Não se trata da primeira vez que o mundo passa por um período de pandemia, já houve outros momentos históricos em que as pessoas precisaram se resguardar e tomar precauções para evitar o contágio e a disseminação de diferentes vírus e bactérias.
Podemos citar como exemplo a peste bubônica (peste negra), que no século 14, na Europa e Ásia, foi responsável pela morte de 75 à 200 milhões de pessoas, dizimando ¼ da população europeia. Ou ainda, a gripe espanhola, que no início do século 20, infectou mais de 500 milhões de pessoas no mundo (1/4 da população mundial). Sem esquecer da recente gripe suína, que ocorreu no ano de 2009, e restou em mais de 150 mil mortes.
O maior problema é que desta vez o nível de informações, o nível de dependência econômica entre os países, e a falta de uma vacina para o vírus Sars-CoV-2 estremecem o mundo todo de maneira jamais vista.
A “quarentena” imposta pelos governos estão evitando o crescimento no número de casos de infectados, entretanto, ao mesmo tempo dando um enorme golpe na economia mundial. Algumas áreas serão mais atingidas, outras menos, mas o certo é que todos sofrerão os sintomas econômicos provenientes do isolamento social.
Para economistas do FMI, a recuperação da economia dependerá, e muito, das políticas adotadas pelos líderes mundiais. Para Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, a atual crise é a mais desafiadora "desde a Segunda Guerra Mundial".
Diante dessas informações não é difícil imaginar o que acontecerá com o nosso sistema Judiciário, uma vez que naturalmente aumentarão as demandas judiciais por conta dos conflitos sociais decorrentes desse período de isolamento.
Em especial, duas áreas do Direito serão as mais atingidas, as que envolvem os direitos do consumidor, e as que preservam os direitos trabalhistas.
Voos, reservas de hotéis, shows, inaugurações, entregas de empreendimentos, de produtos, de serviços, todos estarão cancelados ou atrasados, incorrendo em uma enorme demanda de conflitos em negócios jurídicos firmados outrora.
Percebe-se que, será um grande desafio para as empresas se reerguerem após a presente crise, bem como manter seus postos de trabalho, sem deixar de honrar os compromissos perante seus clientes.
Vale destacar que, 60% da força de trabalho vem das micro e pequenas empresas, e estas por sua vez, não possuem caixa suficiente para um período muito grande de paralização da economia.
Pesquisa feita pelo Sebrae (entre 3 e 7 de abril deste ano) afirma terem sido fechadas mais de 600 mil micros e pequenas empresas, sendo que 30% desse universo já precisou se socorrer a empréstimos, contudo, mais da metade foi negado pelos Bancos.
Noutra ponta, com o baixo volume de serviços, as empresas estarão propensas a demitir, atrasar os salários, ou de não pagar corretamente todas as benesses que prevê a normativa trabalhista. Claro que não será o caso de todas, mas a realidade é a que está a nossa frente, sendo desafiador para o governo federal, a todo custo, tentar preservar o maior número de empregos possíveis.
Assim sendo, para um exercício de reflexão, podemos perceber que existe uma ligação quase que direta entre a seara trabalhista e as relações consumeristas, sendo o ponto central as próprias empresas.
O consumidor deve ter o seu direito preservado caso um produto ou serviço não seja entregue conforme contratado, garantindo assim o direito de devolução de valores pagos anteriormente. Tudo garantido conforme o Código de Defesa do Consumidor.
O trabalhador por sua vez, também não pode deixar de ter segurança em seu contrato de trabalho, vez que seus direitos estão previstos na legislação trabalhista e devem ser respeitados.
Todavia, o problema se aprofunda pelo fato de os institutos terem como fundamento em sua aplicação, tão somente a teoria do risco do negócio, no qual gera por consequência a responsabilidade objetiva do empreendedor.
Vejamos, caso aplique meramente este entendimento e não exista um diálogo entre as partes, todos perderão, vez que um aumento desproporcional de demandas consumeristas irá gerar automaticamente um aumento na demanda de reclamações trabalhista, pela dificuldade que as empresas terão em honrar todos os seus compromissos.
Diante do quadro excepcional, tanto a MP 936/20 quanto a MP 948/20, vêm de maneira emergencial trazer possibilidades de diálogo e acordo dos trabalhadores e consumidores frente as empresas.
No caso da MP 948/20, remarcação, disponibilização de crédito ou outro acordo que poderá ser realizado entre consumidor e empresa, resta por flexibilizar ao meu modo de ver o artigo 35 do CDC que prevê alternativamente o cumprimento forçado da obrigação, o aceite por outro produto ou prestação de serviço equivalente, ou ainda, a rescisão do contrato com possibilidade de perdas e danos.
Vejamos a redação do artigo 2º da MP 948/20:
Art. 2º Na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I. A remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados;
II. A disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou
III. Outro acordo a ser formalizado com o consumidor.
§ 1º As operações de que trata o caput ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, desde que a solicitação seja efetuada no prazo de noventa dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória.
§ 2º O crédito a que se refere o inciso II do caput poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
§ 3º Na hipótese do inciso I do caput, serão respeitados:
I. A sazonalidade e os valores dos serviços originalmente contratados; e
II. O prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
§ 4º Na hipótese de impossibilidade de ajuste, nos termos dos incisos I a III do caput, o prestador de serviços ou a sociedade empresária deverá restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial - IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020.
Percebe-se aqui que houve de fato a possibilidade de assegurar as empresas um fôlego para o cumprimento de suas obrigações contratuais, o que enseja a possibilidade de mantimento de suas atividades, e por via de consequência, a manutenção de seus postos de trabalho.
No tocante a MP 936/20, importante ressaltar os dois pontos chaves para a preservação do emprego, quais sejam, a possibilidade de suspensão do contrato e redução de sua jornada.
No que concerne a redução, esta poderá ser reduzida por meio de acordo individual ou coletivo, dependendo do valor do salário, sendo esta possível nas faixas de 25%, 50% ou 70%, tendo a compensação da diferença por meio do seguro desemprego, que também obedecerá a critérios de percentuais.
E, sobre a possibilidade de suspensão temporária (prazo máximo de 60 dias – ou dois períodos de 30 dias), esta poderá ser pactuada por meio de acordo individual escrito ou por negociação coletiva, com a consequente suspensão dos pagamentos dos salários, levando-se em consideração que o empregado receberá seu seguro desemprego pelo período afastado e ainda terá estabilidade pelo mesmo período.
Tais medidas, aliviam o peso da responsabilidade das empresas, ainda mais das micro e pequenas, constituindo-se em medidas paliativas no combate a enxurrada de demandas judiciais que poderão existir no futuro.
Deste modo, imperioso que haja neste momento bom senso e equilíbrio por parte de todos nós, incluindo o Judiciário na hora de julgar futuros casos, uma vez que o problema é global e envolve o interesse de todos. Lembrando, portanto, que toda a sociedade está neste mesmo barco e que é nosso dever não o deixar afundar.
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*Cesar Matos Silva é pós-graduado em Administração, gestão e marketing do negócio jurídico e pós-graduando em processo civil pela PUC-SP. Advogado do Núcleo de Assuntos e Processos Estratégicos do escritório Ferreira e Chagas Advogados.