Migalhas de Peso

O que fazer quando o exequente é um patife? O art. 139, IV do CPC também pode ser invocado pelo executado em seu favor?

Vemos aí no artigo 139, IV um caminho eficiente para ajustar a maior efetividade da execução com a menor onerosidade possível ao executado.

7/4/2020

Já tivemos oportunidade de trazer à discussão, em mais de uma oportunidade neste periódico, o tema da aplicação das medidas coercitivas e punitivas quando estamos diante de um executado cafajeste. Mas, seria tolice imaginar que no universo processual, e, em especial no itinerário executivo, o comportamento processual calhorda seja apenas, e sempre, praticado pelo executado.

Nós que militamos no foro há mais de 20 anos trabalhando intensamente com a tutela executiva já vimos de tudo e mais um pouco, e, embora em menor escala, há sim muitos casos em que o exequente é um canalha processual, um patife famigerado que não se contenta em simplesmente receber o que lhe é devido nos limites do necessário, mas, ao contrário, com veneno nos lábios, atua de forma a desgraçar moral e patrimonialmente o executado. 

Bem, para início de conversa, é preciso refletir sobre alguns números que são chocantes, verdadeiramente estarrecedores, e que servem de ponto de partida para compreender o selvagem sistema creditício do país. 

Segundo dados publicados Serasa Experian[1] o Brasil possui nada mais nada menos do que 63,3 milhões de pessoas inadimplentes. Trocando em miúdos, pelo menos 40% da população adulta do país passou o ano de 2019 com o nome enlameado nos serviços de proteção ao crédito. E mais, desse total, quase 40% relacionava-se com dívidas bancárias (empréstimos, cartões, leasing, financeira) e, sendo que o restante estava dividido entre dívidas água, gás e energia elétrica (20,8%), telefonia (10,7%), (11,7) varejo e outros.

Os números são alarmantes, até porque não é possível crer – e definitivamente não é - que quase a metade da população ativa do Brasil seja formada por devedores (executados) contumazes e cafajestes. Venhamos e convenhamos, ninguém deve água, luz e gás se não estiver numa situação de desespero financeiro. Não mesmo. Na verdade, talvez o problema da inadimplência no Brasil possa ser compreendido se conhecermos um pouco dos dados e números que resultam da outra ponta do crédito inadimplido. Assim, façamos uma breve digressão apenas sobre os créditos devidos aos bancos e financeiras, que ocupam em torno de 40% de brasileiros adultos. 

E nesta toada analisemos três das mais comuns modalidades de endividamento bancário destes milhões de brasileiros: a) os juros do uso do “cheque especial” b) os juros de parcelamento do cartão de crédito; c) empréstimos de financeiras. 

O cheque especial é aquele dinheiro que não temos, mas que aparece na sua conta como “disponível”. No fundo no fundo é um saboroso, cheiroso e convidativo queijo italiano, só que espetado num anzol preso a uma ratoeira que, uma vez acionada, ou decepa ou aleija para sempre o camundongo faminto que se aventura a morder a isca. 

Pois é, colhe-se dos principais periódicos brasileiros a informação recente de que “em linha com a nova norma do Banco Central, que determinou um limite máximo de 8% ao mês para os juros cobrados no serviço de cheque especial, os principais bancos do país baixaram suas taxas neste começo de ano. (...) Até o final do ano passado, os juros médios do cheque especial no país, de acordo com o Banco Central, eram superiores a 12% ao mês, e passaram de 300% em um ano. Com juros a 8% ao mês, a cobrança anual fica em torno dos 150%. Os juros básicos do país, definidos pela Selic, são hoje de 4,5% ao ano (...)[2]

Por outro lado, ainda garimpando os dados em jornais de grande circulação tem-se que “os quatro maiores bancos de capital aberto — Itaú Unibanco, Banco do Brasil (BB), Bradesco e Santander — tiveram lucro líquido de R$ 86,648 bilhões em 2019, um crescimento de 18,4% na comparação com o ano anterior. Foi o maior resultado nominal da história e o terceiro ano consecutivo de alta. Os dados levam em conta os lucros ajustados e recorrentes”.[3]

Se esses números não servem para explicar todo o fenômeno da extraordinária inadimplência, servem, por outro, para revelar que caçar camundongos famintos e desesperados – e deixá-los num labirinto sem saída - num país pobre como o Brasil é, além de legitimado por lei, também bastante lucrativo.

Da mesma forma isso acontece quando ofertam ao consumidor faminto o parcelamento do cartão de crédito em 12 x com juros nas alturas, e, em seguida vão renegociando a dívida que se transformam em bola de neve interminável. Igualmente, isso também se dá com as financeiras que caçam o consumidor – afinal, quem nunca recebeu uma ligação delas? – oferecendo empréstimo e “dinheiro imediato na conta” também sob juros exorbitantes e já com desconto na folha de pagamento.

