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Trabalho doméstico frente à pandemia do Covid-19

Uma vez ultrapassados os aspectos conceituais, voltamo-nos para a problemática de enfretamento da crise ocasionada pelo Covid-19 e os seus impactos na relação entre empregador e empregado doméstico.

8/4/2020

A pandemia do coronavírus, assim classificada, pela Organização Mundial da Saúde, trouxe uma série de questionamentos e incertezas no tocante às relações trabalhistas envolvendo os empregados domésticos.

Dúvidas não há de que estamos vivendo um momento crítico em razão da forma devastadora como o Covid-19 disseminou-se pelo mundo à fora.

Inicialmente, cumpre esclarecer que, erroneamente associa-se o termo “empregado doméstico” às pessoas que atuam como faxineiras, cozinheiras, governantas, copeiras ou babás. Entretanto, conforme o disposto no artigo 1º da lei complementar 150/15, empregado doméstico é aquele que “presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”.

Nessa senda, a doutrinadora Vólia Bonfim Cassar1 explica que:

Para ser doméstico, basta trabalhar para empregador doméstico, independente da atividade que o empregado doméstico exerça, isto é, tanto faz se o trabalho é intelectual, manual ou especializado (...) Poderão se enquadrar como trabalhadores domésticos motoristas particulares, secretárias particulares, enfermeiras particulares, desde que presentes os elementos caracterizadores da estrutura da relação empregatícia doméstica.

Sendo assim, para que haja o enquadramento legal de trabalhador doméstico, deve-se analisar quem é o empregador e não qual atividade é exercida pelo empregado.

Uma vez ultrapassados os aspectos conceituais, voltamo-nos para a problemática de enfretamento da crise ocasionada pelo Covid-19 e os seus impactos na relação entre empregador e empregado doméstico.

Nesse sentido, no dia 22 de março de 2020, fora publicada no Diário Oficial da União, a medida provisória 927/20, que dispõe sobre medidas trabalhistas a serem adotadas, enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020.

Posteriormente, foi instituído o Plano Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda que dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto supramencionado.

Ambas as medidas provisórias não trataram especificamente dos trabalhadores domésticos, todavia, o art. 32, inciso II da MP 927/20 dispôs que, aplicar-se-á, no que couber, às relações regidas pela lei complementar 150/15, sendo essa a lei que regulamenta o contrato de trabalho doméstico no âmbito do direito brasileiro.

Nesse sentido, algumas alternativas possíveis de serem adotadas e aplicadas às relações trabalhistas, cujo empregado seja classificado como doméstico, são as seguintes:

Férias individuais:

De acordo com a medida provisória 927/20, poderá o empregador antecipar as férias individuais com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, devendo o empregado doméstico ser comunicado por escrito ou por meio eletrônico, com a indicação do período que será gozado, sendo que este não poderá ser inferior a cinco dias corridos.

Diferente do que dispõe a lei 150/15, a MP supramencionada autoriza a concessão de férias por ato do empregador, ainda que o empregado não tenha completado o período aquisitivo de doze meses. Além disso, fica facultado a negociação mediante acordo individual por escrito de períodos futuros de férias.

No tocante ao pagamento, o artigo 9º da MP 927/20 dispõe que poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias. Ademais, admite-se que o adicional de um terço de férias seja adimplido após a sua concessão, desde que respeitada a data limite, qual seja, 20 de dezembro 2020.

Por conseguinte, caso o empregado tenha interesse na conversão de um terço constitucional em abono pecuniário, ficará sujeito a anuência do seu empregador.

Destarte, é certo que a antecipação de férias é uma excelente alternativa para assegurar a manutenção do emprego e renda, bem como garantir que o trabalhador doméstico obedeça às determinações sanitárias de isolamento e distanciamento social, a fim de evitar a propagação do vírus, posto que, para se deslocar ao trabalho, na maioria das vezes depende de transporte público coletivo, por onde passam centenas de pessoas todos os dias.

Banco de horas:

Durante a pandemia do coronavírus, fica autorizado ao empregador interromper as atividades exercidas pelo empregado doméstico, mediante a constituição de um regime especial de compensação de jornada, através de banco de horas.

