Pense numa medida de indisponibilidade total dos bens particulares de determinadas pessoas, decretada pela administração pública sem a necessidade de interveniência do Poder Judiciário, nem de prévia apuração das respectivas responsabilidades, e - numa leitura distorcida da legislação – sem sequer a fixação de um prazo pré-determinado para a sua duração.
Encontram-se atualmente atingidos por tal medida, por prazo indeterminado, inúmeros administradores, conselheiros e gerentes de operadoras de planos de saúde que foram submetidas a regimes especiais de direção fiscal pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com respaldo no art. 24-A da lei 9.656/981, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde.
O que não encontra respaldo no ordenamento jurídico, considerado em sua totalidade por meio de uma leitura sistemática à luz da Constituição Federal, é a perduração da indisponibilidade desses bens por tempo indeterminado. Apesar disso, a ANS tem adotado um entendimento que resulta justamente na manutenção da referida constrição por prazo indefinido, inclusive com a chancela de algumas turmas do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Cabe compreender os fundamentos que sustentam esse entendimento e a razão pela qual os mesmos, ao nosso ver, estão profundamente equivocados.
Os regimes especiais de direção fiscal sobre operadoras de planos de saúde são regulados pela resolução normativa 316/12 da ANS e se instauram quando a agência reguladora verifica que a qualidade ou a continuidade do serviço de saúde se mostram ameaçadas em razão de anormalidades econômico-financeiras ou administrativas graves, como as dispostas no art. 2º da referida resolução. De acordo com o art. 24 da lei 9.656/98, os regimes de direção fiscal não podem durar mais do que 365 dias.
Consequência automática da decretação do regime é a total indisponibilidade dos bens pertencentes àqueles que tenham estado no exercício de suas funções de administração da operadora nos 12 (doze) meses anteriores ao ato2. Tal medida constritiva, a critério da ANS, poderá alcançar os bens dos gerentes, conselheiros e terceiros que, porventura, tenham concorrido para a decretação do regime3.
Trata-se, naturalmente, de uma medida cautelar excepcionalíssima, que visa garantir com que eventual prejuízo sofrido pela operadora possa ser reparado mediante expropriação do patrimônio do administrador, caso haja efetivamente a sua responsabilização pelos fatos que levaram ao desequilíbrio econômico-financeiro da operadora.
Com base no art. 24-A da lei 9.656/98, no art. 36 da lei 6.024/744 e no art. 50 da resolução mormativa 316/12 da ANS5, a agência reguladora tem entendido que os bens dos administradores e dos demais sujeitos alcançados pela medida constritiva devem permanecer indisponíveis "até a apuração e liquidação final de suas responsabilidades", independentemente do tempo que levar para isto ocorrer.
Lamentavelmente, o entendimento da ANS tem sido chancelado pela 5ª, 6ª e 8ª turmas especializadas do Tribunal Regional Federal da 2ª Região6, por meio de uma interpretação literal e isolada dos respectivos dispositivos legais, sem a devida observância dos direitos fundamentais pertinentes ao caso.
Mas, a questão merece uma atenção maior em razão, especialmente, de duas características do procedimento de regime de direção fiscal adotado pela ANS. A primeira característica refere-se ao fato de que o inquérito para a apuração da responsabilidade dos administradores pela situação de anormalidade econômico-financeira da operadora só é instaurado com a decretação da liquidação extrajudicial desta (art. 22 da resolução normativa 316/127). A segunda característica é que, uma vez encerrado o regime de direção fiscal, não necessariamente haverá a liquidação extrajudicial da operadora, podendo a ANS decidir simplesmente pela renovação do regime de direção fiscal, de forma ilimitada.
Ou seja, os bens dos administradores se tornam indisponíveis no momento em que é decretado o regime de direção fiscal, mas a apuração das suas responsabilidades só tem início quando ocorre a decretação da liquidação extrajudicial, a qual pode demorar anos para ocorrer, pois a ANS pode renovar o regime de direção fiscal quantas vezes entender necessário.
Isso é o que tem ocorrido em inúmeros casos concretos, não se tratando, portanto, de mera abstração teórica. De 2000 a 2017, houve a instauração de 829 regimes de direção fiscal em operadoras de planos de saúde no país, sendo que, no mesmo período, ocorreram apenas 245 liquidações extrajudiciais8. Muitas operadoras, portanto, tiveram seus regimes de direção fiscal renovados, consecutivamente, sem que a liquidação extrajudicial fosse decretada – e, por conseguinte, sem que o inquérito de apuração das responsabilidades dos administradores fosse instaurado. Nesse ínterim, os bens de todos aqueles que foram atingidos pela medida constritiva permaneceram, em regra, indisponibilizados.
