Migalhas de Peso

Covid-19, quarentena e o contrato educacional

A presente reflexão se pauta tão somente sobre cursos regulares da educação básica (pré-escola, ensino fundamental, ensino médio) e educação superior explorados pela iniciativa privada por meio de empresas com fins lucrativos (ou seja, essa reflexão não se aplica a cursos de idiomas, de esportes e de outras habilidades, tampouco a escolas mantidas em clubes, associações ONGs, etc.).

9/4/2020

A adoção profilática da quarentena, inicialmente voluntária e paulatinamente imposta pela administração pública, tem causado inúmeros impactos à sociedade civil, com severas consequências econômicas a todos os segmentos da economia. Nesse momento surge uma relevante (e legítima) preocupação com as consequências que a pandemia causará nas relações jurídicas já estabelecidas, dentre as quais os contratos educacionais.

A reflexão que faremos nesse artigo contempla especificamente os impactos que o covid-19 causará nos contratos de educação tendo em vista a preocupação dos estabelecimentos de ensino (em verem minguadas suas receitas vis a vis as obrigações de pagar funcionários, locações, segurança, seguros, etc.) e de suas contrapartes (pais e estudantes que amargam a perda de empregos ou redução de sua renda como consequência incontestável da desaceleração econômica experimentada nesse período).

Ministrando aula em diversas disciplinas de direito, notamos que existe uma grande compaixão com estabelecimentos escolares, quiçá pelo fato de serem extensões dos lares na formação das crianças, o que desencadeia  um comportamento fraternal baseado na preocupação com a capacidade (ou não) de estabelecimentos de ensino pagarem suas folhas de pagamento durante a crise, como se a escola não fosse um empreendimento explorado por empresários que exploram a mão de obra e que cobram pelos serviços prestados no ensejo de auferirem a mais valia, que embolsam mensalmente. O que pretendemos dizer com isso é que o estabelecimento escolar não é diferente dos demais empreendimentos que têm folhas de pagamento, tributos, contratos, credores e devedores e que, em momento de crise, devem contar com a gestão de seus proprietários mas não com a benevolência de seus clientes que não são responsáveis pelas obrigações da escola, tampouco titulares dos lucros da mesma. 

O correto enquadramento jurídico do tema dependerá da natureza do curso ministrado/contratado. A presente reflexão se pauta tão somente sobre cursos regulares da educação básica (pré-escola, ensino fundamental, ensino médio) e educação superior explorados pela iniciativa privada por meio de empresas com fins lucrativos (ou seja, essa reflexão não se aplica a cursos de idiomas, de esportes e de outras habilidades, tampouco a escolas mantidas em clubes, associações ONGs, etc.).

A Lei de Diretrizes Básicas da Educação, 9.394 de 20.12.96 dispõe no art. 6º, que “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade”, em absoluta sintonia com o art. 208, I da Constituição Federal. Já o art. 30 da LDB esclarece que a educação infantil será oferecida em creches (ou entidades equivalentes) para crianças de até 3 anos e 11 meses e em pré-escolas para crianças de 4 a 5 anos de idade. Já o art. 32 disciplina que o Ensino Fundamental se inicia aos 6 anos de idade.

Como se percebe, a educação infantil passa a ser obrigatória aos 4 anos de idade, razão pela qual a matrícula de crianças menores que 4 anos em creches (ou estabelecimentos congêneres) pode ser realizada a qualquer momento do ano, sem prejuízo ao conteúdo programático, pois inexistente um currículo obrigatório nessa etapa escolar que expõe as crianças a vivências e experiências. Como bem destacado pelo Ministério da Educação1, a exigência de cumprimento mínimo de 800 horas anuais na Educação Infantil se inicia na pré-escola e não na etapa que a antecede, disponível a crianças de até 3 anos e 11 meses.

A partir da pré-escola (de frequência obrigatória para as crianças de 4 a 5 anos de idade, quando o curso a ser oferecido passa a seguir diretrizes rígidas estabelecidas pela legislação ordinária e pela autorregulação do Ministério da Educação, das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação – o que inclui a observância de pelo menos 800 horas anuais divididas por no mínimo 200 dias letivosé que os estabelecimentos de ensino passam a se obrigar (contratualmente) perante os pais/crianças e demais órgãos de ensino a ministrar todo o conteúdo curricular de dado curso em certo ano-calendário.

