Publicada em 7/4, a MP 946/20, que libera R$ 1.045,00 dos depósitos de FGTS, se fundamenta, como aparentemente toda ação governamental, na tentativa de responder politicamente à crise sistêmica agravada pela pandemia do novo coronavírus. A extinção do fundo PIS-PASEP, outra grande alteração trazida pela medida, não significa – pelo menos por enquanto – a extinção do abono salarial, pagamento anual realizado ao trabalhador que preenche determinados requisitos, tais como receber em média dois salários mínimos e estar inscrito no PIS/PASEP há mais de 5 anos. Coincidentemente, o valor liberado das contas de FGTS é exatamente o mesmo valor do abono salarial do PIS-PASEP, ou seja, R$ 1.045,00 o que levanta justificadas dúvidas quanto à continuidade da prestação do auxílio nos próximos anos.
Quanto à limitação do valor liberado das contas de FGTS, a medida contraria a lógica do art. 20, XVI, da lei 8.036/90 e do art. 4º do decreto 5.113/04. Isto porque, o estado de calamidade permitiria a liberação dos valores respeitando-se o teto imposto pelo decreto 5.113/04, ou seja, R$ 6.220,00.
O art. 20, XVI, da lei 8.036/90 preceitua que:
Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
XVI - necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento, observadas as seguintes condições:
a) o trabalhador deverá ser residente em áreas comprovadamente atingidas de Município ou do Distrito Federal em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo governo Federal;
b) a solicitação de movimentação da conta vinculada será admitida até 90 dias após a publicação do ato de reconhecimento, pelo Governo Federal, da situação de emergência ou de estado de calamidade pública;
Toda a discussão no âmbito jurídico a respeito da limitação do valor de saque imposta pelo governo se baseará na constitucionalidade da expressão "conforme disposto em regulamento", já questionada na ADIn 6.371 de autoria do Partido dos Trabalhadores. A mesma lógica permeia, ainda que em espectros políticos opostos, o PL 647/20 de autoria de deputado do Novo-SP, no qual se pretende a liberação integral dos depósitos de FGTS aos trabalhadores, desconsideram inclusive o teto do decreto 5.113/04.
Por sua vez, trabalhadores começaram, individualmente, a pleitear a liberação da integralidade dos depósitos, fundamentando-se no estado de calamidade decretado e, como resposta, obtiveram, até o momento, duas decisões em sentidos opostos de Tribunais Regionais do Trabalho.
Trata-se, evidentemente, de uma questão de alta complexidade uma vez que sua discussão não se resume ao campo jurídico, pois ultrapassa a individualidade do trabalhador sobre o uso do FGTS. A liberação de todos os valores do FGTS aos trabalhadores, em larga escala, por todo o país, impediria sua utilização pelo Estado, que o faz aplicando em áreas de habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana, igualmente necessárias ao combate da pandemia e da crise econômica iminente.
Todavia, ao se analisar o valor liberado, pouco mais da metade do auxílio concedido aos trabalhadores informais, fica evidente a ineficácia da medida, eis que diminuto o valor em comparação ao tamanho da crise que se avizinha e que, sem dúvida, atingirá e fará perecer a classe trabalhadora como um todo.
É preciso, portanto, que o governo considere com clareza e estratégia a liberação das contas FGTS. Para tanto, se mostraria razoável a aplicação do inciso “a” do parágrafo XVI do art. 20, acima citado, observando-se, região a região, o quanto a pandemia afeta os trabalhadores, regulamentando a possibilidade de saques da totalidade do fundo por áreas mais atingidas.
Passível de análise, ainda, a aplicação imediata do art. 4º do decreto 5.113/04 que impôs limitação ao valor do saque para R$ 6.220,00. Bastaria como solução que se considerasse extensiva a interpretação sobre a expressão “desastre natural” à pandemia, sendo infundada a nova limitação de valor de saque imposta pela MP.
Em todo caso, o trabalhador deve e merece ser amparado de maneira efetiva pelo Estado e isto deve ser feito às claras e sem margem a novos ataques aos seus direitos.
Ocorre que se faz necessário aventar a possível a utilização da MP para, futuramente, fundamentar a extinção do pagamento do Abono Salarial ligado ao PIS-PASEP, prosseguindo o governo eleito com a aplicação da lógica neo-liberal de ataques aos direitos e garantias sociais e do trabalho. A coincidência do valor limite de saque com o auxílio evidencia a real intenção do Executivo e fundamenta os argumentos de quem defende que o Abono Salarial do PIS-PASEP já está extinto.
Ainda que toda ação do Governo se fundamente, repita-se, na tentativa do controle da pandemia, o que as recentes experiências têm demonstrado é que a monumental crise será novo e mero subterfúgio à intensificação das "reformas" contra a classe trabalhadora.
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*Guilherme Herzog Chainça é advogado atuante nas áreas Trabalhista e Cível. Sócio em Manoel Herzog Chainça Sociedade de Advogados.