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Covid-19 e a recomendação 63 do CNJ para os processos de recuperação judicial

Embora as medidas recomendadas não sejam vinculativas, a uniformidade de interpretação normativa é relevante e positiva, no sentido de garantir maior previsibilidade para todo o sistema jurídico

9/4/2020

Diante da pandemia do covid-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou recomendação endereçada aos juízos das ações de Recuperação Empresarial e Falência, prevendo a aplicação de medidas mitigatórias frente aos severos impactos econômicos, no intuito de garantir a manutenção da atividade empresarial, preservação dos postos de trabalho e da renda dos trabalhadores.

A recomendação de 63, aprovada em sessão virtual realizada em 31.03.20, tem como objetivo principal a uniformização do tratamento aplicado aos procedimentos recuperatórios enquanto perdurar o cenário de crise gerado pelo novo coronavírus, conferindo maior previsibilidade e segurança jurídica.

Embora as medidas recomendadas não sejam vinculativas, a uniformidade de interpretação normativa é relevante e positiva, no sentido de garantir maior previsibilidade para todo o sistema jurídico – movimento que desde as reformas processuais de 2006 e que nos últimos anos, seja por debates acadêmicos, orientações do CNJ, doutrina e boas práticas, vem sendo aperfeiçoado - ao passo que cabe ao juiz avaliar, com autonomia, os casos concretos para aplicar ou afastar a norma.

As recomendações do CNJ em matéria recuperacional vão de encontro com posicionamentos que já estavam sendo adotados por alguns magistrados, em observância, essencialmente, ao princípio de preservação da empresa. Em resumo, as propostas são:

1. Priorizar o levantamento de valores em favor dos credores ou empresas recuperandas

O art. 1º prevê a necessidade de priorizar questões relativas ao levantamento de valores em favor de credores ou empresas recuperandas, com a correspondente expedição de Mandado de Levantamento Eletrônico, considerando a importância econômica e social que tais medidas possuem para o regular funcionamento da economia.

De uma maneira geral, já existe um movimento para buscar a alienação antecipada de ativos, evitando assim a depreciação e perda de valor, atendendo ao melhor interesse dos credores e da recuperanda, e, portanto, do sistema como um todo. No momento de crise econômica grave, em que o governo vem apresentando sucessivas medidas para dirimir os impactos, a liberação de recursos como prioridade se mostra em absoluta consonância com o atual momento vivido.

2. Suspender Assembleias Gerais de Credores (AGC) presenciais, autorizando, excepcionalmente, a realização na modalidade virtual

As Assembleias Gerais de Credores presenciais já convocadas devem ser canceladas, permanecendo suspensas enquanto durar a situação de pandemia, em observância as determinações das autoridades sanitárias. De forma que, excepcionalmente, verificada a urgência e no intuito de promover a manutenção das atividades empresariais da devedora, a recomendação prevê que os juízos autorizem a realização de AGC virtual, cabendo aos administradores judiciais providenciarem a realização, se possível.

A recomendação prevê medida similar da adotada no processo de recuperação judicial do Grupo Odebrecht, em que restou autorizado pelo juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, a continuidade da AGC em ambiente virtual (processo de 1057756-77.2019.8.26.0100). Apesar da decisão proferida no agravo de instrumento no TJ/SP (processo 2057008-03.2020.8.26.0000), que determinou a observância do prazo de 20 dias para apreciação do novo plano de pagamento proposto, a continuação da AGC está agendada para 14.04.20.

A votação se dará através de plataforma eletrônica específica, que permite a identificação dos credores participantes, assim como possui ferramentas para que as manifestações de vontade sejam exteriorizadas no ambiente virtual, inclusive por meio da abertura de microfones e com a possibilidade de visualização de documentos online, além do oferecimento de suporte técnico para garantir o acesso e participação dos credores. A administração judicial permanecerá exercendo a fiscalização, sendo responsável pela determinação de metodologia e protocolos a serem seguidos na manutenção da transparência do ato e da higidez da manifestação de vontade dos credores.

No mesmo sentido, em 01.04.20, a juíza Giovana Farenzena, da Vara de Direito Empresarial, Recuperação de Empresas e Falências da Comarca de Porto Alegre, deferiu o pedido de realização de AGC virtualmente, ressaltando a necessidade de publicitar o ato, visando a preservação da soberania do conclave.

Os ambientes virtuais são uma tendência mundial, independentemente do segmento. A propagação dos meios de comunicação digital possibilita amplificar as relações, autorizando uma maior difusão de ideias e, consequentemente, de negócios. O impacto para o Direito não é diferente, considerando que o processo eletrônico é uma realidade e que as audiências virtuais já há muito ocorrem. Não obstante a inexistência de previsão na atual Lei de Recuperações e Falências (lei 11.101/05), a AGC virtual já consta no projeto de modificação da lei que está pendente de votação.

Evidentemente que as novas tecnologias exigem um tempo para sua absorção pelos profissionais que as usam, além do fato de que uma AGC contempla muitos interesses e profissionais distintos, de forma tal que a crise gerada pelo covid-19 antecipa uma tendência, razão pela qual deverá ser observado caso a caso a possibilidade de sua aplicação, sob pena de lesar interesses de credores ou outros envolvidos.

3. Prorrogar o stay period nos casos em que houver necessidade de adiar a AGC

O prazo de duração da suspensão de 180 dias, estabelecido no art. 6º, §4º da lei 11.101/05, deverá ser prorrogado nos casos em que houver necessidade de adiamento da realização da AGC, permanecendo até o momento em que seja possível a decisão sobre a homologação, ou não, do resultado do conclave. A intenção externada é justamente a de proteger a empresa em recuperação. Assim, durante a pandemia deverá permanecer suspensa a exigibilidade dos créditos em face do devedor, preservando a unidade produtiva até a realização da AGC, momento em que será definido pelos credores o destino da empresa.  

