1) Introdução
No Livro XII da Odisseia, Homero narra uma das passagens mais interessantes da saga do retorno de Ulisses para Ítaca. Pronto a reencontrar seu reino, seu lar e, principalmente, sua amada Penélope, soube que o trajeto marítimo envolvia as proximidades da ilha rochosa de Capri, onde – diziam – habitavam sereias que, com seu canto sedutor, já tinham provocado diversos naufrágios. Para evitar o encantamento, Ulisses decidiu tapar os ouvidos de seus argonautas com cera. Mas o herói não seguiu o mesmo caminho e preferiu que fosse amarrado ao mastro de seu navio. Homero conta que Ulisses, então, ouviu o canto de perdição, contorceu-se de vontades, mas só foi desatado quando passaram da ilha.
Daí surgiu o conselho de “não cair no canto da sereia”. Ulisses é o herói de verdade, sem superpoderes, que sabe da própria fragilidade. E é esse conhecimento que o torna mais forte. E é com essa alegoria que o ministro Ricardo Lewandowski inicia sua decisão em medida cautelar deferida nos autos da ADI 6.363/20: tempos excepcionais exigem, sim, medidas excepcionais; mas não podem justificar a insensatez constitucional, nem tampouco a tábula rasa dos direitos fundamentais, âncora primeira para as águas profundas do autoritarismo.
Eis o que buscou a decisão, em meio à grita generalizada pela flexibilização de garantias e/ou pela incondicional circunflexão à “reserva do possível”: assegurar o primado da Constituição, em sua mínima literalidade, mesmo nos momentos mais difíceis. Segue, no particular, uma das mais salutares tradições do constitucionalismo universal, historicamente parametrizada em Marbury v. Madison (1803). E merece encômios por isso: em democracias consolidadas, espera-se que maiorias ocasionais e urgências legiferantes não seduzam a sociedade civil, ao ponto de abandono de seus valores constitucionalmente positivados. Isto foi melhor dito pelo próprio Ministro Lewandowski, na resposta aos embargos declaratórios interpostos pela Advocacia Geral da União:
“Ora, a experiência tem demonstrado que justamente nos momentos de adversidade é que se deve conferir a máxima efetividade às normas constitucionais, sob pena de graves e, não raro, irrecuperáveis retrocessos.De forma tristemente recorrente, a história da humanidade tem revelado que, precisamente nessas ocasiões, surge a tentação de suprimir – antes mesmo de quaisquer outras providências – direitos arduamente conquistados ao longo de lutas multisseculares. Primeiro, direitos coletivos, depois sociais e, por fim, individuais. Na sequência, mergulha-se no caos!
Em Ulisses, o aceite do canto imediato destruiria Argos. Na decisão liminar, assenta-se que o erodir de direitos fundamentais por medida provisória pode pavimentar veredas perigosas. Eis o nosso ponto de partida.
Outros pontos de partida podem, é claro, conduzir a portos distintos; nem todos exatamente seguros. Vejamos.
Após a referida decisão liminar, aclarada pelos embargos de declaração julgados em 13 de abril p.p., veio a lume o parecer da notável professora Ana Paula de Barcellos (UERJ), sob a solicitação da Federação Nacional dos Bancos, a respeito da constitucionalidade da Medida Provisória nº 936/20, especialmente quanto à autorização de acordos individuais entre trabalhador e patrão para redução salarial e suspensão do contrato de trabalho (que é, igualmente, o fulcro da ADI 6.363). E, por equívocos de premissas, o que se apresenta no texto não raro insinua algum involuntário sofisma (entendendo-se como tal a “discussão argumentativa que supostamente demonstra a verdade, contudo possui em sua essência características ilógicas”, segundo os léxicos).
Vejamos, pois, com vagar, qual “atos” de uma peça teatral, inclusive para um pertinente e respeitoso contraponto, a demonstrar que, neste momento, o melhor horizonte é mesmo o da esperada confirmação da decisão monocrática do Min. Ricardo Lewandowski – se não o da sua expansão – pelo Plenário do STF, na histórica sessão do dia de amanhã (6/4/20).
