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Licenças compulsórias e a covid-19

Entende-se como extremamente oportuno o momento em que os PL 1.184/20, PL 1.320/20 e PL 1.462/20, foram propostos, bem como vislumbra-se sua plena compatibilidade com a legalidade constitucional

15/4/2020

1. Introdução

Nos últimos dias o Congresso Nacional intensificou debates sobre propostas do Poder Executivo quanto as vicissitudes necessárias visando realinhar a arquitetura jurídico-normativa quanto a crise do momento. Não obstante  o papel de equilíbrio que o Poder Legislativo exerce perante os demais Poderes de Estado, também foram iniciados debates sobre modificações necessárias visando a maximização do acesso à saúde.

Neste contexto específico, ganharam destaque três projetos de lei (PL 1.184/20, PL 1.320/20 e PL 1.462/20), que tratam de disciplinar todo o devido processo legal, a remuneração e a forma com a qual eventual licença compulsória de tecnologias afeita ao covid-19 pode vir a ser concedida.

2. A estrutura e a função da licença compulsória

Apesar do misticismo e de certa mitificação (feita pela mídia e pelos  tradicionais titulares de tecnologias) em torno do instituto da licença compulsória, em verdade o instituto cuida de medida (a) predominantemente estatal, (b) excepcional, (c) vinculada, (d) prevista em Tratados-Contratos Internacionais e na Legislação Interna (compatível com a Constituição da República) e (e) servindo ao bem comum do titular e dos não-titulares.

Com relação à sua origem (a) emanada do agir estatal, cuida-se de uma das formas mais brandas de atuação dos Poderes Públicos diante de um tipo de propriedade privada, cuja característica marcante é incidir sobre um bem de produção. Por exemplo, a maioria das propriedades é tributada diretamente (IPTU, IPVA ou ITR – inclusive com alíquotas progressivas), o que não acontece com as propriedades intelectuais sobre as quais, por opção política nacional, não incide tributação imediata. De outro lado, há formas muito intensas de atuação estatal diante da propriedade privada, a exemplo: (a1) dos empréstimos compulsórios (art. 148 da CRFB) cuja memória do Plano Collor (medida provisória 168/90 convertida na lei 8.024/90) não deixa maiores saudades; (a2) da expropriação sem compensação (art. 243 da CRFB) incidente para aqueles imóveis nos quais se exerce a exploração do labor escravo ou do plantio de plantas psicotrópicas, servindo como verdadeira sanção àqueles que economicamente se beneficiam do vilipêndio à dignidade humana ou do comércio de substâncias que corroboram ataques à saúde pública; (a3) da desapropriação (art. 5º, XXIV, da CRFB) mediante compensação, havida nas hipóteses de necessidade, utilidade pública e interesse social. Nas hipóteses narradas de atuação do Poder Público (a1 – a3), termina-se a propriedade privada, ainda que haja alguma forma de restituição ulterior de matiz compensatória. Com relação ao ambiente da Propriedade Industrial, em vínculos nitidamente privados, também há formas intensas que afetam o direito dos titulares e que o fazem sem qualquer tipo de contrapartida, a exemplo da caducidade (art. 78, III e 142, III, da lei 9.279/96). A licença compulsória é uma das ferramentas presentes no instrumental da atuação dos poderes constituídos, e tal como a (a4) requisição (art. 139, VII, da CRFB), (a5) limitação administrativa (art. 22-A da lei 9.985/00); (a6) tombamento (art. 5º, decreto-lei 25/37), não afeta a titularidade ou o direito de exclusividade do proprietário. Aliás, ao contrário das últimas três formas de impacto na propriedade privada, é a única intrinsecamente vinculada a uma forma remuneratória a quem permanecerá proprietário (isso será retomado na análise do elemento ‘e’). Ou seja, não deveria constituir medida apta a causar qualquer maior controvérsia, se anualmente milhares de desapropriações e até expropriações (medidas drásticas) são realizadas e pouquíssimas vezes algo do gênero é noticiado na grande imprensa local, regional, nacional ou, quanto mais, internacionalmente.

No tocante à sua caracterização como um instrumento (b) vinculado à legalidade constitucional e de matiz (c) excepcional, pela vigência do direito formado por fontes formais e materiais, não se edita licença compulsória no Brasil por capricho do Chefe do Executivo, por picuinha Legislativa ou por ato descuidado dos Órgãos do Poder Judiciário. O dever de fundamentação é particularmente elevado (art. 93, IX, da CRFB), exige-se imparcialidade e cautela, afinal de contas lida-se com um bem de produção e com o direito fundamental de propriedade (art. 5º, XXII e XXIX da CRFB, corporificado no art. 6º, da lei 9.279/96), visando os igualmente importantes direitos fundamentais de acesso à propriedade (art. 5º, caput, da CRFB) e, nos tempos correntes, à saúde (art. 196 da CRFB). Isto significa dizer que (c) a licença compulsória não é a primeira forma de se lidar com um problema, e apenas circunstâncias muito sérias de risco à soberania, de abusos ou ilegalidades perpetradas pelo do direito do proprietário/licenciado, de desabastecimento de produtos essenciais (entre outras hipóteses de incidência) é que habilitam a razoabilidade da medida excepcional.

