Em meio à Pandemia ocasionada pela rápida propagação do COVID-19, bem assim diante da necessidade de isolamento social para evitar/mitigar o contágio entre a população, o mercado financeiro mundial já sente os fortes impactos da crise que se avizinha, de modo que, nada obstante a crise sanitária, todos se preparam para uma provável recessão após esse período.
O Poder Executivo, nas suas mais diversas esferas e atuações, vem promovendo uma série de medidas no intuito de minimizar o impacto da Pandemia no mercado. A produção legislativa, nessa toada, também tem sido grande. Há projetos de lei em trâmite visando alterar ou flexibilizar disposições legais até então vigentes com o objetivo de mitigar os efeitos da recessão e adequar circunstâncias jurídicas à essa nova crise global, sem precedentes.
O Projeto de Lei 1.179/20 (“PL 1.179/20”), de autoria do Senador Antonio Anastasia, é uma dessas produções legislativas, com o agravante de que já passou pelo crivo do Senado Federal, no Plenário de 03 de abril, sendo aprovado com algumas poucas alterações e segue para discussão e aprovação da Câmara dos Deputados. Em síntese, o projeto de lei, já aprovado pelo Senado, propõe alterações significativas em diversos dispositivos que constam regulados na lei 10.406/02 (“Código Civil”), sob à exegese de um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (“RJET”). Nada obstante o PL 1.179/2020 se volte para assuntos como prescrição e decadência, direito de família e sucessão, entre outros, preocupa-nos nesse momento a proposição a respeito das regras para revisão dos contratos que, no final das contas, afeta diretamente as relações civis e empresariais em tempos de crise.
Com efeito, em seu “Capítulo IV - Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos”, o PL 1.179/20 propõe que “não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário” (art. 7º).
Nesses termos, o PL 1.179/20 limita em muito – para dizer o mínimo – a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão aos Contratos, disciplinada nos artigos 3171, 4782, 4793 e 4804, todos do Código Civil, no ambiente empresarial e, principalmente, no mercado financeiro. À bem da verdade, o projeto de lei, se aprovado com esse texto, acaba por ser contraditório e ignora aspectos já constantes da legislação pátria para lidar com a situação de pandemia.
Em primeiro lugar, é preciso observar que o Código Civil, per si, já traz preceitos plenamente aplicáveis à pandemia, como é o caso da Teoria da Imprevisão / Onerosidade Excessiva, além, propriamente, das hipóteses excludentes de responsabilidade de caso fortuito e força maior. A rigor, esses dispositivos transpõem, a situações imprevisíveis, princípios básicos que nortearam o Código Civil de 2002, como o da socialidade5 que, na exegese da resolução e do reequilíbrio contratual por situações extraordinárias e imprevisíveis, pressupõe um compartilhamento de prejuízos. Em outras palavras, parece-nos que o Código Civil em vigor já estabelece hipóteses para enquadramento da situação de pandemia no que diz respeito aos contratos, de modo que tal previsão, no contexto do projeto proposto, seria desnecessária.
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1 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
2 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
3 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
4 Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
5 Nesse sentido, anote-se as considerações do prefácio do Professor Miguel Reale sobre o tema: “(...) Daí a opção, muitas vezes, por normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a preocupação do excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, que pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais. Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, o art. 113, na Parte Geral, segundo o qual ‘os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração’. E mais este: ‘art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.’ Lembro como outro exemplo o art. 422 que dispõe quase como um prolegômenos a toda à teoria dos contratos, a saber: ‘Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim como na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.’ Frequente é no Projeto a referência à probidade e a boa-fé, assim como à correção (corretezza) ao contrário do que ocorre no Código vigente, demasiado o parcimonioso nessa matéria, como se tudo pudesse ser regido por determinações de caráter estritamente jurídico.” (Pronunciamento do Prof. Dr. Miguel Reale na sessão de 29 de novembro de 2001, como membro da Academia Paulista de Letras-APL, reconstituído pelo Autor e publicado pela Academia);
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*Alexandre G. M. Faro é advogado do escritório Freire Assis Sakamoto Violante Advogados e Associados.
*Luíta Maria O. S. Vieira é advogada do escritório Freire Assis Sakamoto Violante Advogados e Associados.
*Elide B. de Lima é advogado do escritório Freire Assis Sakamoto Violante Advogados e Associados.