Isto posto, a eclosão de uma pandemia que imponha severas restrições – tais como a quarentena – não desobriga o estabelecimento escolar que se dedique às fases escolares a partir da pré-escola a se reorganizar de forma a concluir o curso ofertado e o conteúdo programático, por mais que o faça com o uso de recursos tecnológicos de toda ordem (mediante ensino à distância, empregando ferramentas disponíveis via internet, desde que permitido pelos órgãos de gestão da educação) ou com o ajuste da carga-horária do curso - a partir da cessação dos efeitos da quarentena - conforme as diretrizes dos órgãos de ensino (Secretarias de Ensino e Ministério da Educação), observado o necessário reequilíbrio contratual no tocante a contraprestação. Vale salientar que oferecendo o estabelecimento escolar a opção de continuidade do curso (ou de parte dele) para fruição à distância, os gastos do estabelecimento de ensino possivelmente serão menores, além de os alunos não mais disporem de espaços diferenciados (como bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios, teatros, salas temáticas e de toda a infraestrutura de pessoal e apoio físico que regularmente teriam) o que deverá impactar, em contrapartida, num desembolso menor pelo contratante – sendo legitimas as revisões contratuais, nesse caso, com base no art. 6, inciso V, do CDC

Reforce-se que os contratos de prestação educacional a partir da pré-escola preveem conteúdo programático pré-determinado, prestado em espaço físico delimitado, com certo número de profissionais envolvidos e demais características que justificam valor específico para contraprestação. Assim, ainda que usualmente divida-se o valor total do negócio jurídico em 12 ou até 13 parcelas iguais e sucessivas, não há vinculação de determinado mês com especificas atividades. Portanto, a readequação do contrato outrora firmado deve incidir sobre o valor total do contrato e não estar atrelado ao desembolso pré-determinado para um mês ou outro em que se estabeleça a prestação dos serviços por meio diverso ao combinado originariamente, independentemente da situação de força maior, dada a impossibilidade de se transferir ao contratante os riscos do negócio explorado pelo contratado.

Tratamento absolutamente diverso é verificado nos contratos estabelecidos para o curso de etapas escolares anteriores à pré-escola, pois nesse momento escolar (para crianças de zero a três anos e onze meses de idade), a creche (ou berçário, maternal, kindergarten ou congênere) oferece às crianças experiências e vivências que podem ser aderidas a qualquer momento do ano – o que demonstra não haver um conteúdo programático indispensável, tampouco obrigatoriedade para que o curso preencha 800 horas anuais. De outra banda, um bebê com 8 meses que ingresse na creche em outubro deverá cumprir 800 horas até o final do referido ano letivo? Não nos parece ser a melhor interpretação.

Bem por isso, estabelecimentos de ensino que atendam crianças de até três anos e onze meses, ainda que disponham, em seus contratos, sobre valores anuais do curso, tal disposição deve ser interpretada como meramente ilustrativa para quem ingresse na escola no primeiro momento do ano. Parece, portanto, errônea a forma de cobrança (e aqui sem qualquer relação com a pandemia), pois o estabelecimento escolar, nesse cenário, não vende um curso a ser ministrado no ano, mas sim experiências e vivências para serem desenvolvidos em cada momento do ano (semana, mês, bimestre e assim por diante). Logo, a contraprestação devida ao respectivo estabelecimento escolar guarda estreita relação com o período efetivamente usufruído, o que, ao nosso ver, impediria tais estabelecimentos de ensino cobrarem por períodos nos quais não houve prestação (como eventuais férias de julho e outros períodos sem aula). O mais correto, portanto, seria o respectivo contrato prever o valor da mensalidade para as crianças de até 3 anos e 11 meses.

Em breve síntese, o que acima esposamos é que os estabelecimentos escolares de frequência obrigatória (a partir de 4 anos de idade) vendem a ministração de uma etapa escolar com regras e conteúdo curricular obrigatório, além de outras peculiaridades que os distinguem entre si (espaço físico, capacitação profissional e etc.), razão pela qual a interrupção das atividades escolares por dado tempo nem os impede de cumprir o conteúdo (realizando ajustes nos horários/métodos de ensino), tampouco desobriga o pagamento da contraprestação pelos contratantes (que, na realidade, parcelaram o valor do curso a ser concluído durante o ano) ainda que mostre-se admissível a repactuação do valor a ser pago, nas hipóteses de desequilíbrio do contrato de adesão – o que parece imprescindível em tempos de ensino à distância, ante a redução do custo e disponibilidade de serviços contratados originariamente; já os estabelecimentos escolares cuja frequência é voluntária (creches para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses), vendem a prestação de um serviço mensal baseado na oferta de experiências e vivências, sem obrigação de “entregar/concluir” um certo curso ao longo do ano, razão pela qual o pagamento que se realiza está intimamente ligado à contrapartida (vivências/experiências) ofertadas no período remunerado, relação sinalagmática por definição. 

