O debate proposto ocorrerá com uma linguagem desconhecida por nós há apenas algumas semanas, e nada do que será escrito deverá se perpetuar. Enquanto é redigido, num conturbador ambiente de alterações e inovações legislativas, ainda não há grandes expectativas quanto ao comportamento jurisprudencial, durante e após a crise.
A intenção é aclarar as ideias jurídicas, cujas previsões estão presentes na legislação vigente, em especial a previdenciária, a fim de amenizar as consequências dramáticas do desemprego e da desocupação desmesurados.
De um lado, tem-se o motivo de força maior tão pronunciado atualmente como forma de recondução das relações privadas e, do outro, a garantia estatal da observância aos direitos fundamentais e sociais, aí incluída a seguridade social - composta pela saúde, assistência e previdência - resguardados durante o estado de defesa.
Isso significa dizer que o estado de calamidade como fruto de uma força maior, no sistema constitucional de crise, estabelece legalidade extraordinária e flexibiliza, por exemplo, a responsabilidade fiscal do ente, não atingindo, neste primeiro contato, os direitos acima elencados.
Nas palavras do Professor Frederico Amado,
“Essencialmente a seguridade social é solidária, pois visa agasalhar as pessoas em momentos de necessidade, seja pela concessão de um benefício previdenciário ao segurado impossibilitado de trabalhar (previdência), seja pela disponibilização de um medicamento a uma pessoa enferma (saúde) ou pela doação de alimentos a uma pessoa em estado famélico. Há uma verdadeira socialização dos riscos(...)” AMADO, F. Curso de direito e processo previdenciário. 9a. ed. JusPodivm: Moderna, 2017.
Com esta breve introdução, e diante dos mais variados efeitos jurídicos e sociais criados em razão da crise da covid-19, articularemos à nossa discussão os trabalhadores segurados obrigatórios da previdência social, cujas atividades não são essenciais, nem compatíveis com a modalidade remota, e, em especial, o grupo de risco - considerados aqueles maiores de 60 anos, com doenças preexistentes ou comorbidades, gestantes e puérperas, conforme definido pela OMS - Organização Mundial de Saúde
Nas condições mencionadas, os contribuintes individuais, empregados, segurados especiais e trabalhadores avulsos, tanto aqueles que já perderam seus postos de trabalho quanto aos que ainda o mantêm, necessitam de maior atenção e devem estar protegidos, do ponto de vista não apenas assistencial, mas, sobretudo, previdenciário.
A finalidade do benefício previdenciário no cenário atual - além do seu potencial mecanismo de redistribuição de renda, é a cobertura efetiva da situação de risco social, ou seja, a análise de todos os fatores socioeconômicos e culturais relacionados ao trabalhador é absolutamente necessária. O risco de contágio e a minúscula possibilidade de retorno ao mercado de trabalho pós-pandemia são um exemplo de barreira social que deve ser considerada.
As reflexões necessárias versam sobre a saúde do trabalhador em seus múltiplos aspectos e também a todo o contexto social em que está inserido, trazendo mais questionamentos do que respostas desta situação atípica vivenciada.
Conceituemos, então, de forma mais ampla, a incapacidade para o trabalho desses indivíduos, que está galgada na impossibilidade de executar seu mister por determinação das autoridades de afastamento da atividade desenvolvida. Entretanto, em tese, não existe doença que justifique o auxílio defendido.
Ocorre que o antigo benefício previdenciário de auxílio-doença, agora definido na CF/88, após a EC 103/19, como “auxílio por incapacidade temporária”, sanou de uma vez a confusão existente entre doença e incapacidade. Decerto que a doença, em si, nunca foi requisito para concessão de benefício previdenciário.
Se analisarmos a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10, observamos que a determinação de afastamento por exposição a fatores de risco, codificada com o CID 10 - ZZ57, pode ser fator determinante para concessão do benefício, ao ser visualizada em conjunto com o contexto social. Ademais, nem mesmo a lei 8.213/91 (Lei de Benefícios) condiciona objetivamente sua concessão ao acometimento de doença.
É indiscutível que a situação de quarentena imposta ao trabalhador, que em razão da sua funcionalidade, não consegue prestar serviço remoto, sobrevém sua incapacidade laborativa enquanto durar a situação de calamidade e determinação de distanciamento social.
Em verdade, o estado de (e não doença de) segregação compulsória torna necessária a análise da incapacidade social vivenciada, sendo irrelevante o diagnóstico da covid-19, tendo em vista que sequer há número de testes suficientes e disponíveis para tal. Pretendemos ir além, ao tornar questionável a concessão automática de benefício desta ordem quando o trabalhador segurado está acometido do vírus, uma vez que doença não pressupõe incapacidade e vice-versa.
Conforme citado inicialmente, as alterações e inovações legislativas seguem num ritmo acelerado e, no interregno de elaboração deste trabalho, foram publicadas diversas normas, com interpretações modificadas pelo STF, num cenário danoso de insegurança jurídica. Dentre elas, destacamos as MPs 936 e 945, e a lei 13.982/20 que conferiram caráter indenizatório e assistencial, respectivamente, aos benefícios previstos, travestindo a proteção previdenciária em diversos aspectos.
As medidas possibilitadas pelo governo parecem louváveis, mas devem ser analisadas à luz da legislação vigente que, dentro do contexto mencionado, são indiscutivelmente menos vantajosas.
Sendo assim, a proposta trazida ao debate é legítima por seguir no sentido de aliviar as relações não só empregatícias, mas também sociais, de modo a garantir aos trabalhadores a proteção previdenciária adequada, cujos campos ainda inexplorados face o estado de calamidade precisam ser imediatamente debatidos, visando garantir a sobrevivência de boa parte do sistema e manter os postos de trabalho em seu devido lugar.
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