Migalhas de Peso

Aproveitando o olhar distante e para outra direção

No meio da crise, o olhar distante pode ser o subterfúgio, a cortina de fumaça, para apropriação de dinheiro público pela iniciativa privada.

14/4/2020

Tenho notado, com a ajuda de diversos interlocutores, que a utilização de “cortinas de fumaça” tem sido muito freqüente na adoção de políticas de interesse público, notadamente pelo Governo Federal. O foco aqui é a legitimidade da atuação, no mínimo, inusitada do Banco Central do Brasil no mercado financeiro brasileiro. Vou direto ao ponto: a proposta de emenda à constituição (PEC) 10/20 cria o artigo 115 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e seu objetivo, conforme divulgado, é criar instrumentos para impedir que gastos emergenciais gerados em virtude do estado de calamidade pública sejam misturados ao Orçamento da União, isto é, institui um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente de pandemia internacional da covid-19.

Entretanto, é importante chamar atenção ao § 9º do novo artigo 115, o qual veio assim redigido:

O Banco Central do Brasil, limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o caput deste artigo, e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração, fica autorizado a comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos.

É preciso prestar bem atenção na generosidade da proposta, a qual é apenas uma “cortina de fumaça”, isto porque, com o subterfúgio de socorrer empresas durante a crise da covid-19, a proposta beneficia instituições financeiras e não empresas ou o próprio sistema financeiro, comprometendo significativamente recursos do orçamento público. Importante esclarecer que no mercado secundário os investidores negociam entre si, isto é, os fluxos financeiros são entre investidor e investidor, não resultando em financiamento algum para as empresas. Nesse tipo de mercado os títulos são negociados por telefone, sem ação direta de um órgão regulador, é o chamado “mercado de balcão”.

É fundamental atentarmo-nos para os fatos que culminou com a apresentação da PEC 10/20, para entender os movimentos no tabuleiro realizados pelas forças financeiras incrustadas no Governo Federal. Vejamos: no dia 13 de março de 20201 o ministro da Economia Paulo Guedes anuncia que a Caixa Econômica Federal irá reservar R$ 30 bilhões para a compra da carteira de crédito de pequenos e médios bancos. Importante perceber que neste tipo de operação – comprar títulos no mercado secundário – não há ajuda a quaisquer empresas que tenham emitido estes títulos, mas estará atuando como especulador utilizando dinheiro público para isso, pois no mercado secundário os fluxos de dinheiro acontecem entre investidor e investidor e, conseqüentemente, o banco ao comprar títulos de uma carteira de um banco, apenas diminui os prejuízos deste, transferindo-os para si.

No dia 28 de março de 20202, matéria do Valor Econômico informa que “o Bocom BBM negociou mais de R$ 300 milhões, sempre na ponta compradora. Nesses dias sem liquidez no mercado secundário de debêntures, a presença do Banco Bocom BBM chamou a atenção de gestores que precisaram de recursos para arcar com resgates de seus fundos. Nos últimos quatro ou cinco pregões, na estimativa do mercado, o Bocom BBM negociou mais de R$ 300 milhões, sempre na ponta compradora”.

Finalmente, no dia 1º de abril de 2020, três dias após a matéria do Valor Econômico, inicia a tramitação da PEC 10/20 que autoriza o Banco Central do Brasil a comprar título corporativo da carteira dos bancos. Conforme apontam Maria Lucia Fattorelli e Eduardo Moreira, “a segunda parte do referido § 9º é ainda mais grave, pois coloca o Banco Central como um receptáculo de papéis podres, sem limite ou controle algum, beneficiando os bancos que adquiriram tais papéis no mercado financeiro”3.

Este pequeno contexto aponta para interessantes situações que merecem a atenção do leitor, do Congresso Nacional, do Ministério Público e das autoridades financeiras do país, isto porque, como se percebe, há diversos problemas que devem ser abundantemente esclarecidos, em especial, I) a “mais escandalosa transformação de dívidas privadas em dívida pública” (Cf. Fattorelli e Moreira) e, II) uma profunda investigação para verificar a existência de utilização de informação privilegiada para ganhos de capitais, prática conhecida por “insider trading”.

No meio da crise, o olhar distante pode ser o subterfúgio, a cortina de fumaça, para apropriação de dinheiro público pela iniciativa privada.

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1 Pupo, Fábio. Guedes diz que bancos menores são monitorados e Caixa destina R$ 30 bi para compra de carteiras. Folhapress. In: clique aqui. Acesso em 13.04.20.

2 Ragazzi, Ana Paula. Bocom BBM vai às compras e leva liquidez para debêntures. Valor Econômico – Finanças. In: clique aqui. Acesso em 13.04.20.

3 Fattorelli, Maria Lucia e Moreira, Eduardo. Bancos aproveitam crise e tentam introduzir armadilha na Constituição. Monitor Econômico. In: clique aqui. Acesso em 13.04.20.

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*Sergio Graziano é doutor em Direito, advogado criminalista.

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