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O coronavírus e a segurança jurídica contratual: como prever o imprevisível?

As ferramentas que visem à mitigação dos riscos devem ser analisadas concretamente por profissionais capacitados, e serem norteadas, como ponto fulcral, pela implementação de medidas que viabilizem a continuidade das relações contratuais e o reforço do cumprimento das obrigações.

8/4/2020

O codiv-19, novo coronavírus, foi classificado pela OMS como uma pandemia global. Esse evento imprevisível, irresistível e extraordinário, cujos efeitos incertos vêm se alastrando em proporções globais, afetam profundamente o cenário social, político e, sobretudo, econômico. Atualmente, a adoção de medidas atípicas, com intuito de minimizar a propagação da doença, tornou-se parte do cotidiano de toda a população. Quase instantaneamente, consequências negativas foram sentidas no mercado, tendo sido maximizadas diariamente ante as abruptas altas do dólar, seguida das intensas quedas nas bolsas de valores mundiais, dentre outros motivos.

As obrigações estatuídas em inúmeros negócios jurídicos se tornaram excessivamente onerosas para as partes, acarretando dificuldades ao seu regular cumprimento, mormente no âmbito empresarial, no qual a atividade é intrinsecamente ligada ao risco do negócio.

Em momentos de razoável estabilidade econômica, local e mundial, poucas são as empresas que incluem disposições contratuais estratégicas para gestão de riscos extraordinários. Nesse contexto, os players tendem a alocar os riscos das transações de maneira mais generosa, dado que o otimismo presente os leva a sucumbir ao apetite por risco. 

No âmbito da teoria neo-institucionalista de Hodgson1, compreende-se que as informações utilizadas como base para a tomada de decisões são adquiridas pelos indivíduos, por meio de uma estrutura cognitiva que é diretamente afetada pela cultura e pelas instituições nas quais se encontram imersos.

As instituições, por sua vez, desempenham um papel de fundamental interferência nas informações disponíveis, por meio da adoção de sistemas que ajudam as pessoas a processarem as informações, difusas e parcialmente conhecidas, de modo a gerenciar incertezas, estabelecendo regras, normas e hábitos. 

Tomando por premissa que a influência das instituições no processamento de informações afeta a formação de preferências, intervindo, portanto, na tomada de decisões dos indivíduos e, em última instância, na alocação de riscos e recursos, faz-se mister a compreensão do seu funcionamento e internalização sistêmica da atuação, objetivando evitar que sejam contrárias às finalidades buscadas. 

Deve-se ressaltar, entretanto, a existência de deficiência intrínseca ao movimento em questão. Uma vez que há limitação na disponibilidade de informações ao sujeito, bem como de interferência das instituições quanto à interpretação daquelas que estão disponíveis, cria-se um gap entre a realidade e a percepção subjetiva dessa pelo indivíduo. Logo, é possível que um conjunto de informações fornecidas pelas instituições levem esses indivíduos a identificarem padrões que não são integralmente fiéis à realidade, deixando-os ainda mais suscetíveis ao risco do imprevisível. “Prever” o imprevisível, por outro lado, é uma tarefa hercúlea e inócua. Ironicamente, são justamente esses eventos altamente incompreensíveis e/ou improváveis que ocasionam os maiores prejuízos aos setores econômicos.

Para se referir a esses acontecimentos imprevisíveis, o ensaísta libanês Nassim Taleb2 cunhou o termo “cisne negro”, que simboliza um determinado evento cujas três características mais relevantes são as seguintes: (i) imprevisibilidade e raridade apenas para quem não o previu, outlier, fato extraordinário;(ii) se torna compreensível somente após ter acontecido; e (iii) possui um impacto extremo para quem o sofreu, ainda que tenha sido “formado” silenciosamente e surja de maneira explícita para quem não estava preparado. Famoso exemplo é do peru de ação de graças. Durante todo o ano, o animal é alimentado pelo seu dono. Sob a ótica desse, a situação será mantida perpetuamente. Entretanto, no dia de ação de graças, o mesmo dono que o alimentava diariamente corta a sua cabeça. 

Pelas informações disponíveis, o animal não poderia imaginar que estava sob risco iminente de morte, mas esse era claro ao dono desde o início. Ganha relevância, portanto, a ideia de que um cisne negro somente pode ser compreendido por meio de uma análise retrospectiva dos acontecimentos, dado que, regra geral, não pode ser previsto com as informações disponíveis. Assim, o súbito acontecimento impõe um duro e rápido impacto para todos aqueles atores que pautaram a sua atuação na previsibilidade e bonança do momento econômico-social. 

Para se opor às fragilidades e incertezas que pairam sobre o mercado, o autor desenvolve o conceito de "antifragilidade". O player antifrágil não é o que busca se antecipar a eventos imprevisíveis em específico, já que não é factível se obter tal resultado, dadas as limitações informacionais tratadas alhures. Em verdade, a nomenclatura é atribuída àquele que está preparado para ocorrência de algum evento traumático em qualquer dado momento, por meio da adoção de uma estratégia que conta com disposições que serão aplicáveis justamente aos momentos de incerteza, apesar de todas as previsões apontarem no sentido de existirem as melhores condições para o cumprimento das obrigações, sendo essas “desnecessárias”. 