Obviamente que se o “sistema financeiro brasileiro” - pelo menos até recente resolução do banco central (n.º 4765) que limitou o valor do juros do cheque especial - permitia este tipo de exploração econômica com estratosféricos juros de mais de 300 por cento ao ano, legitimando os tais lucros históricos mencionados anteriormente, isso por si só não implica em impor sobre tais credores a pecha de “patifes” ou “biltres” ou “crápulas” ou “infames” e nem mesmo de “canalhas”. Isso porque tais credores seguem a regra do jogo e estão dentro da legalidade. O problema aqui mais parece ser de política pública que aceita este tipo de exploração econômica, e jamais se preocupou em fornecer educação financeira ao cidadão desde o ensino fundamental. Não é disso que estamos tratando nesta conversa, embora isso sirva para entender que não se pode estabelecer uma presunção de que todo devedor se transforma em executado seja um cafajeste, antes o contrário. A maior parte deles é vítima de um sistema creditício legal, mas selvagem e imoral.

Assim, o que nos interessa neste nosso rápido e provocativo ensaio são os casos em que, independentemente da legalidade imoral da dívida, existem casos, excepcionais é verdade, em que o exequente atua no processo como um patife processual não se contentando em retirar do patrimônio do executado o que lhe seja devido nos limites do necessário, mas fazendo e usando de tudo que o possa ser prejudicial, transferindo sua raiva decorrente do inadimplemento para o exercício das técnicas processuais.

Além do fato de que o processo deve ser ético, pautado na boa-fé e na cooperação entre todos os sujeitos do processo, tal como exortam as normas fundamentais do CPC, a execução civil é balizada por duas diretivas fundamentais: (1) uma de que a execução é prestada em favor do exequente (art. 4º, art. 139, IV, art. 797), ou seja, tem por objetivo satisfazer o credito exequendo, e, a (2) outra de que essa satisfação não pode ser além do necessário, valendo-se sempre dos meios processuais menos gravosos (art. 776, art. 805, art. 518, art. 520, I, II, II, IV, art. 139, IV, etc.).

Há que restar claro que as diretivas não se contrapõem, mas se completam. Ambas reconhecem que a tutela executiva deve ser prestada em favor do exequente e que só há execução frutífera quando o resultado é a satisfação do crédito exequendo. Mas ambas também reconhecem que há limites legais, e, não apenas éticos, para que a execução não desborde do necessário, ou seja, os procedimentos e provimentos executivos devem ser utilizados na dose certa e perfeita, sem extrapolação do devido processo, de maneira que o sacrifício do patrimônio do executado se dê na forma  e no resultado menos gravoso possível dentre aqueles possíveis (típicos ou atípicos) contra o qual possam ser desferidos.

É neste sentido o caput do artigo 805 quando diz que quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado. Há excesso do meio executivo sempre que houver outro (meio) que atinja o mesmo resultado com menor onerosidade para o executado. É neste sentido também o artigo 139, IV quando fala em medida necessária para assegurar o cumprimento.

Nesta linha, não faltam exemplos de exequente patife que deve ser apenado com a sanção de má-fé processual (sempre com base no art. 77, I e II), sem exclusão da eventual indenização por danos processuais, quando, de acordo com as circunstâncias e evidências do caso concreto: i) pretende receber novamente o crédito já pago na hipótese do art. 940 do CCB; ii) “quando  o  contexto  em que efetivada a averbação  pelo  exequente  indicar que ele o fez sobretudo motivado pela intenção de prejudicar o executado” (REsp  1694820/DF) na hipótese do art. 828 do CPC; iii) quando promove contra o executado a mesmíssima execução em duplicidade de litispendências; iv) quando pretende a alienação por iniciativa particular apenas para retirar o executado da posse do bem, sem a intenção de vendê-lo; v) quando requer a citação por edital do executado para fins do arresto executivo (art. 830), mesmo sabendo e tendo sido informado que ele se encontra em novo endereço, conhecido e certo; vi) quando requer ao juiz os “dados adicionais para complementação do demonstrativo do cálculo” mesmo sabendo que tais dados não estão em poder do executado (art. 524, §4º); vii) quando apresenta caução notoriamente inidônea para prosseguimento da execução (art. 525, §10); viii) quando promove a execução no seu domicílio, burlando dolosamente a regra do artigo 781, III, etc.

Curiosamente - e isso sempre me chamou a atenção pelo lado dramático da situação - permite o Código que o exequente, ao invés de adjudicar o bem penhorado pelo valor da avaliação, possa arrematá-lo em segundo leilão por até metade do preço. Pode até soar como uma “imoralidade”, mas o CPC autoriza tal situação (art. 892), ou seja, não se tem aí um exemplo de exequente patife.

Mas a questão que reservamos para o final é a seguinte: e quando o exequente requerer medidas atípicas – principalmente as coercitivas – previstas no artigo 139, IV do CPC que sabidamente não se mostrarão frutíferas para ele, mas que certamente podem causar um estrago na vida do executado?

