Migalhas de Peso

O exemplo norte-americano: tutela das relações de crédito

Parece-nos que o ordenamento jurídico brasileiro contém previsões capazes não somente de proteger o interesse do devedor lesado por uma conduta oportunista de terceiro que venha a intervir na relação contratual válida e anteriormente estabelecida.

13/4/2020

Chama especial atenção a notícia de que, a despeito de encomendas de máscaras e outros equipamentos de proteção já realizadas e formalizadas pelo Brasil à China, os Estados Unidos intervieram em tal relação comercial, oferecendo preços maiores pelos produtos. E a China optou por vender os equipamentos prometidos ao Brasil para os americanos.

A situação repetiu-se com a França: máscaras encomendadas pelo país europeu foram compradas por americanos, na pista de aeroportos chineses, por preços três, quatro vezes maiores do que haviam sido adquiridas pelos franceses.

Se, por um lado, os fatos agridem o sentimento comum de justiça, por outro, criam a legítima preocupação de que a conduta passe a ser comumente adotada no nosso próprio país, inclusive entre particulares, especialmente se considerarmos os riscos de desabastecimento de bens de consumo relevantes à sociedade, já que entre as medidas adotadas para conter a propagação do vírus está o fechamento, ou pelo menos a redução, da atividade fabril e severas restrições ao comércio.

Estaríamos diante do que a doutrina estrangeira denomina como “efficient breach”, quando, levando-se em conta os custos decorrentes do descumprimento de determinada obrigação contratual e as possibilidades de ganho a partir da celebração de um novo contrato, revela-se economicamente mais vantajoso para o devedor o descumprimento do pacto originário e o engajamento em outras possibilidades que levem a maiores ganhos1.

No que diz respeito à tal legítima preocupação,  pensamos que o direito brasileiro possui arcabouço jurídico sólido para, no âmbito das relações entre particulares, reprimir tais condutas — não apenas a conduta da parte que descumpre deliberadamente o contrato inicialmente encetado para obter maiores ganhos econômicos, mas também a conduta do terceiro que intervém na relação jurídica originária com o fim de obter benefício ilícito.

Com efeito, o nosso ordenamento jurídico confere ao credor lesado pelo descumprimento da obrigação de fazer, de não fazer e de dar a possibilidade de requerer, judicialmente ou em demanda arbitral, o seu cumprimento específico por parte do devedor inadimplente. A partir do julgamento de procedência da ação — ou mesmo do deferimento do pedido de tutela antecipada, sujeito às respectivas regras —, será fixado prazo para o cumprimento da obrigação, com a possibilidade de imposição de multa em caso de descumprimento e determinação de busca e apreensão de bens, entre outras medidas com a finalidade de obter o resultado equivalente ao cumprimento da obrigação.

Há, também, previsão clara no sentido de que a obrigação somente será convertida em perdas e danos se o seu cumprimento específico ou a obtenção de resultado equivalente for impossível (autoriza-se também a conversão se o próprio credor a pedir).

Desse modo, pensamos que tais regras impedem — ou ao menos desencorajam  — que o devedor de determinada obrigação opte por deliberadamente descumpri-la, baseando-se tão somente no cálculo da indenização que seria devida ao credor lesado, já que por aqui existem normas que lhe imporiam o cumprimento da obrigação específica e, ainda, o pagamento dos danos financeiros que a conduta faltosa der causa (que podem superar, em muito, o valor do próprio contrato, já que a regra basilar atinente à reparação civil determina que a indenização mede-se pela extensão do dano).

Por óbvio, poder-se-ia imaginar a situação em que determinados bens, indevidamente vendidos e entregues a terceiro antes da entrega ao credor originário, simplesmente se esgotem no mercado. Nessa situação, entendemos que, ao pedido de cumprimento específico da obrigação descumprida, deve-se somar o pedido de declaração de invalidade do contrato celebrado posteriormente — e, no caso da compra e venda, aperfeiçoado por meio da entrega dos bens — por impossibilidade física do objeto, com a necessária condenação da parte faltosa ou do terceiro à entrega dos bens ao credor originário.

Ao devedor faltoso, o ordenamento jurídico responde impondo-lhe o cumprimento específico da obrigação e, ainda, a obrigação de pagar os eventuais prejuízos financeiros que vierem a ser comprovados. E ao terceiro, que intervém dolosamente para obter a prestação já prometida a outrem? Qual a resposta conferida pelo ordenamento e qual o seu fundamento?