A título de comparação, veja que a mera intervenção do Banco Central do Brasil nas instituições financeiras – hipótese semelhante ao regime de direção fiscal da ANS -, já torna necessária a instauração imediata de inquérito para a apuração da responsabilidade dos administradores e membros do Conselho Fiscal, mesmo antes de decretada a liquidação extrajudicial dessas instituições (art. 41 da lei 6.024/749). Os administradores das instituições financeiras, desta forma, não ficam à mercê da eficiência do BACEN ou da necessidade de liquidação extrajudicial daquelas.
Não obstante, já foram proferidos alguns julgamentos favoráveis àqueles atingidos pela medida constritiva decretada pela ANS, valendo destacar o entendimento reiteradamente adotado pela 7ª turma especializada do TRF-2, com base, principalmente, nos princípios constitucionais da duração razoável do processo, da livre disposição dos bens (direito à propriedade privada) e da razoabilidade10.
Para ilustrar a leitura sistemática e aprofundada dos valores constitucionais envolvidos nesses casos realizada pela 7ª turma especializada, veja o seguinte trecho de um acórdão deste colegiado, relativo a um julgamento realizado no final de 2019:
"É arbitrária e contrária ao princípio da razoável duração do processo, com base no prazo estipulado no art. 24, caput da lei 9.656/98 e no caráter gravoso e excepcional da indisponibilidade de bens, a manutenção da constrição além do prazo do próprio regime especial que lhe deu origem, ou mesmo durante anos, por tempo indeterminado, em decorrência de sucessivos regimes de direção fiscal, sem que haja o menor indício de que as pessoas atingidas concorreram para a intervenção da ANS e/ou sem que se inicie a apuração das responsabilidades, pois a medida acautelatória e preventiva de indisponibilidade de bens, embora decorra de lei (art. 24-A da lei 9.656/98), restringe direitos fundamentais, notadamente o da livre disposição dos bens e o de propriedade"11.
O referido entendimento certamente é o que mais se coaduna com o ordenamento jurídico constitucional. Eternizar potencialmente a indisponibilidade dos bens de um particular, sem que haja indícios mínimos de sua responsabilidade, configura verdadeira penalidade perpétua, o que é inadmissível em nosso ordenamento jurídico até mesmo, em matéria criminal, para crimes hediondos.
Pois se a indisponibilidade dos bens dos administradores da operadora submetida a regime de direção fiscal pode perdurar até "a apuração e liquidação final das responsabilidades dos administradores", mas tal apuração só ocorrerá, efetivamente, "caso a operadora em questão seja liquidada extrajudicialmente", o que ocorrerá caso nunca sobrevenha a liquidação extrajudicial da operadora?
E se esta apuração de responsabilidade ocorrer apenas depois de décadas de consecutivas renovações do regime especial de direção fiscal? Ficam os administradores com os seus bens indisponíveis ad eternum, sem a menor previsão de seu levantamento, à espera da conclusão de um inquérito que pode nem mesmo vir a ser instaurado? A situação é evidentemente esdrúxula e kafkiana.
Não se nega o fato de que a lei não fixa expressamente um prazo máximo para que as responsabilidades dos administradores sejam apuradas pelas autoridades responsáveis, mas ela claramente estabelece um prazo para a duração do regime de direção fiscal (de 365 dias), que, na ausência de outro parâmetro mais seguro, deve ser igualmente aplicado para limitar a duração dos efeitos constritivos do regime.
Por outro lado, caso fosse referendado o entendimento adotado pela ANS, haveria, inclusive, uma quebra de isonomia injustificável. Isto é, no caso das operadoras que não se recuperarem durante regime de direção fiscal e tiverem a sua liquidação extrajudicial decretada, os administradores cuja responsabilidade venha a ser afastada por meio do inquérito administrativo serão recompensados com a liberação de seus bens. Mas, no caso das operadoras que conseguirem se sustentar sem a necessidade de serem liquidadas, mas não o suficientemente para o encerramento do regime de direção, os administradores se encontrarão aguardando eternamente a fase de apuração de suas responsabilidades, com a manutenção da constrição total sobre o seu patrimônio.
