Todo cidadão brasileiro possui direito social à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância e assistência aos desamparados. O Estado, por sua vez, possui a obrigação de garantir os direitos sociais mínimos previstos no art. 6º da Constituição Federal de 1988, bem como a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Magna Carta. O art. 3º da Constituição aduz que a garantia do desenvolvimento nacional e o bem de todos constituem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Pois bem, imbuídos dessas premissas, defenderemos no presente trabalho que não há como afastar a responsabilidade objetiva do Estado pelos prejuízos sofridos decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) reconhecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e estado de calamidade pública (força maior) decretado no Brasil.
Defenderemos, aqui, que o Estado deve arcar com os salários, benefícios trabalhistas e verbas rescisórias dos trabalhadores celetistas do Brasil.
Não se trata de externar discordância com a determinação de isolamento social editada pelo Governo Brasileiro, ao revés, entendemos que a posição oficial até aqui adotada (mesmo que desestimulada pelo Presidente da República) está em sintonia com a preservação da VIDA bem maior garantido constitucionalmente.
Trata-se, sim de analisar como lidaremos com as consequências destas necessárias medidas e de quem é o dever de arcar com os prejuízos delas decorrentes.
Apenas a título de introdução, entendemos importante uma análise do direito comparado. Existem já diversos países cujo Estado já se obrigou pelo pagamento dos salários dos empregados de suas empresas, como, por exemplo, a Itália1, que arcará com 80% dos salários dos trabalhadores dos setores que sofreram maiores impactos das quarentenas e isolamentos. O Reino Unido, por sua vez, declarou que pagará 80% dos salários de todos os empregados do País2.
O Brasil, por sua vez, primeiramente editou a Medida Provisória nº 927, que em seu artigo 18 previa a suspensão dos contratos de trabalho por até 04 meses, sem nenhuma contrapartida do Governo.
Este artigo foi totalmente revogado e uma semana depois foi editada a Medida Provisória nº 936 instituindo o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, prevendo a possibilidade de redução de jornada com a consequente redução de salário e ajuda do governo, ou suspensão total dos contratos por até 60 dias mediante liberação dos valores de seguro desemprego.
Importante ressaltar que o valor máximo por trabalhador será de R$ 1.813,03 por mês, por dois meses.
A questão é, se o empregado ganha mais do que R$ 1.813,03, de quem é a obrigação de arcar com esta diferença salarial frente a paralisação obrigatória das atividades em razão da pandemia?
Pertinente, aqui, citar a análise do Ilustre Desembargador Jorge Luiz Souto Maior do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, em seu artigo recentemente publicado, com a qual pactuamos3:
1) O benefício oferecido pelo governo não preserva o valor integral do salário recebido pelo(a) trabalhador(a).
Ora, o valor do seguro-desemprego, que é adotado como parâmetro do benefício criado, é proporcional à média dos últimos três salários e sempre com redução. Para quem recebeu a média de até R$ 1.599,61, o benefício será de 80% desse valor, ou seja, o(a) trabalhador(a) sofrerá uma redução de 20% em sua renda, enquanto o empregador terá um auxílio de 100% do custo do trabalho.
Se a média salarial for de R$ 1.599,62 a R$ 2.666,29, a redução será ainda maior, pois o benefício será 50% da média, acrescido da importância de R$ 1.279,69.
E se a média for superior a R$ 2.666,29, o valor do benefício será de R$ 1.813,03.
Para cumprir sua obrigação, o governo deveria pagar a integralidade dos salários.
Tanto no caso de redução de salário com diminuição proporcional da jornada de trabalho, quanto no de suspensão do contrato de trabalho, o benefício concedido pelo governo não será suficiente para manter a totalidade da renda do trabalhador.
E vale perceber que quando a redução for inferior a 25% o governo não pagará benefício algum ao trabalhador (§ 2º, I, do art. 11).
2) A MP 936 presta auxílio a grandes empresas e a bancos, não considerando o lucro líquido obtido que obtiveram no(s) último(s) exercício(s) e mesmo a sua regularidade com o pagamento de tributos, contribuições sociais e direitos trabalhistas.