O referido banco de horas poderá ser instituído através de acordo coletivo ou individual formal, sendo que a compensação de horas deverá ocorrer no prazo de até dezoito meses, contabilizados da data em que se findar o estado de calamidade pública.

Para fins de compensação, o § 1º do art. 14 da MP 927/20 dispõe que:

§ 1º A compensação de tempo para recuperação do período interrompido poderá ser feita mediante prorrogação de jornada em até duas horas, que não poderá exceder dez horas diárias.

Por conseguinte, o referido dispositivo legal abarcou em seu texto a possibilidade de o empregador determinar a compensação do saldo de horas, mesmo que não haja convenção coletiva, ou acordo individual ou coletivo.

À vista disso, a constituição de regime de compensação de jornada é eficiente não somente na manutenção do vínculo empregatício, mas também na proteção da saúde do colaborador, porquanto permitirá que ele permaneça em casa em distanciamento social.

Do aproveitamento e da antecipação de feriados:

Outra alternativa encontrada pela medida provisória 927/20 para minimizar os impactos da pandemia provocada pelo coronavírus no âmbito das relações de trabalho, é a possibilidade de aproveitamento e antecipação de feriados.

Nesse caso, o empregador, por sua simples iniciativa, poderá antecipar feriados não religiosos, sejam eles federais, estaduais, distritais e municipais, devendo comunicar ao empregado por escrito ou por meio eletrônico, no prazo de quarenta e oito horas. Ressalta-se que, o comunicado deve indicar de forma expressa quais são os feriados que serão antecipados.

Há ressalvas, no entanto, no tocante à antecipação de feriados de cunho religioso. Nesse caso, somente poderá ocorrer o aproveitamento caso haja aquiescência do empregado, mediante manifestação em acordo individual escrito.

Cabe ainda, a utilização do aproveitamento de feriados para compensar eventual saldo em banco de horas pactuado entre partes.

Contudo, é importante frisar que essa medida não pode ser utilizada para suprimir outros diretos assegurados aos trabalhadores domésticos, como o repouso semanal remunerado. Sendo assim, caso o trabalhador labore de segunda à sábado e a feriado antecipado seja no domingo, será defeso que o empregado trabalhe nesse dia específico, vez que teria que prestar serviços por duas semanas consecutivas, sem gozar do repouso semanal remunerado.

Por oportuno, em que pese o art. 32, inciso II da MP 927/20 dispor que permissivo legal in comento aplica-se aos empregados domésticos em relação a jornada, banco de horas e férias, entendemos que esse rol não é taxativo, e sim, meramente explicativo.

É de se notar que, o referido texto legal estatui de forma expressa a aplicação da Medida Provisória, no que couber, às relações regidas pela lei complementar 150, de 1º de junho de 2015. Logo, entende-se possível a antecipação de feriados aos trabalhadores domésticos.

Do FGTS:

No tocante ao fundo de garantia, a MP 927/20, trouxe uma flexibilização, suspendendo a exigibilidade do seu recolhimento pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente.

O parágrafo único do art. 19 da referida medida provisória, dispôs que os empregadores poderão fazer o uso dessa prerrogativa independentemente do número de empregados, regime de tributação, natureza jurídica, ramo de atividade econômica, e de adesão prévia. Por derradeiro, entende-se que benesse da suspensão temporária do recolhimento do FGTS, aplica-se aos empregadores domésticos.

Para desonerar ainda mais o empregador nesse momento tão delicado, que é pandemia do Covid-19, foi facultado o pagamento das competências de março, abril e maio de 2020, de forma parcelada, sem incidência da atualização monetária e das multas e encargos previstos no art. 22 da lei 8.036/90. Sendo assim, o pagamento poderá ser efetuado em até seis parcelas mensais, com data de vencimento no sétimo dia de cada mês, contado a partir de julho de 2020.

Para gozar benefício supramencionado, o empregador deverá declarar as informações, até o dia 20 de junho de 2020, tendo ciência de que está reconhecendo a existência de débito, cuja declaração servirá de instrumento hábil para a cobrança do crédito de FGTS.

Vale dizer, que os valores não declarados pelo empregador, serão considerados em atraso, e obrigarão o adimplemento na integralidade da multa e dos encargos decorrentes.

