Este artigo foi motivado em despacho proferido em processo administrativo1, cujo objeto foi a validação pela Receita Federal do Brasil – RFB do exercício do direito de contribuinte à suspensão do Imposto sobre Produtos Industrializadas (IPI) na aquisição de matéria-prima (MP), produto intermediário (PI) e material de embalagem (ME) empregados na industrialização de produtos de tecnologia e informação conforme as regras do Processo Produtivo Básico (PPB).
O referido direito à suspensão do IPI foi inicialmente previsto nos parágrafos 1º e 4º, ambos do art. 29 da lei 10.637/02, os quais, na redação original, em síntese, estabeleciam que os estabelecimentos industriais dos produtos de que trata o § 1o-C do art. 4o da lei 8.248/91, e que gozassem do benefício de redução do IPI referido no caput do mencionado artigo, teriam o direito de adquirir no mercado interno ou importar MP, PI e ME com a suspensão do IPI.
O exercício do direito à suspensão do IPI concedido às empresas beneficiárias da Lei da informática é regulamentado pelo art. 11 da Instrução Normativa RFB nº 948/09, o qual além de repetir os termos dos parágrafos 1º e 4º, ambos do art. 29 da lei 10.637/02, determina que o estabelecimento adquirente das MP, PI e ME: (i) declare ao estabelecimento fornecedor que atende os requisitos da lei; e (ii) apresente à Receita Federal de seu domicílio fiscal os produtos que elabora e as peças e partes que irá adquirir nos mercados interno e externo.
Muito embora a instrução normativa determine que a declaração do contribuinte não demande a formalização de processo administrativo, na prática e em atendimento às formalidades procedimentais, é instaurado um processo administrativo, o qual é encerrado por despacho fundamentado apontando o atendimento ou não pelo contribuinte dos requisitos exigidos na lei, bem como reconhecendo ou não o direito à suspensão do IPI. Ademais, no caso de não reconhecimento do direito à suspensão, é determinado o encaminhamento do processo à equipe de fiscalização para averiguação de possível infração tributária.
No caso concreto analisado pelo despacho que motivou o presente artigo, após a declaração prestada pelo contribuinte à Receita Federal do Brasil (RFB), na fase fiscalizatória, foi-lhe solicitada a apresentação de documentos que comprovassem o atendimento ao PPB. Uma vez comprovado o cumprimento dos requisitos do PPB, foi proferido despacho não reconhecendo o direito à suspensão do IPI, sob o fundamento de que a lei 13.969/19 havia revogado § 1o-C do art. 4o da lei 8.248/91 e, portanto, o inciso II, do art. 11 da IN RFB 948/09 teria perdido a validade. A partir de tal fundamentação, a autoridade fiscal concluiu que o contribuinte não atendia as condições legais para fruição da suspensão do IPI na aquisição de insumos.
A despeito da possibilidade da discussão acerca da validade de um auditor fiscal declarar a perda de validade de dispositivos de uma instrução normativa sem que tenha havido a revogação expressa, ou a expedição de um ato interpretativo, ou ainda de uma solução de consulta interna apontando a incompatibilidade do citado dispositivo; deste ponto em diante, analisaremos tão somente o novo tratamento dado pela lei 13.969/19 ao direito da suspensão do IPI usufruído pelas empresas produtoras de bens da informática, bem como demais elementos que infirmam a conclusão de revogação do benefício em questão.
Pois bem, desde logo, é necessário registrar que a lei 13.969/19 deu nova configuração ao tratamento tributário tanto ao IPI devido pelas empresas do setor de informática e automação (tecnologia e comunicação), bem como ao benefício fiscal usufruído pelas empresas do referido setor, a fim de que continuasse sendo possível superar a falta de competividade proporcionada pelo modelo de negócio brasileiro (falta de infraestrutura, burocracia, insegurança jurídica, complexidade do caótico sistema tributário2 etc.).
Assim, ao dar nova configuração aos benefícios fiscais usufruídos pelas empresas beneficiadas pela lei 8.248/91, a lei 13.969/19 teve que avançar para adequar todo o sistema de tributação do IPI ao qual as referidas empresas estão submetidas. Nesse sentido, uma das alterações promovidas pela lei 13.969/19 foi a alteração do parágrafo 1º, do art. 29, da lei 10.637/02.
A alteração legislativa em comento implicou: (i) na revogação da alínea "c", do parágrafo 1º, do art. 29, a qual fazia referência ao direito à suspensão do IPI na aquisição de MP, PI e ME pelos contribuintes industriais dos bens relacionados no §1º C do art. 4º, da lei 8.248/91; e (ii) na introdução do inciso III ao parágrafo 1º, do art. 29 da lei 10.637/02, de forma a estabelecer que partir da produção de efeitos da lei 13.969/19, o direito à suspensão do IPI na aquisição de MP, PI e ME por empresas do setor de informática e automação que industrializem os produtos relacionados no art. 16-A, da lei 8.248/91 e que façam jus ao benefício fiscal previsto no art. 4º da referida lei 8.248/91, com as alterações trazidas pela lei 13.969/19.