Conforme se extrai do § 5º do art. 8º, o benefício, quando decorrente de redução de salário e diminuição proporcional do trabalho, que serve apenas para compensar, como dito acima, parte da perda da renda, é devido a empregados de todas as empresas, independente do porte.
No caso de suspensão do contrato de trabalho, segundo o mesmo dispositivo, o benefício será concedido na integralidade (que já é reduzido) a empregados de empresas que tiverem auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta de até R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais), sendo que com relação às empresas com receita bruta superior a esta, o benefício, embora com a previsão da obrigação de que seja efetuado o pagamento de 30% do salário, também será pago.
Assim, como anunciado na epígrafe do item acima, o governo vai corroborar a redução de salários e compensá-los apenas parcialmente, financiando também as grandes empresas e os bancos, e sem fazer qualquer avaliação em torno da postura destes empregadores com relação ao pagamento de tributos, contribuições sociais e direitos trabalhistas, além de desprezar os incentivos fiscais que foram concedidos a diversos setores produtivos.
[...]
O estado de calamidade pública e a força maior é indubitável no Brasil.
Muitos Estados e Cidades estão publicando Decretos determinando a paralisação das empresas, salvo se a atividade da empresa se enquadrar dentro daquelas consideradas como essenciais, como por exemplo, serviços de saúde e de alimentação.
Portanto, em virtude desses Decretos Estaduais e Municipais, muitas empresas foram obrigadas a paralisar totalmente as suas atividades.
A Lei 13.979/2020, por sua vez, estabelece que o empregado que permanecer em casa em virtude de quarentena ou isolamento determinado pela Autoridade Pública, não poderá ter descontos em seu salário, eis que sua ausência no trabalho é considerada como falta justificada.
Sendo assim, surge o inegável questionamento, se a empresa precisa paralisar as suas atividades por determinação do Poder Executivo e, por consequência, congelar quase que por completo o seu faturamento, como fará para pagar a diferença salarial entre o seguro desemprego e seu salário bruto? E direitos trabalhistas de seus empregados?
Como uma empresa totalmente paralisada consegue adimplir com seus encargos trabalhistas? Conforme é cediço, e foi amplamente divulgado pela mídia, muitas empresas não possuem um provisionamento ou “caixa” para esse tipo de situação.
É importante destacar desde já, que as medidas adotadas pelo Governo nas Medidas Provisórias até aqui editadas foram muito tímidas e não solucionaram satisfatoriamente esse problema.
Ao revés, buscou possibilitar a classe patronal reduzir e burlar ainda mais os direitos trabalhistas de seus empregados como forma de atravessar este momento de turbulência, ao invés de o Estado assumir seu papel de garantir a paz e a ordem pública com a injeção de capital emergencial suficiente no socorro dos empregados e empregadores.
Com a paralisação em massa das atividades empresariais, e consequente congelamento do faturamento da maioria das empresas, o Estado, agora, mais do que nunca, precisa se responsabilizar pelo pagamento da TOTALIDADE dos salário e demais benefícios trabalhistas dos empregados do País, sob pena de um total colapso econômico.
É evidente que algumas poucas empresas podem operar via home office e manter um faturamento razoável via e-commerce ou alguma outra forma, sem a necessidade de paralisar totalmente as suas atividades,.
Todavia, a grande maioria das empresas não opera 100% digital e em algum momento necessita da intervenção humana de forma presencial. Escritórios de advocacia, por exemplo, muito embora consigam trabalhar na via home office, não conseguem faturar sem a ocorrência de audiências presenciais entre as partes, já que o Poder Judiciário foi forçado a suspendê-las.
Sendo assim, ainda que seja possível o trabalho home office pelos colaboradores de uma empresa, é necessário que seja possível, também, que ela consiga manter seu faturamento nessa modalidade. De nada adianta uma empresa conseguir operar parcialmente home office, mas não conseguir manter seu faturamento nesta modalidade.
Pois bem, diante de todo o exposto, entendemos que, caso a empresa não consiga operar e/ou faturar no período de calamidade pública em razão da pandemia, por haver acertada determinação do Poder Executivo para a paralisação de suas atividades, existe fundamento legal para que este último seja responsabilizado pela TOTALIDADE do pagamento dos salários e benefícios trabalhistas dos trabalhadores celetistas.