Além disso, a MP suspendeu durante 180 dias, os prazos processuais para apresentação de defesa e recursos em processos administrativos por débitos relativos ao Fundo de Garantia por Tempo se Serviço. Não obstante a isso, a contagem do prazo prescricional dos débitos referidos a essa contribuição foram suspensos pelo período de 120 dias.

É certo que a pandemia tem afetado a economia brasileira, fazendo com que muitas empresas fechem as portas e muitos funcionários percam seus postos de trabalho. Diante desse cenário, a flexibilização no pagamento do fundo de garantia surge como um meio de desonerar temporariamente o empregador durante o período de calamidade pública, para que não haja a necessidade de romper com o vínculo empregatício do trabalhador doméstico, deixando-os desamparados nesse momento de crise.

Redução salarial e da jornada de trabalho:

A MP 936/20 trouxe em seu arcabouço, a possibilidade de o empregador reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho e salário dos seus empregados, por até noventa dias.

Para que haja redução salarial, alguns requisitos devem ser observados, como: preservação do valor do salário-hora de trabalho, pactuação de acordo individual escrito entre empregador e empregado, que deverá ser encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos.

Além disso, deve-se observar os percentuais de redução previstos na MP, sendo eles: vinte e cinco por cento, cinquenta por cento ou setenta por cento.

Entretanto, é mister pontuar que o empregado doméstico não ficará desamparado, pois uma vez reduzida sua jornada e salário, fará jus ao recebimento do Benefício Emergencial do Emprego e Renda, que se iniciará a partir da data de pactuação da redução e, terá como base de cálculo o valor mensal do seguro-desemprego ao qual o funcionário teria direito, respeitando os percentuais de redução.

No entanto, para que o empregado possa gozar dessa benesse, o empregador deverá o informar ao Ministério da Economia a redução da jornada de trabalho e de salário, no prazo de dez dias, contado da data da celebração do acordo. Uma vez prestada a informação dentro do prazo supramencionado, a primeira parcela do benefício será adimplida em de trinta dias, contados da data em que o acordo foi firmado.

Outrossim, é imperioso destacar que, caso o empregador não preste as informações dentro do prazo estipulado na MP, qual seja, dez dias, ficará responsável pelo pagamento da remuneração no valor anterior à redução da jornada de trabalho e de salário, incluindo os respectivos encargos sociais, até a que informação seja prestada.

O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda será pago ao empregado independente do cumprimento de qualquer período aquisitivo, tempo de vínculo empregatício ou número de salários recebidos.

Salienta-se que, findada a redução proporcional da jornada de trabalho e do salário, o benefício deixará de ser pago e a jornada cumprida anteriormente pelo empregado, bem como o salário auferido serão restabelecidos no prazo de dois dias corridos, contados a partir da cessação do estado de calamidade pública, da data estabelecida no acordo individual ou da data que o empregador informar ao empregado sobre o antecipação do termo pactuado.

Sendo assim, a redução da jornada e do salário é uma alternativa ideal para ambas as partes da relação de trabalho, pois desonera o empregador que teve a sua renda impactada pela pandemia da Covid-19 e que não pode dispensar completamente os serviços do empregado doméstico, ao mesmo tempo que não deixa o trabalhador desassistido, visto que o governo suprirá por intermédio do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda, o valor que será suprimido temporariamente.

Suspensão do contrato de trabalho:

Outra alternativa contemplada na medida provisória 936/20 foi a possibilidade de suspensão temporária do contrato de trabalho, que poderá ser pactuada entre partes, pelo prazo máximo de sessenta dias, podendo ainda, ser fracionada em dois períodos de trinta dias.

Assim como na redução de jornada e salário, a suspensão temporária do contrato de trabalho deverá ser pactuada através de um acordo individual escrito, que será encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos.

Enquanto perdurar a suspensão, o empregado terá direito a todos os benefícios concedidos pelo empregador aos seus empregados, além de ficar autorizado a recolher para o Regime Geral de Previdência Social na qualidade de segurado facultativo.

Ademais, é de suma importância esclarecer que durante a suspensão, o empregado doméstico não pode manter qualquer atividade do trabalho, ainda que seja de forma parcial, sob pena de descaracterização da suspensão temporária do contrato de trabalho.

