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Retroatividade das normas benéficas em relação à prisão realizadas pelo pacote anticrime

Entre as mudanças, temos muitas benéficas, como a ausência de fundamentação, a revogação da possibilidade de se decretar medidas cautelares de ofício, a ausência de individualização da não aplicação das cautelas diversas da prisão, entre outras mais

9/4/2020

O pacote anticrime, aprovado e sancionado no dia 24 de dezembro de 2019, com entrada em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, alterou muitas normas penais e processuais penais. Dentre elas, as normas referentes às medidas cautelares pessoais, previstas nos artigo 282 do CPP e seguintes.

Entre as mudanças, temos muitas benéficas, como a ausência de fundamentação, a revogação da possibilidade de se decretar medidas cautelares de ofício, a ausência de individualização da não aplicação das cautelas diversas da prisão, entre outras mais.

Resta saber se as normas relacionadas às cautelares pessoais são de natureza material ou processual. Quando surge uma lei nova no decorrer de um processo penal, é necessário analisar a natureza em razão do direito intertemporal.

Sabe-se que as normas materiais devem seguir a regra insculpida no artigo 5º, XL da CF, que traz o princípio da irretroatividade, trazendo como exceção a retroatividade quando a norma for benéfica. A normas materiais tem por objetivo assegurar direitos ou garantias, podendo citar como exemplo a alteração trazida pela lei anticrime no artigo 157, que incluiu o emprego de arma branca como majorante.

Por outro lado, as normas processuais seguem a regra positivada no artigo 2º do CPP, aplicando-se de imediato, independente se é benéfica ou não, e permanecendo os atos já praticado inalterados, aplicando-se o princípio do tempus regit actum. As normas processuais regulam os procedimentos ou a forma dos atos processuais. Como exemplo, cita-se a forma de arquivar os inquéritos, alterada pela lei anticrime no artigo 28 do CPP.

Quanto às alterações do artigo 282, 311, 312, 315 e 316, são normas materiais, processuais, mistas ou heterotópicas?

As normas híbridas ou mistas são aquelas que trazem conteúdo material e processual. A título de exemplo, temos o artigo 366 do CPP, que fala sobre a suspensão do processo (processual) e a suspensão da prescrição (material).

Nestes casos, em razão de não poder fazer uma cisão da norma, aplica-se a regra do artigo 5º, XL da CF, ou seja, sendo benéfica, retroage, sendo prejudicial, é válida somente para fatos praticados na vigência da norma.

No caso de normas heterotópicas, as normas materiais estão inseridas em diploma processual, ou ao contrário. Neste caso, há de se avaliar se a norma é material, mesmo estando no diploma processual. No presente caso, aplicar-se-á o princípio da irretroatividade, bem como o da ultratividade, ou seja, se for prejudicial, a norma revogada continuará regulando os fatos praticados em sua vigência. Contudo, se a norma for processual, mas inserida em diploma material, deverá aplicar o princípio tempus regit actum.

O STF e o STJ já se pronunciaram quando à esta questão.

Assim, além da necessidade de o crime ser posterior à vigência da lei, por tratar-se de norma heterotópica, deve haver pedido formal, seja do Ministério Público ou da assistência da acusação. A providência é essencial para viabilização da ampla defesa e do contraditório. (…). Ante o exposto, nego seguimento ao agravo (art. 21, § 1º, do RISTF). Publique-se. Brasília, 06 de dezembro de 2013. Ministra Rosa Weber Relatora

(ARE 677265, relator(a): min. ROSA WEBER, julgado em 06.12.13, publicado em DJe-243 DIVULG 10.12.13 PUBLIC 11.12.13)

Informativo 0509 - Período: 5 de dezembro de 2012 – 6.ª Turma.

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. NORMA PROCESSUAL PENAL MATERIAL.