Ademais, chega a ser míope o entendimento segundo o qual a medida constritiva "não significa perda dos bens nem mesmo privação, apenas restringe o atributo de dispor, impossibilitando o proprietário de aliená-los no curso da direção fiscal ou da liquidação extrajudicial", consoante vem sendo defendido em alguns julgados12.
A verdade é que, com o passar de tantos anos de seguidas renovações do regime fiscal, a indisponibilidade se torna extremamente perniciosa ao particular, já que os seus bens, indisponíveis, tendem a perder valor e utilidade com o tempo. Além disso, torna-se impossível a realização de inúmeras operações financeiras, sobretudo a contratação de empréstimos, sem que se possa oferecer quaisquer bens em garantia. Afinal, a medida constritiva em apreço limita excessivamente o exercício do direito de propriedade, na medida em que retira do proprietário uma das faculdades inerentes ao domínio, a de dispor do bem, inclusive gravando-o de eventuais ônus.
Como se não bastasse, a medida constritiva pode colocar o administrador em situações vexatórias, gerando desconfiança e preconceito por parte de terceiros. Por isso, a medida atinge não somente a esfera patrimonial do administrador, mas o seu íntimo e sua dignidade.
Mais do que isso, a leitura que a ANS e parte do judiciário fazem do art. 24-A, da lei 9.656/98, fere frontalmente os princípios da segurança jurídica, da duração razoável do processo, do direito à propriedade privada e da vedação às penalidades perpétuas, garantias fundamentais elencadas, respectivamente, nos incisos XXXVI, LXXVIII, XXII e XLVII, do art. 5º, da Constituição Federal, consoante acertadamente reconhecido pela 7ª turma especializada do TRF-2.
Embora o Superior Tribunal de Justiça não tenha, até o momento, pelo que se tem notícia, enfrentado expressamente o referido tema, fato é que já analisou circunstâncias muito semelhantes.
Ao apreciar, por exemplo, um recurso especial interposto por um administrador de uma sociedade seguradora, que teve seus bens indisponibilizados em razão da instauração de inquérito administrativo pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), o STJ adotou entendimento segundo o qual "a autorização legislativa que permite a imposição de indisponibilidade dos bens dos administradores não pode, como qualquer outra, se afastar do princípio da razoabilidade", para decidir que, "passados 14 (quatorze) anos sem conclusão do procedimento de liquidação extrajudicial, deve ser levantado o decreto de indisponibilidade dos bens" 13.
Além disso, ao examinar o poder do juiz de decretar o sequestro de bens do acusado, no curso de inquérito policial cujo objeto é a apuração de crimes financeiros previstos na lei 9.613/98, a 6ª Turma do STJ entendeu que, passados três anos da decretação da medida constritiva, sem a efetiva propositura de ação penal, deveria tal medida assecuratória ser levantada, não apenas por respeito ao disposto no art. 4º, § 1o, da lei 9.613/98, mas por obediência ao princípio da razoabilidade14.
Se em casos que envolvem a apuração de graves crimes financeiros, a medida constritiva não pode perdurar por mais de 3 anos sem que as ilicitudes sejam efetivamente apuradas, com muito menos razão poderá a ANS manter indefinidamente a constrição sobre os bens de um administrador, sem a mínima aferição de sua responsabilidade.
Como se disse, a lei não fixa um prazo máximo para que as responsabilidades dos administradores sejam apuradas pelas autoridades responsáveis, mas isso certamente não pode significar que a perduração das medidas constritivas sobre os bens dos administradores deva ficar à mercê da (falta de) eficiência dessas autoridades ou mesmo da legítima ausência de motivos que venham a justificar eventual liquidação extrajudicial da operadora.
Por isso, ainda que se entenda que a indisponibilidade dos bens de administradores prevista pela lei 9.656/98 possa perdurar para além do prazo máximo previsto para o regime especial de direção fiscal, deve-se interpretar a norma para que se admita a manutenção da constrição apenas nos casos em que o regime de direção fiscal é imediatamente seguido por uma liquidação extrajudicial da operadora, na forma do § 4º, do art. 24, da lei 9.656/9815, caso em que efetivamente haverá a apuração da responsabilidade dos administradores.
Já no caso de encerramento do regime de direção fiscal pelo decurso do prazo de 365 dias, sem que haja a sua conversão em liquidação extrajudicial, é inadmissível, à luz do ordenamento jurídico constitucional, em especial das referidas garantias fundamentais, que as medidas constritivas perdurem ad eternum.
