Na sexta-feira, 3, foi aprovado pelo Senado Federal o PL 1.179/20, de autoria do senador Antonio Anastasia, com a redação do substitutivo apresentado pela senadora Simone Tebet, relatora do projeto. Como foi consignado pelo seu autor, “a iniciativa desse projeto deve-se à incansável preocupação do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, com os severos efeitos econômicos e sociais da pandemia do coronavírus (covid-19), que liderou sua formulação, tendo a coordenação técnica do ministro Antonio Carlos Ferreira, do STJ, e do Conselheiro Nacional do Ministério Público e professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., docente de Direito Civil do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo.”
O projeto procurou tratar de temas de direito privado de forma emergencial e cria a expectativa de que poderá evitar a judicialização dessas questões. No entanto, a tímida intervenção que promove parece que não produzirá o efeito desejado.
Observa-se desde logo que o projeto não seguiu o decreto legislativo 6/20, que reconheceu o “estado de calamidade pública” até 31 de dezembro de 2020, limitando os seus efeitos a 31 de outubro de 2020. Melhor que tivesse seus efeitos sujeitos à duração do estado de calamidade pública.
Entre outros temas de direito privado, cuidou o projeto original, em dois artigos (arts. 9º e 10), da locação urbana. Sem dúvida esse tema se apresenta como o mais relevante do projeto e deveria concentrar todos os esforços. Não foi o que ocorreu. Na redação aprovada foi vedada a concessão de liminar para desocupação do imóvel até 31 de outubro de 2020. Todavia, foi suprimido o disposto no art. 10 do projeto, que permitia aos locatários residenciais suspender o pagamento dos aluguéis vencíveis a partir de 20 de março até 31 de outubro de 2020, cujo pagamento poderia ser parcelado. A retirada do art. 10 do projeto deixou os conflitos da relação locatícia para a livre negociação das partes.
Com todo o respeito, o Senado perdeu a oportunidade de arbitrar essa sensível relação (locação) no momento mais premente. A crise causada pela pandemia da covid-19 impunha ao Executivo, antes de tudo, a edição de uma MP para cuidar dos contratos e das relações privadas, como fizeram vários países, destacando-se a Alemanha. Cabia ao Senado aproveitar a excelente oportunidade oferecida pelo projeto do senador Anastasia e regular a matéria.
É necessário lembrar que há na economia brasileira quase 40 milhões de brasileiros na informalidade e mais de 12 milhões de desempregados. Há previsão de até 40 milhões de desempregados com essa crise. Esses números dão a medida de grandeza da crise e das suas consequências sobre os contratos de locação. É possível prever, diante desta realidade, que uma parte importante dos locatários, especialmente aqueles mais afetados pela crise, não terá sucesso algum nas negociações com o locador, porque têm pouco a oferecer. Empurrar esse conflito social para o Judiciário deveria ser a última solução, por motivos mais do que conhecidos.
Fiz chegar à senadora Simone Tebet uma proposição pensada para pacificar essa relação de locação nesse momento de crise. A proposta foi no sentido da redação de um único artigo de lei (art. 10) para alcançar todas as locações urbanas (residenciais e não residenciais), excluídos os contratos com shopping centers. É dirigida somente aos locatários que, em razão dos efeitos da pandemia, não podem pagar o aluguel. A proposição foi no sentido de que, mediante declaração do locatário da impossibilidade de pagamento em razão da pandemia, feita sob as penas da lei, os aluguéis deixam de ser exigíveis no período de 20 de março a 31 de outubro de 2020 (pelo menos), impedindo-se a resolução do contrato. A dívida que se acumular nesse período, deverá ser paga em parcelas até 30 de junho de 2022, como se fez na Alemanha. No caso de falsidade na declaração do locatário, os benefícios concedidos são imediatamente revogados e pode ser prevista uma multa, sem prejuízo do despejo. Na referida proposição se ressalva a possibilidade, sempre aberta, ao acordo das partes e ao pagamento parcial.
