Existem três categorias de crimes orbitando o estado de pandemia em que nos encontramos: os crimes de resultado (lesão corporal e homicídio), os crimes de perigo (artigo 132 do CP) e os crimes de mera desobediência (artigos 268 e 330 do CP).
Os crimes de resultado são aqueles que efetivamente acarretam dano a outrem, como a lesão corporal e o homicídio. Embora teoricamente possíveis, é muito difícil alguém responder criminalmente pela sua prática. Ainda que o sujeito queira usar o vírus que porta para matar ou tentar matar alguém, a arma de que faz uso é invisível, invisível é também a lesão que causa, e igualmente invisível o nexo causal da conduta com o resultado. Nas doenças venéreas é possível identificar com mais chance de certeza o momento da contaminação. Mas como fazer isto no caso de um vírus que se transmite tão facilmente como o Corona? Como determinar a forma como se deu o contágio?
É por isto, ou seja, ante a natural dificuldade de aplicar os tipos de homicídio e lesão, que o legislador precisou antecipar a tutela penal criando outras duas camadas de proteção do bem jurídico.
Primeiro com crimes de perigo como o do artigo 132:
“Expor a risco a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente”
Pena: detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não configura crime mais grave.
Trata-se de crime que só se configura na forma dolosa, de perigo concreto. A ação ou omissão precisa por em risco a saúde de pessoa determinada (outrem). O próprio crime do artigo 267 do Código Penal – “causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos” – merece a nossa atenção. Afinal, aludido tipo se aplica apenas ao causador originário da epidemia, ou também àquele que colabora para sua propagação? A primeira hipótese parece mais consentânea com a redação do tipo, mas se mostra de aplicação praticamente impossível, por pressupor que seria possível encontrar e punir o agente originador de uma epidemia, a menos que se pense na hipótese de criação de germes em laboratório. A segunda hipótese, embora mais factível, não reflete, a nosso ver, a precisa descrição da conduta, seria uma expansão do tipo penal para atender as contingências emergenciais do momento, algo sempre perigoso no terreno do direito penal.
Não bastassem os crimes de perigo, o legislador vai além, prevendo crimes de mera desobediência, delitos que em si podem não acarretar qualquer dano ou risco de dano, mas mesmo assim se perfazem caso haja a realização da conduta.
No caso do COVID-19, a Portaria Interministerial de 5 de março de 17 de março de 2020 estabelece regras de isolamento e quarentena, e nos artigos 4º e 5º causa certa surpresa ao dizer que o descumprimento das medidas ali previstas pode sujeitar responsabilização criminal pelos tipos dos artigos 268 e 330 do CP.
Qual a natureza desta remissão ao código penal? Seria uma foram de criar ou complementar o tipo penal? Nenhuma das duas. Na verdade, a portaria não é instrumento jurídico adequado para dizer o que configura e o que não configura determinado tipo penal. Esta operação lógico-jurídica é da esfera de competência do judiciário e dos intérpretes da lei penal. Esta interpretação dá-se com a utilização das regras de aplicação da lei penal e da lógica jurídica e não por decreto, sobretudo do órgão que edita o ato normativo infralegal.
É o que devemos fazer, portanto, para entender até que ponto o descumprimento das regras estabelecidas pelo executivo, pode ou não configurar o crime do artigo 268, ou ainda do 330 do Código Penal.
A Portaria n. 356 do Ministério da Saúde e a Portaria Interministerial n. 5 de 2020 preveem duas principais espécies de determinações possíveis do poder público: o isolamento e a quarentena.
O isolamento é uma medida determinada sob prescrição médica. Ou seja, o poder público não determina isolamento de ninguém. Logo, cabe refletir se esta prescrição médica tem o condão de sujeitar aquele que a descumpre aos rigores do artigo 268 do CP. Parece-nos que não. É possível que particulares exerçam transitoriamente e sem remuneração função pública, como é o caso do jurado no tribunal do júri e do mesário nas eleições. Mas ambas atividades estão devidamente disciplinadas na lei federal de modo que possam atuar nestes casos como verdadeiros funcionários públicos para efeito da lei penal. O mesmo não pode ser dito acerca dos médicos durante a pandemia, cuja equiparação a agente do estado não recebe tratamento ou disciplina específica na legislação.
Por outro lado, a outra forma de isolamento, esta sim, diretamente promovida pelo poder público, é o isolamento recomendado, veja, recomendado e não determinado por agente de vigilância epidemiológica, ato pelo qual o agente sugere o isolamento de pessoa ou grupos de pessoas que, embora sem sintomas, possam ter mantido contato com pessoas infectadas. Ocorre que, conforme a própria Portaria Interministerial 5 estabelece, trata-se de mera recomendação que o agente de vigilância fará, e não uma determinação, de modo que também não parece possível que seu descumprimento acarrete punição pelo artigo 268 do CPP, que exige que a infringência seja a uma determinação do poder público, e não a uma mera recomendação.
O que restaria para se subsumir ao artigo 268 seria o descumprimento da medida de quarentena, esta sim, diferente da medida de isolamento, imposta pelo poder público por meio de ato administrativo emanado de autoridade municipal ou estadual. A grande questão, neste caso, porém, é a falta de clareza quanto às ordens emanadas do poder público com expressões vagas como “atividades não essenciais”, a gerar perplexidade e incompreensão sobre o alcance de tais proibições.
Caberá ao judiciário, com sensibilidade e bom senso estabelecer os casos que efetivamente merecem a incidência da norma penal daqueles em que os conflitos podem muito bem ser resolvidos de forma satisfatória na esfera administrativa.
Mais do que nunca o direito penal deve ser usado com parcimônia, em hipóteses excepcionais, apenas quando outra medida não se mostrar suficiente para proteger a saúde da população.
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