Nesse sentido, é o teor do art. 486, da CLT:
Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
Segundo o art. 486 da CLT, sempre que uma empresa paralisar temporária ou definitivamente o seu trabalho, por determinação de autoridade municipal, estadual ou federal, deverá esta última arcar com o pagamento das indenizações devidas.
Defendemos, que o termo “indenização” deve ser interpretado de forma extensiva, ou seja, deve-se entender que abrange não somente a indenização decorrente de verbas rescisórias em caso de extinção contratual, mas também o pagamento de salários e benefícios trabalhistas.
A finalidade desta indenização deve abarcar todos os prejuízos deflagrados nas relações de trabalho do estabelecimento, seja com os empregados, seja com a empresa, já que estes decorreram de ato normativo do Estado.
O salário, neste caso específico, bem como demais direitos trabalhistas, teriam natureza indenizatória, eis que não estariam sendo adimplidos pelo trabalho, eis que o trabalho não existirá, mas sim indenizados ao trabalhador que estará permanecendo em sua casa numa espécie de licença compulsória decorrente de ato normativo.
Igualmente, o art. 486 da CLT não aduz expressamente que o Estado deve ser responsabilizado apenas pelas verbas rescisórias, mas sim que o pagamento da indenização fica a cargo do governo responsável. Ora, se o trabalhador não está trabalhando, é evidente que o salário deve lhe ser indenizado, ou seja, o termo “indenização”, neste caso, deve abranger os salários e benefícios trabalhistas, e não deve ser interpretado como “verbas rescisórias” apenas.
Além disso, de uma interpretação teleológica do art. 486 da CLT, verifica-se que se fundamenta na “teoria do fato do príncipe”, que é uma espécie do gênero “força maior”. Segundo a teoria do fato do príncipe, sempre que a atividade empresarial for interrompida por culpa exclusiva do Estado, sem concorrência direta ou indireta do empregador para a prática do ato, deverá aquele ser responsabilizado por todos os prejuízos decorrentes.
No caso da área trabalhista, o prejuízo é a necessidade de o empregador continuar pagando/indenizando os salários e benefícios trabalhistas de seus empregados, sem conseguir usufruir de sua mão de obra e sem possuir o faturamento necessário para tanto, eis que a sua atividade está paralisada por ato do próprio Estado.
O Poder Executivo, ao paralisar a atividade empresarial, está fazendo (acertadamente e visando proteger vidas) prevalecer um interesse público sobre um interesse privado, mas não pode, por esse motivo, se isentar de arcar com os prejuízos sofridos pela empresa.
O mesmo ocorre, por exemplo, com a desapropriação, onde o Estado pode se apropriar de uma propriedade privada, mas deve indenizar o seu dono.
Sendo assim, entendemos que o Estado deverá arcar com a TOTALIDADE de pagamento dos salários e benefícios trabalhistas dos empregados que forem obrigados a não trabalhar em virtude dos Decretos que determinarem a paralisação total das atividades empresariais.
É importante ressaltar que esta possibilidade somente se aplica para os empregadores que estiverem em dia com os direitos trabalhistas de seus empregados, não se estendendo para aqueles que já vinham cometendo inadimplementos antes da atual crise econômica, eis que, neste caso, o empregador estará concorrendo com a causa do inadimplemento.
Por fim, necessário informar que o artigo 486 da CLT, por tratar de situações excepcionalíssimas, com a que estamos vivenciando, não possui alargado debate dentro da doutrina e jurisprudência pátria, de maneira que o posicionamento aqui adotado sobre sua possível interpretação ainda passará pelo crivo dos Tribunais para que possa se formar um entendimento mais consolidado sobre o tema.
_________________
1 Fato do príncipe: governo pagará salários?;
3 MP 936: do pandemônio à razão?
________________
* Pedro Alonso Molina Almeida é advogado, graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2014, pós graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2017. Sócio Proprietário do escritório de advocacia, especializado na área trabalhista, Alexandre Krisztan & Molina – Sociedade de Advogados, de Campinas (SP).
* Alexandre Krisztan Junior é advogado, graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2007, pós graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Anhanguera Educacional em 2011. Sócio Proprietário do escritório de advocacia, especializado na área trabalhista, Alexandre Krisztan & Molina – Sociedade de Advogados, de Campinas (SP).