1. Primeiro ato: “a preferência da norma coletiva não obsta o exercício das competências legislativas da União”
Já nas primeiras teses que desenha, o referido parecer diz textualmente:
“A preferência da norma coletiva, porém, não significa exclusividade, nem obsta o exercício das competências legislativas atribuídas pela Constituição ao Poder Público. Do contrário, nem mesmo a CLT seria válida – e o art. 22, I, da Carta, ao cuidar do Direito do Trabalho, não teria qualquer sentido prático. Como parece evidente, não decorre da preferência atribuída pela Constituição à negociação coletiva que a aplicação das normas estatais que afetem relações trabalhistas dependa de prévia negociação coletiva” (grifo nosso).
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É evidente que as convenções e os acordos coletivos de trabalho podem estatuir direitos trabalhistas em patamar superior ao previsto nas normas heterônomas estatais; é essa, aliás, a sua maior finalidade, nos termos da Convenção154 da OIT (que foi ratificada pelo Brasil – Decreto Presidencial 1.256 /94 – e indiretamente também está sob risco, a valer a tese da prevalência das negociações individuais). E é certo, também, que, de acordo com a visão do próprio STF, manifestada no RE 590.415 (Tema 152 da repercussão geral), convenções e acordos coletivos de trabalho podem transigir coletivamente sobre direitos que não sejam de indisponibilidade absoluta.
O objetivo da autora, no trecho transcrito, seria demonstrar que não apenas as normas coletivas, mas também a legislação estatal, poderia disciplinar as relações de trabalho. A afirmação é correta, mas a partir dela não se pode, sem manifesto e equivocado salto lógico, sustentar que a MP nº 936/20 - ou que qualquer conteúdo legislado - seja constitucionalmente válido. Ora, o que define se determinada lei ou medida provisória é ou não válida não é a sua possibilidade de coexistência com normas coletivas; é, ao revés, na melhor concepção kelseniana, a sua capacidade de extrair, da nova jurídica hierarquicamente superior, o seu fundamento de validade. Logo – perdoe-se o truísmo – a sua conformidade formal e material com... a Constituição! Como texto fundante de toda a ordem normativa nacional, a Carta de 1988 deixa princípios que exercitam função normogenética (J. J. GOMES CANOTILHO) em relação a todas as fontes formais de Direito admitidas pelo sistema jurídico brasileiro, o que evidentemente inclui as medidas provisórias e as próprias normas coletivas. Nem esses, nem aquelas podem dispor contrariamente à literalidade do texto constitucional, mesmo em quadras de severa excepcionalidade.
A decisão liminar da ADI 6.363/DF reafirma esse postulado basilar: para que tenham condições de aplicabilidade, normas coletivas e legislação estatal não podem se esquivar da garantia social instaurada no artigo 7º, VI da CRFB: reduções de salários não podem ser operadas por acordos individuais “autônomos”, sem a necessária intervenção sindical (que, em homenagem à excepcionalidade do momento, admitiu-se em caráter superveniente e complementar – o que, registre-se, já substitui a lógica natural da “negociação”, própria da Convenção OIT 154, pela lógica da “ratificação”; e a possibilidade dessa substituição também deverá ser objeto de análise pelo Plenário). De todo modo, mantém-se minimamente íntegro o fio de Ariadne que deve conectar toda fonte formal do Direito ao texto constitucional em vigor, tendo sobretudo em vista a tendencial hipossuficiência do trabalhador (e, logo, a sua vulnerabilidade a ensejos de coerção econômica).
2) Segundo ato: a MP é fruto da competência legislativa prevista no art. 21, XVIII, da Constituição de 1988, podendo dispor sobre Direito do Trabalho em contextos de calamidade pública
Voltando ao parecer sob exame, pode-se ler na sequência:
“A MP nº 936/2020 não foi editada apenas como exercício ordinário das competências legislativas de dispor sobre Direito do Trabalho e sobre Seguridade Social – embora também se reconduza a elas –, mas no contexto da realização de uma outra competência da União, prevista pela Constituição no art. 21, XVIII. O dispositivo prevê que compete à União ‘planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações’”.
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O argumento, aqui, parte da premissa correta de que a União tem competência para planejar e promover defesa permanente contra calamidades públicas; e de que, a par disso, tem também competência privativa para legislar sobre Direito do Trabalho (art. 22, I, CRFB), sem qualquer limitação material no particular (art. 62, §1º, I, “b”, “a contrario”). A partir disso, tenta-se justificar a constitucionalidade “in totum” da MP nº 936/20.