No nosso entendimento, essa disposição tranquiliza o locatário neste momento, pois lhe assegura a moradia e o imóvel no qual tem o seu negócio (não residencial), e preserva ao locador a integralidade do aluguel, embora parcelado, e a manutenção do contrato. Não é uma moratória, de forma que não interfere nas garantias da locação. De outra parte, não se cai na generalização, como constava da redação original do Projeto Anastasia, porque alcança somente aqueles que foram efetivamente afetados pelos efeitos da pandemia com a impossibilidade do pagamento.
É necessário lembrar que o despejo por falta de pagamento não poderá ser concedido liminarmente (art. 9º do projeto aprovado), de forma que ao locador apenas se impõe o parcelamento da dívida, se não houver acordo, visto que a falta de pagamento não determinará o despejo durante esse período de pandemia. Não é pedir muito em favor da manutenção do contrato, diante da recessão que se avizinha. Para inibir o oportunismo há sanções relevantes.
A minha proposição não foi considerada, porque o Senado optou pela supressão do art. 10 do projeto. O projeto aprovado ficou no meio do caminho. A locação tem um efeito social difuso e o potencial de congestionar o Judiciário, como já ocorreu em outros momentos. As consequências de um desarranjo nesse mercado poderão agravar ainda mais a crise.
A suspensão dos pagamentos dos aluguéis é medida que já foi adotada por vários países. A alternativa para o caso de locatários que perderam a capacidade de pagamento é o despejo. Não há meio termo para quem não tem condição de pagamento. Para o locador, o despejo importa em não receber os aluguéis e o difícil caminho da execução. A desocupação do imóvel neste momento certamente trará a dificuldade para recolocação do imóvel em uma nova locação. Tudo indica que viveremos um período de recessão econômica. O valor do aluguel em nova locação será substancialmente reduzido pelo mercado. Por tudo isso a melhor solução é aquela que procura preservar o contrato, inclusive pelos seus efeitos sociais.
O projeto, em outro ponto, interferiu em prazos de prescrição e decadência. Se em favor do impedimento ou suspensão da prescrição se pode reconhecer ponderáveis razões, em relação à decadência não se vê motivos a justificar a medida. O projeto fere o princípio expresso no art. 207 do CC, no sentido de que não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição. Essa medida poderá trazer efeitos indesejáveis nas relações jurídicas.
O projeto também estabeleceu norma interpretativa, dizendo que não são fatos imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial e a substituição do padrão monetário (art. 7º). Note-se que a norma não se aplica às relações de consumo. É uma norma com o inequívoco propósito de afastar do juiz a qualificação jurídica desses fatos, com receio da interpretação que poderão receber na jurisprudência para revisar contratos. Não é o caso de estabelecer interpretação do direito vigente por norma emergencial e transitória, nem é o caso se atribuir a fatos qualificação jurídica. Não é função da lei.
Há outras disposições do projeto que suscitam dúvida. Merecem atenção a interferência nas sociedades empresárias (art. 14) e a possibilidade de declaração e distribuição de dividendos. As empresas deveriam se manter capitalizadas neste momento e bem se justificaria uma restrição à distribuição de lucros. No entanto, o projeto foi em sentido contrário, facilitando esse pagamento. No campo da concorrência se excluiu a ilicitude de operações tipificadas na Lei de Defesa da Concorrência. A pandemia não é salvo-conduto para infringir a ordem econômica. Melhor, a meu ver, seria eliminar essas disposições.
Cuidou o projeto, ainda, de questões menores, de pouca ou nenhuma relevância para enfrentar o grande desafio que se apresenta com a pandemia. É o caso da suspensão de prazos para o inventário (arts. 18 e 19) e da suspensão do direito de arrependimento do consumidor (art. 8º). Deixou de fora, contudo, muitos outros temas candentes, como os financiamentos imobiliários, alienação fiduciária, compromissos de compra e venda de imóveis, incorporação, planos de saúde, contratos de prestação de serviços educacionais, contratos financeiros em geral etc.
Roga-se aos senhores deputados, portanto, que não se deixe passar mais esta oportunidade para dar um pouco de tranquilidade aos brasileiros, que já têm muitos motivos para se preocupar. O maior de todos os erros, escreveu Sidney Smith, é não fazer nada só porque se pode fazer pouco. Faça o que lhe for possível.
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*Carlos Alberto Garbi é professor de Direito Privado. Mestre e Doutor pela PUC/SP. Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Advogado e Consultor. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.