Assim, é imprescindível que os atores do mercado se sensibilizem às volatilidades e incertezas ínsitas ao sistema atual, formulando instrumentos contratuais que visem à segurança jurídica tanto em momentos de certeza quanto de incerteza — o que somente poderá ser obtido após a análise de múltiplos cenários, arquitetando instrumentos que permitam sua continuidade mesmo em momentos de colapso. Essas podem ser traduzidas por meio de acordos de vontade que internalizem, no limite do possível, o risco da fragilidade de sua percepção da realidade. 

A recente lei da liberdade econômica (lei 13.874/19) se propõe a auxiliar esse objetivo. Por meio da inclusão do art. 421-A, II, do CC, impôs-se ao intérprete do contrato a necessidade de respeitar a alocação de riscos definida pelas partes. 

Uma vez que os riscos são confinados em um “sistema fechado”3 — ou seja, não são criados ou excluídos, apenas transportados de um agente a outro —, a alteração das disposições causará não só insegurança jurídica às partes, mas acarretará em potenciais prejuízos que, se fossem previstos desde o início, poderiam ter obstado a manifestação de vontade da parte afetada. Outrossim, um ambiente juridicamente inseguro reduz a atratividade de investimentos gerando menos postos de trabalho, em prejuízo do nível dos salários e demais interesses dos trabalhadores4.

Assim, a observância da alocação dos riscos pelas partes e por terceiros (inclusive o Judiciário) faz-se mister em momentos de incerteza do mercado, como o verificado atualmente — uma pandemia global cujos efeitos são alastrados indistintamente e cujas previsões indicam a prevalência dos impactos negativos por largo período de tempo. Desse modo, é patente que a solução deve ser pautada na clareza e técnica redacional, bem como na alocação racional dos riscos contratuais — prevendo-se, desde logo, disposições para o comportamento das partes em situações de extremo estresse.

Dentre as disposições supramencionadas, podem ser elencados: alargamento de prazos; diferimento da contraprestação devida, com redução dos valores devidos por período pré-determinado; estipulação de renegociação obrigatória do contrato, mediante parâmetros previamente estabelecidos; pacto de garantia bancária vinculada ao contrato; fixação de valores mínimos e máximos de variação dos valores que se submetam às variações em cotações cambiais, do preço dos commodities, etc; e pré-fixação de perdas e danos, em caso de eventual rescisão, por meio de cláusula penal compensatória. As medidas tratadas não serão aplicáveis a todos os contratos, devendo ser analisada a mais adequada para a relação concreta entre as partes. 

Procedendo-se com comportamento diligente, visando à antifragilidade, criar-se-á ambiente de maior segurança jurídica na relação obrigacional, em que os agentes poderão obter maior previsibilidade das consequências aos quais serão submetidos, mesmo em um momento de incertezas prementes. Outrossim, mitiga-se as necessidades de futura revisão e/ou a rescisão de instrumentos contratuais, privilegiando-se o objetivo principal de qualquer negócio jurídico — qual seja, o exato cumprimento das disposições de vontade nele contidas ao tempo do pacto. Em função do exposto, o player poderá tomar decisões com maior racionalidade e eficiência, o que poderá ocasionar, em última instância, uma vantagem concorrencial — podendo ser uma oportunidade para crescimento 

Independentemente, as ferramentas que visem à mitigação dos riscos devem ser analisadas concretamente por profissionais capacitados, e serem norteadas, como ponto fulcral, pela implementação de medidas que viabilizem a continuidade das relações contratuais e o reforço do cumprimento das obrigações. Essas devem buscar assegurar que, mesmo diante das possibilidades de alteração dos cenários e aplicação de medidas extremas, subsista a alocação dos riscos assumidos pelas partes.

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1 HODGSON, M. G. Economics and Institutions: a manifesto for a modern institutional economics. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1998.

2 TALEB, Nassim Nicholas. The Black Swan: The Impact of the Highly Improbable. Londres: Penguin, 2007/2010.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. A alocação de riscos e a segurança jurídica na proteção do investimento privado. Revista de Direito Brasileira, V.16, n.7. São Paulo, 2017.

4 COELHO, Fábio Ulhoa. A alocação de riscos e a segurança jurídica na proteção do investimento privado. Revista de Direito Brasileira, V.16, n.7. São Paulo, 2017.

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*Ana Vogado é sócia do escritório Malta Advogados. Bacharela e mestranda em Direito pela UnB, pós-graduanda em Direito Agrário e em Direito Médico. 

*Davi Ory é sócio do escritório Malta Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB; cursa Master of Laws (LL.M) em Direito dos Negócios e Governança Corporativa pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. 

 

*Júlia Scartezini é colaboradora no escritório Malta Advogados. Bacharelanda em Direito pelo UniCeub.

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