Parece-nos, todavia, que nenhum dispositivo constitucional pode ser aplicado de forma ilhada, absolvido de diálogo, contexto e respeito com o conjunto da Constituição. Eis a advertência feita pelo próprio Ministro Lewandowski na resposta aos embargos declaratórios (supra): a competência para legislar promovendo a defesa contra calamidades não autoriza, “per se”, a relativização de direitos e garantias fundamentais. Se assim fosse, qualquer situação factual de desastre, declarada administrativamente como de “calamidade”, catapultaria a ordem normativa para um putativo estado de sítio ou de defesa, os quais – como bem se sabe – dependem de firme autorização pelo Parlamento.
Aliás, interessa dizer que nenhum “estado de calamidade” parece autorizar o alijamento sistemático de sindicatos nas negociações tendentes à redução de salários (salário/mês, entenda-se bem, porque é a ele que se referem os incisos IV e VI do art. 7º da Constituição, mercê do debate legislativo travado ao tempo da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988), mesmo porque a eliminação rasa do diálogo social, privilegiando as negociações individuais, é algo que não se fez nem ao menos nos albores da ditadura militar: já a Lei 4.923/1965, em seu art. 2º, exigia o “prévio acordo com a entidade sindical” para o rebaixamento de jornada e salários. Esse foi, igualmente, o limite da possibilidade jurídica instaurada com o inciso VI do art. 7º da Constituição, como exceção à garantia social da irredutibilidade de salários. E, por fim, mesmo nas hipóteses constitucionais de excepcionalidade social – como são os precitados estados de sítio e defesa (CF, arts. 136 e 137), as restrições admissíveis constam de rol exauriente (“[...] só poderão ser tomadas [...]”) e dizem respeito a direitos e garantias diversos daqueles previstos no art. 7º da Constituição: pode-se, sim, restringir o direito de reunião ou o sigilo de correspondência, p. ex.; nada está dito, porém, quanto à relativização de direitos e garantias sociais. Logo, se é certo que as hipóteses constitucionais de suspensão ou constrição de direitos fundamentais desafiam necessária interpretação restritiva – “odiosa restringenda, favorabilia amplianda” - , não seria jamais possível estender indiscriminadamente a tese da restrição à hipótese do art. 7º, VI (“irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”). Isso é tanto mais verdadeiro em caso de “estado de calamidade pública”, que, a propósito, não deita raízes na Constituição da República, mas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000, art. 65). Veja-se, a propósito, nota pública recentemente emitida por diversas entidades do mundo do trabalho (incluindo todas as principais centrais sindicais brasileiras e associações civis e de classe como a ANPT – dos membros do Ministério Público do Trabalho –, a Abrat – dos advogados trabalhistas -, o Sinait – dos auditores fiscais –, a AJD – de magistrados –, a Renapedts – de docentes e discentes universitários –, etc.), disponível em https://migalhas.uol.com.br/quentes/324523/entidades-trabalhistas-pedem-ao-stf-inconstitucionalidade-das-mps-927-e-936.
Logo, a circunstância de a União deter competências legislativas para a matéria e o episódio não guarda qualquer relação necessária com a constitucionalidade da Medida Provisório 936, especialmente no que conflita com o art. 7º, VI, da Constituição. As competências derivadas dos arts. 21, XVIII, e 22, I, da CF não são panaceia contra as inconstitucionalidades apontadas na ADI 6.363.
3) Terceiro ato: “somente as autoridades públicas podem representar todo o povo brasileiro”
Na mesma ensancha, o parecer afirma:
“Não se trata de crise que afeta determinada categoria de trabalhadores, cujos interesses podem ser representados e defendidos por seu sindicato, mas dos interesses da sociedade como um todo. E só quem é habilitado para representar todo o povo brasileiro são as autoridades públicas – no caso, os representantes populares nos Poderes Legislativo e Executivo da União”.
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O argumento parte da correta premissa de que a crise da Covid-19 afeta a sociedade como um todo (e não apenas uma ou mais categorias profissionais); e, partir daí, extrai a ilógica conclusão de que somente as autoridades públicas poderiam cuidar dos interesses coletivos envolvidos, como se não fosse papel da negociação coletiva resolver, com primazia, os aspectos trabalhistas envolvidos. Esse foi, inclusive, o grande “mote” para a Reforma Trabalhista de 2017 (lei 13.467/17), a ganhar distensão tamanha que engendrou, inclusive, algumas sérias inconstitucionalidades decorrentes da submissão de direitos de absoluta indisponibilidade – como aqueles ligados à saúde e à segurança do trabalho – à autonomia privada coletiva (que também não pode tudo). É o que se deu, e.g., com a “afirmação” do parágrafo único do art. 611-B da CLT (colidente com a norma do art. 7º, XXII, da Constituição e com duzentos anos de história do Direito do Trabalho).