Caso haja a descaracterização, o empregador ficará sujeito ao pagamento imediato da remuneração e dos encargos sociais referentes a todo o período, bem como as penalidades previstas na legislação e as sanções dispostas em convenções ou acordos coletivos, se houver.

Assim sendo, o contrato será restabelecido aos seus parâmetros originais, após dois dias corridos, que serão contabilizados a partir da cessação do estado de calamidade pública, do termo pactuado no acordo individual ou da data informada pelo empregador, caso opte por antecipar o fim da suspensão contratual.

O empregado doméstico que tiver o seu contrato suspenso, poderá usufruir do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, no equivalente a cem por cento do valor do seguro-desemprego, desde que observados todos os ditames da prestação de informações ao Ministério da Economia dispostos na medida provisória 936/20, que são os mesmos previstos quando da redução do da jornada e salário.

Logo, conclui-se que a suspensão do contrato de trabalho é uma medida que visa assegurar o emprego e a renda dos trabalhadores, nas situações em que o empregador não possa arcar com as despesas atinentes a salários e encargos sociais.

Por fim, além de todas as medidas trazidas pela medida provisória 927/20, o Ministério Público do Trabalho publicou no dia 18 de março de 2020, nota técnica com diretrizes a empregadores com o fulcro de conter a propagação do novo coronavírus (Covid-19) entre trabalhadores domésticos.

Nota técnica conjunta 04/20 – Diretrizes para proteção dos trabalhadores domésticos:

A referida nota técnica recomenda que os empregadores adotem algumas medidas, sendo elas:

Nesse período de calamidade pública há uma preocupação generalizada não somente com as medidas preventivas à disseminação do vírus da Covid-19, mas também com os impactos que a pandemia tem ocasionado na economia e nas relações de trabalho, uma vez que, se o trabalhador perder a sua fonte de renda, não terá como assegurar a própria subsistência, tampouco a da sua família.

Sendo assim, os empregadores que não tiverem a necessidade de se utilizar da mão de obra do trabalhador doméstico nesse período de pandemia e puderem arcar com a manutenção dos salários, recomenda-se que adotem uma das medidas previstas na MP, quais sejam: concessão de férias individuais, constituição de banco de horas e antecipação de feriados.

Se, por ventura, o empregador não puder honrar com o pagamento dos salários durante a pandemia, ao invés de dispensar o funcionário, pode optar pela suspensão do contrato de trabalho, pois estaria se desonerando dos pagamentos e assegurando que o trabalhador fosse assistido pelo Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda.

No entanto, caso não possa dispensar o serviço do empregado, pode-se optar pela redução da jornada e do salário, adotando medidas preventivas, como fornecimento de equipamentos de proteção individual, tais quais: álcool em gel, luvas, óculos e máscaras.

Entretanto, é valido ressaltar que além do fornecimento de EPI’s, é necessário que empregador oriente o seu funcionário sobre a importância da sua utilização e como o fazer da maneira correta a elidir a propagação do vírus.

Por conseguinte, caso o empregado faça uso do transporte público coletivo, é prudente que o empregador forneça outro meio de transporte, tendo em vista que os meios públicos de deslocamento são grandes fontes de propagação da doença, em virtude do enorme fluxo diário de pessoas.

Não obstante, caso o empregador não possa fornecer outro meio do colaborador se deslocar até o local de trabalho, deve-se orientar o empregado a passar álcool em gel antes e após a utilização do meio de transporte público. Além disso, ao chegar no local de trabalho, o funcionário deve ser orientado a lavar as mãos por 20 segundos, passar álcool em gel e não adentrar o local com os sapatos.

Por fim, é imperioso mencionar que se o empregado for integrante do grupo de risco, ou seja, pessoa com mais de 60 anos ou com problemas respiratórios, os cuidados devem ser redobrados.

Posto isso, é notório que as alternativas trazidas pela medida provisória 927/20 e as Orientações do Ministério Público do Trabalho, visam dar efetividade à proteção do emprego e renda, diante do estado de calamidade declarado no Brasil, bem como garantir a proteção do trabalhador doméstico.

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1 CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do Trabalho. 15ª Edição. Editora Método. São Paulo. 2017. Páginas 341 – 342.

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*Flávia Lima Pólvora é advogada Trabalhista pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, pela PUC Minas. Trabalha no Escritório MoselloLima Advocacia.

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