto o apoio na identificação do crime e no ato de denunciar, quanto uma rede de apoio para que esta mulher siga em frente, suporte o processo e a verdade dos fatos seja apurada.

Ocorre que o receio de se expor ao novo Coronavírus se torna mais um obstáculo à denúncia do crime: a quarentena dificulta e muitas vezes impede que as mulheres consigam se desvencilhar das situações de violência e tenham acesso às autoridades.

Como consequência da dificuldade de contatar as autoridades, é possível que os índices de denúncia diminuam e isso cause a equivocada impressão de que está havendo uma redução nos crimes contra as mulheres.

Portanto, é imprescindível que as autoridades se mantenham disponíveis e em alerta e que a população, vizinhos, familiares compreendam que não se trata de um problema particular, mas sim de um problema de todos e todas e sejam as vozes daquelas que não conseguem falar.

Os principais canais de denúncia são o 190 (Policia Militar) e o 180 (Central de Atendimento à Mulher). Além deles, também é possível contar com a “Patrulha Maria da Penha – Guardiões da Vida”, programa lançado pela Secretaria de Estado de Polícia Militar.

Lembrando que o momento impôs a contenção da prestação jurisdicional, limitada ao atendimento virtual e a regimes de excepcionalidade, o que acaba por agravar o quadro em razão da convivência compulsória. 

Trata-se de um cenário para o qual o Poder Judiciário deve dirigir atenção especial, de forma que as respostas aos casos de violência doméstica, que já se apresentam crescentes, sejam rápidas e eficazes, inibindo o ânimo dos eventuais agressores e a sensação de que estão à salvo das medidas legais cabíveis.

Mesmo diante de medidas sanitárias excepcionais (e, particularmente, no caso da violência doméstica), o Estado deve se organizar para o atendimento de urgências sociais.  Não há dúvidas de que a prioridade deve ser a de salvar vidas, mas não apenas aquelas ameaçadas pelos efeitos diretos da contaminação, como também as das potenciais vítimas dos seus efeitos colaterais.

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*Amanda Magalhães é advogada criminalista. Sócia do escritório de Advocacia Azevedo & Magalhães. Pós-graduada em Direito Constitucional. Presidente da Comissão OAB Jovem da Seccional do Rio de Janeiro (triênio 2019-2021). Presidente da Comissão Criminal do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estudo Jurídico (IBRAPEJ). Conselheira e Delegada de Prerrogativas da 13ª Subseção da OAB/RJ (triênio 2019-2021). Membro da Comissão OAB Mulher da Seccional do Rio de Janeiro. 

 

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