A atual crise sanitária e econômica exige inapelavelmente a intensificação do diálogo social tripartite; não a sua erosão. Neste momento, mais do que antes, urge buscar medidas concertadas entre Poder Público e sociedade civil organizada. Ademais, o argumento expedindo no parecer termina por insinuar, involuntariamente, um certo matiz autoritário, desconsiderando a necessidade de diálogo entre Estado, sindicatos de trabalhadores e entidades de empregadores, nos exatos termos das normas internacionais do trabalho. Eis outro aspecto que não se resolve amanhã, no julgamento das cautelares requeridas nas ADIs 6.342 e 6.363: a questão da convencionalidade das MPs 927 e 936/20, notadamente na inflexão que promovem em favor dos acordos trabalhistas individuais, face ao teor das Convenções ns. 98, 144 e 154 da Organização Internacional do Trabalho (entre outras). Todas elas, ratificadas, aprovadas e promulgadas pelo Brasil, detém força de lei no ordenamento jurídico interno; ou quiçá força supralegal, a valer a tese do RE 466.343 e subsequentes (Tema 60 da Repercussão Geral), já que são convenções internacionais destinadas à regulação e à promoção de direitos humanos ditos de segunda “geração” (ou “dimensão”).
Daí que o espaço da autonomia privada coletiva não pode ser expungido de modo tão simples, à base das “canetadas”. Ademais, se não se mantivesse qualquer espaço para atuação normativa que não fosse a emanada de autoridades estatais, os próprios acordos individuais preconizados na MP 936 perderiam qualquer função.
4) Quarto ato: “não há tempo para esperar a negociação coletiva”, que demoraria “vários anos”, considerando o número de sindicatos no Brasil
Lê-se ainda no parecer:
“[...] a pergunta a ser respondida é a seguinte: a crise em curso poderia ser enfrentada aguardando-se que, por meio de negociações coletivas, os empregadores e empregados chegassem a soluções capazes de evitar o desemprego em massa? A resposta, infelizmente, é negativa. Já se expôs acima que, considerada a quantidade de sindicatos de empregados e de empresas com empregados, seriam necessários vários anos para a conclusão de negociações coletivas envolvendo todos os empregadores e empregados do país”.
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Aqui, parte-se de premissa flagrantemente equivocada e chega-se a conclusão igualmente inexata. A decisão do Min. Lewandowski é bem clara ao determinar que “são válidos e legítimos os acordos individuais celebrados na forma da MP 936/2020, os quais produzem efeitos imediatos (...)”, ressalvando “convenção ou acordo coletivo posteriormente firmados, os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem, observando-se o princípio da norma mais favorável. Na inércia do sindicato, subsistirão integralmente os acordos individuais tal como pactuados originalmente pelas partes” (grifo nosso). Desse modo, não há necessidade de “aguardar” as negociações coletivas para viabilizar a realização do acordo individual de imediato, o qual gerará todos os seus efeitos, se e quando sobrevier norma coletiva em sentido diverso.
De outra parte, o parecer calcula que seriam necessários “vários anos” até se encerrarem as negociações coletivas a respeito. No entanto, a celebração de convenções coletivas é corriqueira na realidade trabalhista brasileira, e, havendo participação de federações ou confederações de trabalhadores e de empregadores (ou de sindicatos de base nacional, como o dos aeronautas), soluciona-se o conflito coletivo em todo o âmbito nacional, para uma determinada categoria. Tampouco a estatística do tempo médio de celebração de convenções e acordos coletivos de trabalho no Brasil sinaliza a necessidade de “vários anos”. E tanto menos as regras vigentes de isolamento social impõem dificuldades insuportáveis para a negociação coletiva, mercê do que terminou de regular – em boa hora e com bom caminho – a própria Medida Provisória n. 936/20, ao reduzir prazos legais e estabelecer meios eletrônicos de convocação, reunião, deliberação e divulgação na esfera sindical:
Art. 17. Durante o estado de calamidade pública de que trata o art. 1º:
[...]