Já faz alguns anos, a doutrina brasileira passou a defender uma relativização da regra basilar do direito contratual, segundo a qual os contratos criam direitos e obrigações somente para as partes contratantes, sob o fundamento de que, em não raras situações, os contratos atingem também a esfera jurídica de terceiros, que, ao mesmo tempo em que não podem ser prejudicados, tampouco podem prejudicar as relações de crédito decorrentes dos ajustes2.

Tal entendimento recebeu o nome de tutela externa do crédito e baseou-se, em especial, no princípio da função social do contrato, expressamente acolhido pelo Código Civil; tal princípio informa que os contratos, enquanto objeto de tutela do ordenamento jurídico, não devem encampar tão somente os interesses das partes contratantes, mas também os interesses da sociedade em que tais contratos se inserem, criando uma relação de interdependência e respeito mútuos entre as partes contratantes e a sociedade. Desse modo, se o interesse das partes contratantes não é respeitado por terceiro alheio ao ajuste, o que leva a frustração da função social originariamente prevista para aquele contato, o terceiro faltoso deverá responder pelos prejuízos causados.

Não se poderia deixar de destacar que o ordenamento jurídico brasileiro contém cláusula geral de responsabilidade civil subjetiva, a qual impõe àquele que viola direito de outrem e causa danos — isto é, comete ato ilícito — a obrigação de repará-los. Desse modo, também com base na regra geral de responsabilidade civil, se o terceiro intervier em uma relação contratual cujo conteúdo seja por ele conhecido, violando o direito e a expectativa de crédito validamente detidos pelo credor originário, não há dúvidas de que se estará diante de um ato ilícito, que deve ser reparado na exata medida dos danos causados3.

Com base em tais considerações, parece-nos que o ordenamento jurídico brasileiro contém previsões capazes não somente de proteger o interesse do devedor lesado por uma conduta oportunista de terceiro que venha a intervir na relação contratual válida e anteriormente estabelecida — conferindo-lhe a possibilidade de obter o cumprimento específico da obrigação contratada e a indenização por perdas e danos —, mas também aptas a coibir tal indesejada conduta, por possibilitar a condenação do terceiro à indenização de todos os danos e prejuízos que der causa.

Se o exemplo norte-americano entristece, resta-nos a confiança de que, caso tal conduta venha a ser adotada por particulares brasileiros, nossos tribunais e julgadores não hesitarão em tutelar as relações de crédito existentes e validamente criadas a partir nas normas e princípios aqui estabelecidos.

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1 “Many economically-oriented writers on breach of contract have focused on what is called the theory of efficient breach.An efficient breach is a breach that fosters a utilitarian, aggregate measure of social welfare, because the breach would lead to avoidance of unduly costly performance or would allow sale of a good to a third party willing to pay more than the promisee.” (Shavell, Steven. Is the breach of contract Immoral? In Clique aqui.) Fazemos referência ao debate realizado pelo "Grupo de Estudos em Direito Contratual e Comparado" do Instituto de Dirteito Privado "IDIP" em 2019, no Rio de Janeiro, especialmente à entrevista concedida pelo Prof. Oren Bar-Gill, de Harvard.

2 “Sendo o direito a normatização da experiência concreta segundo certos valores, necessidades e técnicas, passou-se a perceber, de uns tempos para cá, que determinadas situações contratuais possuíam, sim, mais que eficácia intersubjetiva: atingiam, real ou potencialmente, a esfera de terceiros, criando-lhes deveres de abstenção e, até mesmo, deveres positivos, ou ‘promocionais’”.

(Martins-Costa, Judith. Zeca Pagodinho, a razão cínica e o novo Código Civil Brasileiro. In Clique aqui)

3 Nesse sentido, Luciano de Camargo Penteado: “O que importa salientar, entretanto, é que a tutela externa do crédito é feita pela responsabilidade civil, sendo que o efeito contratual perante terceiro sequer configura-se como dever específico, resumindo-se no dever geral de respeito à pessoa e ao patrimônio dos demais. Daí que a responsabilidade do terceiro pela violação seja resolvida pelos institutos da responsabilidade civil.” (In. Efeitos Contratuais perante Terceiros. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p 289).

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*Luiza Perrelli Bartolo é sócia do escritório Raphael Miranda Advogados.

*Raphael Miranda é sócio do escritório Raphael Miranda Advogados.

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