A norma que altera a natureza da ação penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. A norma que dispõe sobre a classificação da ação penal influencia decisivamente o jus puniendi, pois interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa, portanto, tem efeito material. Assim, a lei que possui normas de natureza híbrida (penal e processual) não tem pronta aplicabilidade nos moldes do art. 2º do CPP, vigorando a irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu, conforme dispõem os arts. 5º, XL, da CF e 2º, parágrafo único, do CP. Precedente citado: HC 37.544-RJ, DJ 05.11.07. HC 182.714-RJ, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19.11.12.

Mas as normas relativas às cautelares pessoais são mistas ou heterotópicas?

Entendo que se trata de normas heterotópicas. Quando se fala de restrição ou privação da liberdade, estamos diante de uma violação a um direito fundamental. A prisão atinge a liberdade. O referido artigo é um direito ao cidadão, garantindo a todos o direito de ir e vir. Trata-se, assim, de um direito fundamental. Ademais, estamos tratando diretamente do princípio da presunção de inocência, que também é um direito fundamental, onde todos têm direito de ser considerados inocentes até o trânsito em julgado. Essa é a norma fundamental garantida pela nossa Carta Magna. Assim, não há dúvida: quando se trata de norma referente às cautelares pessoais, há uma lesão ao direito fundamental à liberdade e à presunção de inocência.

Assim, quando há uma norma que visa alterar, modificar ou afetar de alguma forma esse direito, estamos diante de uma norma de natureza material, ainda que inserida em um diploma processual.

Norberto Avena1, traz assim em sua obra:

“No que concerne, especificamente, às modificações introduzidas pela Lei 12.403/2011, entendemos que os dispositivos relativos à prisão e liberdade provisória possuem natureza material, a despeito de inseridos em diploma que modifica o Código de Processo Penal, uma vez que dizem respeito à garantia constitucional da liberdade. Trata-se, enfim, de dispositivos heterotópicos.”

Com isso, tem-se entendido que, quando surge uma lei que reforma, revoga ou modifica de qualquer modo artigos que tratam de cautelares pessoais, tanto provisória quando definitiva, essa lei deve seguir a regra prevista no artigo 5º, XL da CF, aplicando-se somente a fatos posteriores à sua vigência, caso não seja benéfica ao réu. Caso seja benéfica, deve retroagir e regular os fatos anteriores.

Com isso, chega-se à conclusão que as alterações benéficas trazidas pela lei anticrime, quanto as medidas cautelares pessoais, devem retroagir e a decisão deve ser revista a fim de preencher os requisitos trazidos pela novatio legis in mellius.

Analisando a aplicação, o artigo 282 e o 311, ambos do CPP, retiraram a possibilidade de o magistrado decretar de ofício as medidas cautelares pessoais. Assim, havendo uma cautelar pessoal aplicada de ofício, a medida deve ser revogada ou, havendo requerimento, deve-se verificar se a efetividade ao processo está ameaçada, aplicando todas as alterações trazidas pela lei anticrime, com decisão motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifique a aplicação da medida adotada, além de prova de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

Tendo uma prisão preventiva decretada em decorrência imediata da investigação, da apresentação ou do recebimento de denúncia, a prisão deve ser revogada.

Importa também registrar que, se a decisão que decretou prisão preventiva, anterior a lei anticrime, não foi suficiente fundamentada, conforme as diretrizes do artigo 315, deve ser revogada, em razão da retroatividade.

De igual forma, a revisão periódica trazida no artigo 316, parágrafo único. Independente de quando foi decretada, o juiz deve revisar, visto a retroatividade. Assim, se atualmente há uma decisão que já faz mais de 90 dias de sua decretação, o magistrado deve fazer a revisão, conforme o parágrafo único do artigo 316 do CPP.

Concluindo, as regras benéficas em relação às medidas cautelares pessoais devem retroagir por serem normas heterotópicas.

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1 Processo Penal / Norberto Avena. – 11. ed. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2019.

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*David Metzker é sócio da Metzker Advocacia, advogado criminalista, professor e palestrante. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS e MBA em Gestão, Empreendedorismo e Marketing pela mesma instituição. Diretor Cultural e Acadêmico da Abracrim-ES.

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