II - poderão ser utilizados meios eletrônicos para atendimento dos requisitos formais previstos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, inclusive para convocação, deliberação, decisão, formalização e publicidade de convenção ou de acordo coletivo de trabalho; e
III - os prazos previstos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, ficam reduzidos pela metade.
É um engano, portanto, supor que, a partir da liminar deferida na ADI 6.363-DF, (a) a negociação coletiva seja um “empecilho” para a imediata validade dos acordos individuais (e, portanto, para o pronto pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego); e que (b) seriam necessários “milhares de acordos coletivos”, no curso de “vários anos”, para se obter consensos nacionais. Com algum otimismo, pode-se antecipar que algumas poucas convenções coletivas de trabalho poder resolveriam a questão em âmbito nacional, ao menos em relação às principais categorias de trabalhadores.
Aliás, a própria realidade já relativiza a observação do parecer. Desde as primeiras duas semanas de isolamento social, pronunciaram-se, em diversas bases territoriais e para diversas categorias profissionais, ensejos de negociações coletivas para reduções de jornada e salário; e, a partir delas, vários acordos coletivos já foram produzidos. A título de exemplo, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, criou-se mecanismo telemático voltado à facilitação da mediação judicial, permitindo de duas a três composições diárias com entidades sindicais.
A facilitação e desburocratização da negociação sindical também foi objeto da MP 936, reduzindo-se prazos pela metade e permitindo-se deliberações por via eletrônica. Ou seja, a própria medida provisória já busca privilegiar a norma coletiva.
Por fim, deve-se pontuar que a opção pela composição coletiva tende a produzir resultados mais firmes e uniformes. Formalmente, a MP permite composições individuais sobre suspensão contratual e redução de jornada e salário. Caso se leve efetivamente a sério que hajam propostas, discussões e análises individualizadas, esforço muitíssimo maior seria gerado nesses processos balcanizados. A solução coletiva, portanto, tende a agilizar, padronizar e dar muito mais segurança às soluções propostas na norma provisória.
5) Quinto ato: “a negociação coletiva não tem como prever benefícios governamentais”
O parecer segue afirmando:
“ainda que magicamente fosse possível que todos os empregadores do país celebrassem acordos coletivos nas próximas semanas, não seria possível a tais acordos – sem a previsão normativa estatal – produzir o resultado concebido pela MP no 936/2020 para enfrentar a crise. Dito de outro modo, a negociação coletiva não teria como produzir o pagamento de benefícios sociais para os trabalhadores que tivessem suas jornadas e salários reduzidos e proporcionar a renda”.
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Aqui se vê mais um evidente desvio de perspectiva. É indiscutível que a negociação coletiva não pode criar benefícios assistenciais a serem pagos pelo Governo. Contudo, daí não se pode extrair argumento mínimo para sustentar a constitucionalidade da MP nº 936/2020. A exigência da negociação coletiva não será um “problema” se o complemento salarial (decorrente da adesão ao Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda) for pago desde logo, independentemente da conclusão do acordo ou da convenção coletiva de trabalho. E, ademais, se o acordo individual é válido desde logo, como liminarmente decidido pelo Min. Lewandowski na ADI 6.363, está claro que o BEPER também pode ser pago desde logo. Observe-se, a propósito, que a ação direta de inconstitucionalidade não ataca o instituto do BEPER, que terá relevantíssimo papel neste momento. O que se está a debater são as condições para que as hipóteses de redução de salário e jornada sejam finalmente reputadas válidas. E não há se atrelar necessariamente um debate a outro, sob pena de se criarem inadequados argumentos “ad terrorem”.
Ademais, os fundamentos para se assegurar o papel constitucional da negociação coletiva não podem ser vistos de forma fracionada, mas a partir de seu significado completo. A intenção constitucional de estabelecer o filtro sindical existe por imposição de visão holística sobre o lugar do trabalho na sociedade. Especialmente em momentos de crise, o acerto de entidades coletivas não é o de simplesmente estabelecer benefícios para uma das partes, mas o de firmar compromisso compartilhado, universal para seu âmbito e – acima de tudo – mais seguro para todos.
Todas as normativas estatais criadas, desde o início da pandemia, partem de condições diferenciadas de enfrentamento, que possam ser adequadas às mais diversas realidades econômicas e profissionais. Especialmente as medidas provisórias 927, 936, 944 e 946 observam elementos como portes empresariais, condições de endividamento e ofícios envolvidos e orientam para ações possíveis e resguardadas por suas normativas. Mas, acima de tudo, definem que serão soluções escolhidas a partir da negociação entre os interessados.