Pois bem. Dispõe o Código Civil, no art. 884 sobre a disciplina do enriquecimento sem causa e, nesse sentido, estipula que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”. No art. 885, o Código Civil complementa indicando que “a restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir”.

O legislador deixou bastante claro que, uma vez deixando de existir a justa causa para dada remuneração (no caso em exame, a prestação de um serviço), essa contrapartida não mais poderá ser exigida sob pena de quem a receber ficar obrigado a restituí-la com atualização monetária. No caso em exame, a imposição da quarentena torna inexigíveis as cobranças pela prestação de serviços educacionais desempenhados em creches (para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses), mas não dos demais contratos celebrados para a pré-escola, ensino fundamental e ensino médio (ainda que passível de revisão contratual). Isso porque no caso das creches: (I) a escola não “vende” um curso a ser ministrado durante o ano letivo, mas sim experiências e vivências desvinculadas de uma grade curricular a serem ofertadas mensalmente, e (II) uma posterior ampliação do horário escolar para a compensação do período não cursado por crianças de 0 a 3 anos de 11 meses pode não ser possível (já que o tempo máximo permitido no ambiente escolar é de 10 horas diárias) ou mesmo desejada pelos pais/contratantes.

Convém frisar, também, que sobre o caso fortuito (evento imprevisível, mas evitável) e a força maior (evento previsível, mas inevitável) o art. 393 do Código Civil dispõe que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. No contato de prestação de serviços educacionais, enquanto o estabelecimento de ensino é devedor da obrigação de ministrar o curso, os contratantes são devedores da contrapartida. O que a lei dispôs, nesse sentido, é que cada parte não deve ser responsabilizada por prejuízos que a outra tenha auferido com o caso fortuito ou a força maior.

Com relação aos contratos celebrados para a pré-escola, ensino fundamental e ensino médio, vemos possível a aplicação do art. 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual se reconhece como direitos básicos do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Não há dúvida que a pandemia do covid-19 impactou reduzindo produtividade e causando inevitáveis perdas às rendas familiares ao passo que o fechamento temporário de escolas causará alguma redução das despesas às escolas (como energia, água, manutenções, transporte de funcionários, refeições a funcionários, uso de materiais escolares básicos, etc.). Assim sendo, inevitável cogitar, nesse caso (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) a possível revisão do contrato para reestabelecer um reequilíbrio.

A disciplina legal aplicável aos contratos escolares para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses seria o da resolução por onerosidade excessiva, baseado na teoria da imprevisão, com fundamento no art. 478 do Código Civil, segundo o qual “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Nesse caso, entendemos que justamente em razão de a escola não vender um “curso” (a ser concluído em dado ano-calendário), mas sim “experiências e vivências” a serem desenvolvidas sem vinculação a um conteúdo programático de currículo obrigatório, o que justifica interpretar que a contrapartida paga pelos pais corresponde ao serviço prestado pela escola, como já dissemos, em típica relação sinalagmática (ou seja, há íntima e indissociável relação entre a prestação e a contraprestação). Isto posto, ainda que por um acontecimento extraordinário e imprevisível, a escola tenha sido impactada na possibilidade de ofertar as vivências e experiências à criança e por mais que não exista culpa da escola nesse caso, entendemos que a lei permite aos pais a decisão de resolver o contrato independentemente de multas, observado que essa resolução poderá ser evitada desde que o prestador de serviços (escola) se ofereça a modificar equitativamente as condições do contrato, como descreve o art. 479 do Código Civil e contanto que a contraparte concorde com a proposta de modificação contratual equitativa, observado que nesse caso (creches) não haveria a possibilidade de substituição das atividades intramuros por orientações online pelo fato de se tratar, no caso, de transferência dos deveres da própria escola para a execução pelos contratantes (pais) mediante orientação online – situação bastante dissociada da função do ensino à distância para crianças em grau mais avançado de ensino.

Enfim, independentemente da possibilidade ou não de resolução do contrato ou de sua revisão para reestabelecer um equilíbrio (nem que seja temporário, durante o incerto tempo que a quarentena perdurará), a solução consensual sempre deve ser estimulada, evitando a escalada de litígios (o que sobrecarregará o judiciário e implicará em soluções que, no mais das vezes, podem não agradar a nenhuma das partes).

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*Alberto Gentil de Almeida Pedroso é juiz de direito, mestre, professor universitário, autor de obras jurídicas. 

*Arthur Zeger é advogado, mestre, professor universitário, sócio da banca Zeger Advocacia. 

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