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1 Art. 24-A. Os administradores das operadoras de planos privados de assistência à saúde em regime de direção fiscal ou liquidação extrajudicial, independentemente da natureza jurídica da operadora, ficarão com todos os seus bens indisponíveis, não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até apuração e liquidação final de suas responsabilidades.
2 Art. 24-A. (...) § 1o A indisponibilidade prevista neste artigo decorre do ato que decretar a direção fiscal ou a liquidação extrajudicial e atinge a todos aqueles que tenham estado no exercício das funções nos doze meses anteriores ao mesmo ato.
3 Art. 24-A. (...) § 3º A ANS, ex officio ou por recomendação do diretor fiscal ou do liquidante, poderá estender a indisponibilidade prevista neste artigo: I - aos bens de gerentes, conselheiros e aos de todos aqueles que tenham concorrido, no período previsto no § 1o, para a decretação da direção fiscal ou da liquidação extrajudicial; II - aos bens adquiridos, a qualquer título, por terceiros, no período previsto no § 1o, das pessoas referidas no inciso I, desde que configurada fraude na transferência.
4 Lei que disciplina a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras pelo Banco Central do Brasil (BACEN), supostamente aplicável ao regime de direção fiscal das operadoras de planos de saúde por força do art. 24-D da lei 9.656/98.
5 Quanto a isso, o art. 50 da resolução normativa 316/12 também dispõe que, "no encerramento do regime de direção fiscal por decurso de prazo, ou na sua convolação em liquidação extrajudicial, será mantida a indisponibilidade dos bens dos administradores, gerentes, conselheiros e assemelhados, até a apuração e liquidação final de suas responsabilidades".
6 Ver, por exemplo: apelação cível 0115339-13.2015.4.02.5101, rel. des. ALCIDES MARTINS, 5ª Turma Especializada, j. 04.12.18; apelação cível 0086784-83.2015.4.02.5101, rel. des. REIS FRIEDE, 6ª Turma Especializada, j. 24.01.19; e apelação cível 0001373-09.2014.4.02.5101, rel. des. Fed. MARCELO DA FONSECA GUERREIRO, 8ª Turma Especializada, j. 13.02.19.
7 Art. 22. Decretada a liquidação extrajudicial, a ANS procederá a inquérito, a fim de apurar as causas que levaram a operadora àquela situação e a responsabilidade de seus administradores, na forma definida em resolução específica. (Redação dada pela RN 401, de 25/2/2016)
8 REIS, Amanda. REGIMES DE DIREÇÃO E DE LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS RESOLUÇÕES DA ANS NO PERÍODO 2000-2017. Instituto de Estudos de Saúde Suplementar. Disponível aqui. Acesso em: 27.3.20.
9 Art. 41. Decretada a intervenção, da liquidação extrajudicial ou a falência de instituição financeira, o Banco Central do Brasil procederá a inquérito, a fim de apurar as causas que levaram a sociedade àquela situação e a responsabilidade de seu administradores e membros do Conselho Fiscal.
10 No mesmo sentido: apelação cível 0034034-21.2017.4.02.5106, rel. des. Fed. SERGIO SCHWAITZER, 7ª Turma Especializada, j. 30.10.18; e apelação cível 0011406-64.2016.4.02.0000, rel. des. Fed. SERGIO SCHWAITZER, 7ª Turma Especializada, j. 25.07.17.
11 Apelação 0121352-91.2016.4.02.5101, rel. des. Fed. SERGIO SCHWAITZER, 7ª Turma Especializada, j. 16.12.19.
12 Apelação cível 0001373-09.2014.4.02.5101, rel. des. Fed. MARCELO DA FONSECA GUERREIRO, 8ª Turma Especializada, j. 13.02.19.
13 STJ, 1ª Turma, REsp nº 626.014/RJ, rel. ministro FRANCISCO FALCÃO, j. 10.04.2007.
14 STJ, 6ª Turma, RMS nº 27.230/RJ, rel. ministro NILSON NAVES, j. 16.03.2010.
15 § 4o O diretor-fiscal ou técnico poderá propor a transformação do regime de direção em liquidação extrajudicial. (Redação dada pela MP 2.177-44, de 2001)
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*Paulo Nonato é advogado do escritório Raphael Miranda Advogados.
*Gabriela Mambrini é advogada do escritório Raphael Miranda Advogados.