As medidas de salvaguarda e o protecionismo disfarçado
Antonio Garbelini Junior*
As medidas de salvaguarda em questão, conforme constante da Proclamação nº 7529, editada pelo Presidente dos EUA, em de março de 2002, consistiam na imposição de sobretaxas de 8% a 30% sobre os produtos importados, que, supostamente, estariam prejudicando a indústria siderúrgica norte-americana. Ficaram, entretanto, fora de tal restrição os produtos similares importados do Canadá, Israel, Jordânia e México.
Vários países exportadores dos produtos afetados pela sobretaxa imposta, entre eles o Brasil, insurgiram-se contra as referidas medidas de salvaguarda, solicitando a intervenção da OMC. O Painel estabelecido pelo Órgão de Solução de Controvérsias, após o insucesso da fase de consultas mantidas entre as partes interessadas, opinou pelo reconhecimento da ilegalidade das medidas adotadas pelo EUA, por entender que as mesmas violavam diversas disposições do GATT e do Acordo sobre Salvaguardas.
Inconformados com tal posicionamento, os EUA apelaram da decisão do Painel para o Órgão de Apelação da OMC. Entretanto, não obtiveram o sucesso desejado, já que o mencionado órgão recursal manteve, com pequenas alterações não significativas, o mesmo posicionamento do Painel, reconhecendo várias infrações às disposições do GATT e do Acordo sobre Salvaguardas advindas das medidas adotadas pelo governo norte-americano.
Registre-se que não é cabível a interposição de outro recurso contra o entendimento adotado pelo Órgão de Apelação da OMC, o qual somente não será adotado pelo Órgão de Solução de Controvérsias se esse último rejeitar, por consenso negativo, aquela recomendação, o que é pouco provável de acontecer, já que os países membros beneficiados com o posicionamento manifestado pelo Órgão de Apelação, entre eles o Brasil, certamente irão votar favoravelmente à aceitação de suas recomendações.
É, portanto, digno de nota, que um dos grandes benefícios trazidos com a criação da OMC foi a alteração radical na forma pela a qual o Órgão de Solução de Controvérsias se manifesta a propósito das sugestões feitas advindas do Painel ou do Órgão de Apelação. Na sistemática do antigo GATT (1947), as decisões somente eram adotadas por consenso geral (a parte derrotada deveria também concordar com a sua “condenação”), o que, na prática, tornava impossível a imposição de qualquer penalidade ao “membro infrator”, o que não mais prevalece sob a égide da OMC.
Dessa forma, a próxima fase do procedimento que se encontra em tramitação, perante a OMC, será a de implementação da decisão adotada pelo Órgão de Solução de Controvérsias, no sentido de serem retiradas as medidas de salvaguarda imposta pelos EUA sobre produtos siderúrgicos que especifica. É nesse momento que grandes entraves à implementação dessa decisão poderão ocorrer. De fato, o sistema de solução de conflitos na OMC é baseado na premissa de que as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias não devem possuir um caráter “condenatório”, mas somente o reconhecimento da violação do GATT ou de Acordo firmado entre os membros da OMC, concedendo-se, assim, ao membro infrator, a possibilidade de livremente sugerir a forma de implementação da decisão dos mecanismos mais adequados para devido cumprimento do Acordo violado.
Caso o tempo ou a forma sugeridos pelo membro infrator para a implementação da respectiva decisão não sejam aceitos pelos membros reclamantes ou pelo Órgão de Solução de Controvérsias, poderá ser determinada a realização de arbitragem ou de novo Painel dispondo sobre o tema, com vistas a estabelecer o prazo razoável para implementação, ou a realização de novo Painel, para definir a forma de implementação da decisão em questão.
Assim, é possível perceber que o procedimento para a resolução de um conflito que envolva a aplicação de medidas de salvaguarda poderá ser bastante extenso e demorado. No caso das medidas de salvaguarda adotadas pelos Estados Unidos, a mesmas foram adotadas há mais de um ano e meio, devendo ainda surtir efeitos pelo menos por mais seis meses, até que ocorra uma efetiva implementação, em caráter definitivo, da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias.
Não se pode esquecer, nesse mesmo contexto, que, na prática, os EUA podem decidir simplesmente não implementar a decisão em comento, ficando, nessa hipótese, sujeitos à imposição de medidas retaliatórias, por parte dos países membros demandantes, o que, todavia, por vezes acaba não ocorrendo, ou não sendo eficaz a potencial retaliação, isso em virtude do incontestável poder da economia norte-americana.
Tais circunstâncias confirmam a percepção de que, muitas vezes, é interessante e vantajoso para membros da OMC com economia forte, como é o caso dos EUA, a adoção de medidas de salvaguarda, ainda que ausentes os pressupostos para tanto, isso tão somente com o intuito de proteger determinados setores ineficientes de sua economia. É possível chegar-se a essa conclusão mediante a simples constatação de que os eventuais questionamentos, junto ao Órgão de Solução de Controvérsias, versando sobre alegações de inadequações de medidas de salvaguardas em face do GATT e do Acordo sobre Salvaguardas da OMC, podem levar até 2 anos para serem apreciados, o que, na prática, constitui tempo mais do que suficiente para viabilizar as proteções indevidamente pretendidas por tais membros da OMC.
Assim, serão muito bem vindas eventuais alterações no "Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias" (equivalente ao código de processo da OMC), que tenham por objetivo introduzir mecanismos de sanções ou de cognição sumária das alegações de práticas abusivas, como forma de impedir que o Acordo sobre Salvaguardas - instrumento importante e indispensável à proteção de setor da indústria doméstica ameaçado pelo aumento das importações de produtos similares em face de evento imprevisível - seja utilizado como forma de protecionismo disfarçado, em desacordo com o espírito que deve impulsionar a Organização Mundial de Comércio, que é o de promover práticas justas e eqüitativas de comércio internacional.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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