Nesse sentido, em decisão proferida pelo juiz Tiago Henriques Papaterra Limongi, da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, processo de 1026155-53.2019.8.26.0100, restou autorizada a suspensão da AGC pelo prazo de 30 dias, com extensão do stay period pelo mesmo período.

A recomendação está em sintonia com o entendimento jurisprudencial predominante sobre a matéria, que vem relativizando a previsão contida no art. 6º, §4º, da lei 11.101/05, no sentido de estender o período de suspensão1. Ademais, observa-se que a conclusão da fase processual sempre se mostrou uma tarefa árdua, dado o grande volume de processos e a escassez de varas especializadas. Tal dificuldade fica altamente potencializada nos processos de recuperação judicial, em que o volume de valores, credores e interesses envolvidos são muitos, situações ora agravadas pela pandemia do covid-19. No mesmo sentido, observa-se que no PL 6.229/05, a redação do art. 6º, §4º prevê expressamente a possibilidade de prorrogação do prazo de 180 dias “por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal”.

4. Autorizar a apresentação de modificativo do plano de recuperação

Recomenda-se a autorização de apresentação de modificativo do plano de recuperação nos casos em que a devedora comprove a impossibilidade de cumprimento das obrigações em decorrência da pandemia de covid-19, desde que estivesse adimplindo com as obrigações assumidas no plano vigente até 20 de março de 2020.

Ainda, o parágrafo único do art. 4º, prevê que seja considerada a ocorrência de caso fortuito, ou de força maior, para fins de relativizar a previsão que determina a decretação da falência em caso de descumprimento do plano de pagamento (art. 73, IV, da lei 11.101/05), considerando que eventual incumprimento decorre justamente das medidas de distanciamento social impostas pelas autoridades públicas para o combate à pandemia.

A possibilidade de apresentar o modificativo atenderá a grande maioria das empresas, visto que o cenário em muito pouco espaço de tempo sofreu substancial modificação em razão de caso fortuito2 (previsto no art. 393 do Código Civil), que certamente afeta praticamente todos os setores empresariais e não apenas as empresas que já estão em recuperação judicial. O descumprimento do plano por caso fortuito enseja necessidade de reformulação pelo próprio princípio da preservação da empresa, manutenção dos empregos e maior interesse dos credores.

5. Determinar a manutenção das atividades de fiscalização da Administração Judicial, de forma virtual ou remota, com publicação dos relatórios mensais de atividade em meio eletrônico

A administração judicial deverá continuar com as diligências e fiscalizações de praxe das atividades das empresas recuperandas, de forma virtual ou remota, com apresentação dos relatórios mensais de atividades em suas respectivas páginas na Internet.

Veja-se que a fiscalização deverá ser mantida ao mesmo tempo que a colaboração no controle a pandemia deve ser atendida, através da adoção de medidas preventivas para a preservação da saúde dos funcionários, colaboradores e também da equipe da administração judicial. Assim, a utilização de meios eletrônicos permite o prosseguimento do acompanhamento e da fiscalização das atividades remotamente durante a pandemia. Ainda, no que se refere ao acompanhamento contábil, acredita-se que não sofrerá alterações, pois grande parte já se dá por meio digital.

6. Cautela no deferimento de medidas de urgência, decretação de despejo e realização de atos executivos em ações judiciais que demandem obrigações inadimplidas durante o estado de calamidade pública

Como medida de prevenção à crise econômica, é necessário que os juízos avaliem com especial cautela o deferimento de medidas de urgência, decretação de despejo por falta de pagamento e a realização de atos executivos de natureza patrimonial em desfavor de empresas e demais agentes econômicos em ações judiciais que demandem obrigações inadimplidas durante o período de vigência do decreto legislativo 6 de 20 de março de 2020, que declara a existência de estado de calamidade pública no Brasil em razão da pandemia do novo coronavírus.

Nesse sentido, observa-se que o juiz Willi Lucarelli, da vara única de Embu-Guaçu/SP, nos autos do processo de 1000809-97.2018.8.26.0177, deferiu pedido de suspensão do corte dos serviços de energia elétrica, água, luz, gás e internet, a fim de garantir a continuidade de empresa em Recuperação Judicial. Trata-se da aplicação do prestigiado princípio da preservação da empresa, a fim de evitar a decretação de falência em razão de caso fortuito, nos termos do art. 47 da lei 11.101/05.

Em resumo, as medidas recomendadas pelo CNJ representam importante passo para a mitigação da crise, contudo, muito ainda deverá ser feito, principalmente com relação aos agentes econômicos que precisarão se valer de medidas judiciais para fins de equacionar seus passivos e superar a crise.

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1 Nos termos da jurisprudência do STJ, o prazo de suspensão das ações e execuções na recuperação judicial, previsto no art. 6º, § 4º, da lei 11.101/05, pode ser prorrogado "caso as instâncias ordinárias considerem que tal prorrogação é necessária para não frustrar o plano de recuperação" (AgInt no REsp 1.717.939/DF, rel. ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe de 06.09.18).

2 PL 1.179/20, já aprovado pelo Senado, dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia, tendo reconhecido o enquadramento do covid-19 como caso fortuito.

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*Diego Fernandes Estevez é mestre em Direito pela PUCRS. Sócio do escritório Estevez Advogados.






*Caroline Pastro Klóss
é mestranda em Direito pela Universidade de Lisboa. Sócia do escritório Estevez Advogados.

 

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