Em reconhecimento da necessidade dos entes soberanos se acautelarem diante de emergência ou abusos dos titulares, e tomando-se em conta de que aguardar até duas décadas pode ser nefasto às políticas públicas que urgem; (c) desde o final do século XIX, o principal tratado internacional (Convenção União de Paris – na redação atual de Estocolmo – art. 5º (2) e seguintes) daquele momento histórico já previu tal ferramenta. Note-se que pela teoria dos Poderes Implícitos1, mesmo se não houvesse tratado internacional habilitando a medida, se é comum nas Ordenações Jurídicas mundo afora a previsão de desapropriação – de modo a empoderar o administrador a tomar as devidas providências de modo a bem realizar sua função pública –, observa-se que a licença compulsória não trata, senão, de uma medida light no contexto do domínio eminente2, apta ao princípio da Juridicidade3. Harmonizava-se ali, por um instrumento plurilateral, o que todos os países civilizados fazem diante de situações esdrúxulas: diminuem-se os danos sociais através de uma ferramenta de Direito Administrativo. Cerca de um século depois, o Acordo TRIP’s também regulou a matéria (art. 31 e incisos), ratificando o fato de que o sistema capitalista (logo da tutela ao direito de propriedade, inclusive sobre os bens de produção) não toma como adversária tal medida. Ela é uma forma de manter a saúde do próprio ambiente capitalista que lida com o lucro, com os riscos e com a tutela da população via políticas públicas positivas. Por tais razões,  o  Código da Propriedade  Industrial de  1996  (lei 9.279/96, artigos 68-74), seguindo a série histórica do seus antecessores de 1971 (lei 5.772/71 – artigos 33-38) e de 1945 (decreto 7.903/45 – artigos 53-63), manteve a tradição de tal previsão arquitetônica em prol das liberdades dos não- proprietários. Desta breve enunciação das fontes normativas supralegais e legais, e antecipada a comparação do instrumento da licença compulsória com outras tantas de matiz interventiva-drástica, não é difícil compreender sua adequação à ordem Constitucional vigente: os sujeitos de direito coexistem, a titularidade da patente de invenção não é algo fruto de um processo administrativo infalível, certamente não é sagrada e deve cumprir sua função social específica (art. 5º, XXIX, sufixo, da CRFB). Raciocínio diverso deste alocaria os titulares de bens intelectuais em uma posição preferencial a todos os demais titulares de outros tipos de bem. Simplesmente não existe um princípio constitucional da primazia do dono da patente sobre o restante da sociedade.

A licença compulsória deve ser vista como um instrumento (e) de otimização do sistema da propriedade intelectual, já que permite um resultado tido como vitória-vitória (win-win situation) para todos os núcleos de interesses que participam de tal relação jurídica poliédrica e complexa; quais sejam – (I) autor/inventor/originador; (II) titular da propriedade (raras vezes sendo o mesmo sujeito do item ‘i’); (III) os Poderes Públicos; (IV) os concorrentes; (V) consumidores e (VI) o meio ambiente. Diante de uma situação excepcional de desequilíbrio aos demais núcleos de interesses distintos de (I) e (II), atinge-se um novo balanço para maximizar acesso (IV) e (III), limitar impactos negativos (IV) e (VI), remunerando adequadamente e sem riscos os sujeitos-titulares. A propriedade permanece hígida, a exclusividade continua sendo oponível erga- omnes, havendo, apenas e tão somente, uma inoponibilidade personalíssima a quem lhe remunerará: o licenciado compulsório. Tal lógica é a mesma pela  qual o franqueador não pode impedir o franqueado de usar seus bens intelectuais, já que bem lhe paga por isso. Além do balanceamento entre todos os núcleos de interesse, não é possível olvidar que o próprio titular da patente ou pedido pode ainda não deter a capacidade fabril suficiente para atender a uma enorme demanda reprimida. Em verdade, entre a tecnologia estar pronta a exercer sua função, e uma suficiente atenção às necessidades do  consumidor, anos e anos poderão se passar. Em seguida, tratando-se de demanda cujo pico seja passageiro, pode não ser economicamente sedutor a tal titular investir na ampliação de seu próprio parque industrial, preferindo majorar preços e tentar controlar a demanda. Há um claro problema aqui: em geral doenças não são particularmente simpáticas às necessidades de quem é obrigado a esperar soluções.

Desta sorte, notícias com epígrafes do tipo “quebra de patentes” e “pirataria” são ocasionalmente emanadas por periódicos que ignoram o teor publicado ou que servem a interesses pouco republicanos. Afinal, ninguém haveria de denominar a República Alemã como um país que endossa o ataque à propriedade privada, quando, por exemplo, em 2017 no caso Merck vs. Shionogi, decidiu pelo licenciamento compulsório do medicamento antirretroviral Raltegravir4. Havia uma necessidade específica, acautelou-se de prestigiar todos os núcleos de interesses vinculados, e concluiu-se que a licença compulsória era a medida mais adequada. O que vale para a realidade tedesca, neste aspecto, igualmente é pertinente para o Brasil.

3. Conclusão

Por tais razões, entende-se como extremamente oportuno o momento em que os PL 1.184/20, PL 1.320/20 e PL 1.462/20, foram propostos, bem como vislumbra-se sua plena compatibilidade com a legalidade constitucional. Em síntese, são propostas de legiferação que visam maximizar um equilíbrio necessário entre proprietários e não proprietários, respeitando todas as exigências pátrias e de origem estrangeira (como os Tratados-Contratos internacionais dos quais o Brasil é parte).

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1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2013, p. 161.

2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 377.

3 Sobre a juridicidade vs. Legalidade estrita vide BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e constitucionalização. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 25.

4 Agradeço a referência ao Prof. Dr. Ricardo Sichel da UNIRIO.

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*Pedro Marcos Nunes Barbosa é sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Discente do Programa de Estágio Pós-Doutoral do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Doutor em Direito Comercial (USP), Mestre em Direito Civil (UERJ), Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-Rio). Professor do Instituto de Direito da PUC- Rio.

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