Perceba-se que, embora na prática, a modificação legislativa não tenha alterado o fundamento ou limitado o direito à suspensão do IPI; do ponto de vista formal, a fruição do direito à suspensão do IPI tem por pressuposto que o estabelecimento industrial se dedique à fabricação dos bens relacionados no art. 16-A, da lei 8.248/91 e não mais no revogado §1º C, do art. 4º, da lei 8.248/91. Ademais, vale observar também que o deslocamento formal do direito à suspensão do IPI, em aquisições no mercado interno, da alínea "c", do §1º, do art. 29, da lei 10.637/02 para o inciso III do referido art. 29, não afetou em nada o direito à suspensão do IPI na importação dos insumos previsto no §4º, eis que tal dispositivo se aplica aos contribuintes que se enquadram em algumas da hipóteses previstas em um dos três incisos do §1º, do art. 29, da lei 10.637/02.
Ainda que se tenha alterado o critério formal para a qualificação do contribuinte ao exercício do direito à suspensão do IPI, resta incontroverso que o benefício foi introduzido, mantido e regulado por lei ordinária, instrumento legislativo adequado para criar direitos e obrigações, notadamente no direito tributário.
Ainda que fosse verossímil o argumento de revogação tácita do inciso II, do art. 11 da IN RFB 948/09, ou de sua perda de eficácia, a autoridade fiscal jamais poderia ter ignorado que o direito à suspensão do IPI continuava previsto em lei ordinária. Instrumento legislativo esse que deve ser respeitado e cumprido, independentemente da existência de instrução normativa regulando questões procedimentais em relação ao exercício do referido benefício. Todavia, o erro do despacho que rejeitou o direito à suspensão do IPI não se limitou à mitigação do princípio da legalidade, eis que também evidenciou uma leitura apressada da lei 13.969/19, notadamente no que diz respeito à data de produção dos efeitos da nova legislação.
Nesse sentido, tem-se que nos termos do art. 16 da lei 13.969/193, seus dispositivos normativos somente passaram a produzir efeitos a partir de primeiro de abril de 2020, sendo que o despacho administrativo ocorreu muito antes de referida data.
E de outra forma não poderia ter agido o legislador, eis que a nova Lei promove profunda alteração da sistemática do IPI e do benefício fiscal para as empresas do setor de informática e automação. Pela nova sistemática, as empresas do referido setor passarão a ter um débito maior de IPI, eis que para atender a imposição da OMC, o benefício fiscal foi migrado da redução do IPI para créditos financeiros de IRPJ e de CSLL. Por consequência, em respeito aos princípios da anterioridade, não surpresa, segurança jurídica, previsibilidade do direito e praticabilidade no que diz respeito à adequação da legislação e definição dos sistemas e procedimentos para controle do novo benefício fiscal, o legislador federal entendeu necessário prorrogar a produção de efeitos para o começo do segundo trimestre de 2020.
Com isso, tem-se que a revogação do §1ºC, do art. 4º, da lei 8.248/91, ou pelo menos a interrupção do vigor da norma, somente ocorrerá a partir de 1º.04.2020. Uma conclusão imediata que se tem acerca da entrada em vigor da lei13.969/19, é a de que o inciso II do art. 11 da IN RFB 948/09 continua em pleno vigor, produzindo efeitos e com conteúdo de pertinencialidade, suportado tanto pelo art. 4º da lei 8.248/91, quanto do art. 29 da lei 10.637/02 sem as alterações provocadas pela lei 13.969/19. A segunda conclusão, é a de que a Receita Federal deveria ter adequado o texto do art. 11 da IN RFB 948/09 no primeiro trimestre de 2020, o que ainda não foi realizado e espera-se que o seja feito, de forma a evitar que os contribuintes sejam prejudicados por interpretações apressadas, tal como ocorrido no caso aqui relatado.
Por fim, é preciso anotar que após apresentação das considerações acima, o despacho denegando o direito à suspensão do IPI foi revisto pelo auditor fiscal em despacho fundamento, mantendo, pois, a integridade do sistema. Postura essa desejável e que é exemplo da relação desejada entre Fisco e Contribuinte para a solução de conflitos sem a necessidade do contencioso administrativo ou judicial.
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1 Cujos dados de identificação são omitidos por questão de sigilo fiscal e profissional.
2 Exemplos do caos tributário e da insegurança jurídica são, em matéria de IPI, dentre outras, a mudança jurisprudencial sobre a incidência do IPI na revenda de produtos importados e a recente decisão do STF sobre a possibilidade de aproveitamento de crédito de IPI decorrente de aquisição de produtos advindos da Zona Franca de Manaus não sujeitos à tributação do referido imposto. Decisão essa que além de mudar posição pacífica jurisprudencial, implicou na alteração da estrutura empresarial já sedimentada, com a revisão de planos de negócios de forma a levar empresas para a Zona Franca de Manaus a fim de que parte da cadeia tenha direito aos créditos de IPI.
3 "Art. 16. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e produzirá efeitos a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente à sua publicação".
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*Luciano Burti Maldonado é sócio da banca Ferreira Pires Advogados. Mestre em Direito Tributário pela FGV-SP.