Imaginemos a hipótese do exequente – bravo e desequilibrado por não receber o seu crédito – que municie o magistrado com uma série de informações sabidamente antigas e desconectadas da realidade (e sonegadas ao juiz) sobre a vida social do executado que indicariam uma suposta ocultação atual de patrimônio? Ora, qualquer medida atípica que venha a ser tomada neste caso não seria útil se o exequente tem ciência de que o executado não possui patrimônio e se os indícios de ocultação são inverídicos, mas mesmo assim insiste em medidas que, por limites práticos, não lograrão nenhum êxito na execução mas servirão para agonizar a penúria do executado. Neste caso, a arma utilizada pelo exequente para simplesmente padecer ainda mais o executado na sua agrura e aumentar o seu sofrimento pode até acalentar a sua ira, mas também pode ser um tiro pela culatra e voltar-se contra si num exemplo de utilização reconhecidamente desnecessária do canhão processual que o referido dispositivo constitui. Sempre será preciso, obviamente, restar demonstradas as circunstâncias do caso concreto que façam incidir hipóteses dos tipos dos artigo 77 do CPC.

Por isso, é importante deixar claro que o artigo 139, IV pode e deve ser utilizado em prol do exequente, mas ao incitar o magistrado a utilizá-lo ao seu favor, deve fazer com responsabilidade, sinceridade e prudência. E mais, uma vez admitida a incidência subsidiária do dispositivo nas obrigações de pagar quantia como vem decidindo o STJ (REsp 1.854.289), a priori, não é de forma alguma do juiz a “responsabilidade” por conceder medidas atípicas que se mostrem desproporcionais e desnecessárias, mas sim do exequente, pois é este que deve trazer elementos concretos que evidenciem a necessidade de concessão de medidas atípicas.

Recorde-se que caso mostre-se evidente que o executado não possui patrimônio, nem explícito e nem ocultado, não haverá medida atípica mágica que fará brotar patrimônio excutível onde ele não existe, e para tais casos não resta outra solução senão a suspensão do processo (art. 921, III) ou que o exequente requeira a conversão em execução contra devedor insolvente (art. 1052 do CPC combinado com o art. 748 e ss do CPC/73), aliás, algo pouquíssimo explorado no nosso país e que seria de enorme utilidade se fosse mais incrementado.

Enfim, além disso, é preciso lembrar, como dito alhures, que o artigo 805 anda muito próximo do artigo 139, IV do CPC, embora normalmente não sejam associados. Ora, com base no artigo 805, parágrafo único pode o executado requerer que a execução seja realizada por outra medida (outro meio típico por exemplo) por lhe ser menos gravosa. É o caso do executado que invoca o artigo 867 (apropriação de frutos e rendimentos) para evitar a alienação do próprio bem em leilão público, se isso se lhe mostrar menos gravoso. O artigo 805, parágrafo único combinado com o notável texto do artigo 867 é claro neste sentido.

Mas, podemos ir além, especialmente num modelo de processo cooperativo.

É também perfeitamente possível que o executado invoque o artigo 139, IV ao seu favor, ou seja, pretenda a fungibilização de uma medida típica (leilão por exemplo) por uma medida atípica como uma dação em pagamento (adjudicação inversa), obviamente diante das circunstâncias e peculiaridades do caso concreto e respeitado o contraditório do exequente, afinal de contas não pode o processo ser uma caixa de surpresa pra ninguém, especialmente para aquele que busca a tutela jurisdicional. A rigor, não há nenhuma vedação de que o artigo 139, IV seja invocado pelo executado, antes o contrário, pois é sinal de que o executado pretende desonerar-se da obrigação.

Se por um lado o credor pode recusar coisa diversa da devida ainda que seja mais valiosa como diz o Código Civil (313 do CCB) e a dação em pagamento deva ser por ele consentida (art. 356), recorde-se que no processo o credor é exequente e há outros princípios (públicos) em jogo como a eficiência, a menor onerosidade, a maior efetividade etc. O artigo 867 não deixa de ser exemplo disso, quando determinado pelo juiz em substituição a outro meio executivo típico até contra a vontade do exequente se entender que os pressupostos do caput estejam satisfeitos.  Enfim, vemos aí no artigo 139, IV um caminho eficiente para ajustar a maior efetividade da execução com a menor onerosidade possível ao executado, mormente quando este invoque a sua utilização, porque, no mínimo, é sinal de que quer pagar! O contraditório e a evidenciação das razões de ambas as partes é um necessário termômetro para o deferimento de qualquer medida extraída deste dispositivo, seja quando invocada pelo exequente ou até mesmo pelo executado.


[1] Disponível aqui. Acessado em 12.01.2020.

[2] Disponível aqui. Acessado em 03.03.2020.

[3] Disponível aqui. Acessado em 03.03.2020; ver ainda panorama retroativo em texto disponível aqui. Acessado em 15.04.2019.

______________

*Marcelo Abelha Rodrigues é pós-doutorando em Direito Processual Universidade de Lisboa, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor da Graduação e Mestrado da UFES e advogado do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues – Advogados Associados.

 

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