Parece extremamente improvável que cada singular empregado pudesse reconhecer todas essas condições e conseguir firmar negociação consciente sobre as melhores opções. É precisamente para isso que serve a negociação coletiva, outorgando maior segurança jurídica a todos os interessados e contribuindo para a redução tendencial de demandas judiciais individuais de confronto a precários acordos pessoalizados. Isso interessará inclusive aos empregadores, para que adiante todos esses acordos individuais não se resolvam em judicialização contumaz.
6) Sexto ato: “se a norma coletiva pode reduzir salário, a lei também o pode”
O parecer declara, por fim, o seguinte:
“Se o sindicato tem autonomia negocial suficiente perante o empregador para os fins constitucionais, mais ainda o tem o Legislativo e o Executivo. Como já observado, contrariar essa premissa é supor que toda a disciplina ordinária do Direito do Trabalho, inclusive a CLT, seria inconstitucional. (...) se os sindicatos estão autorizados a negociar a redução de jornada e salário em tempos de crise a fim de preservar empregos, também o Estado está comprometido, constitucionalmente, com a preservação e ampliação do emprego”.
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Eis, com todas as vênias, outro grave desvio de perspectiva. O Estado, por meio da medida provisória, não está – com o perdão de um novo truísmo – “negociando” a redução do salário com o empregador. Na verdade, criou-se um programa emergencial que pressupõe “acordo individual” entre empregado e empregador. Não é a lei, mas o acordo, que está reduzindo o salário. E o acordo individual, ao arrepio do art. 7º, VI, da CRFB.
Ilógico, outrossim, o raciocínio de que “a lei tem mais valor do que a negociação coletiva e por isso poderia reduzir salários”. A uma porque, em Direito do Trabalho, viceja o postulado da pluralidade normativa (vide art. 8º, caput, da CLT): o fetichismo legal, tão próprio de certos segmentos dogmáticos (como o Direito Penal e o Direito Tributário), não alimenta a lógica jurídico-trabalhista. E, a duas, porque, prevalecendo a liminar, o acordo individual somente pode ser reputado válido, para fins de redução salarial, se não houver posterior negociação coletiva em sentido contrário.
Não há qualquer dúvida que princípios e valores constitucionais podem ser ponderados em casos difíceis, a fim de que sejam encontradas soluções adequadas ao caso concreto. Há, todavia, certas limitações, especialmente a que orienta o intérprete a jamais optar por solução hermenêutica que anule por completo um dos valores em sopesamento. Na situação analisada, a própria Constituição da República já define como direito fundamental a necessidade de passagem sindical da possibilidade de redução de salário. Atente-se a que o direito fundamental não é pretensa impossibilidade de diminuição de salário, mas a garantia de que instituições representativas sejam chamadas para avaliar essa opção. E assim o farão, tendo em conta inclusive outros vetores constitucionais, como a preservação da saúde, do emprego e da empresa.
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Eis, afinal, o panorama completo desse imprevisível roteiro. Com todos os seus atos, pontos e contrapontos.
Na homérica Odisseia, Odisseu e seu grupo logram retornar ilesos a Ítaca. Disfarçado de mendigo por ato de Atena (deusa grega da sabedoria), Odisseu consegue ingressar no palácio e finalmente se casa com a amada Penélope, restabelecendo a ordem do reino, contra todos os seus detratores. Vejamos se, na odisseia da MP 936/20, logrará o Direito do Trabalho – tido tantas vezes como o “primo pobre” dos ramos dogmáticos – ingressar no palácio da Justiça constitucional e fazer valer, para tempos ordinários ou excepcionais, o que se espera de um Estado de Direito: a letra da Constituição, em sua mínima semântica.
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*Felipe Bernardes é juiz do Trabalho no TRT da 1ª região.
**Guilherme Guimarães Feliciano é juiz do Trabalho no TRT da 15ª região. Professor da Faculdade de Direito da USP. Doutor e Livre-Docente em Direito pela USP e pela Universidade Clássica de Lisboa. Ex-presidente da Anamatra (2017/19).
***Rodrigo Trindade é juiz do Trabalho no TRT 4ª região. Mestre em Direito pela UFPR. Especialista em Derecho Laboral pela Universidad de la Republica (Uruguay). Ex-presidente da Amatra IV. Membro titular da Academia Sul-Rio-grandense de Direito do Trabalho.