O regime jurídico de Direito Administrativo, em virtude dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, assegura à Administração Pública uma posição de superioridade frente aos particulares contratados, utilizando-se de prerrogativas inexistentes nas relações privadas, as quais são denominadas de “exorbitantes” e que conferem a ela tal posição hierárquica na persecução do interesse coletivo.
Dentre as cláusulas exorbitantes, é frequente a dúvida e discussão acerca do benefício que a Lei Federal 8.666/1993, que regula os contratos administrativos, concede à Administração Pública, a partir da prerrogativa de poder atrasar pagamentos devidos ao particular pelo prazo de até 90 (noventa) dias (art. 78, XV), sujeitando-o a arcar, durante tal período, com os custos e despesas dos serviços que presta sem qualquer possibilidade de paralisação ou diminuição de frente de trabalho, sob pena, inclusive, de aplicação de sanções contratuais (art. 87).
Não obstante, ao possibilitar o atraso – ou inadimplemento – por até 90 (noventa) dias, o artigo 78, inciso XV da lei 8.666/93, garante ao particular a possibilidade de suspender ou rescindir o contrato, caso tal prazo seja superado, assegurado o pagamento dos prejuízos que houver sofrido e dos serviços executados até então (art. 79, §2º e incisos).
Contudo, na prática, verifica-se que não são raras as vezes em que a Administração Pública acaba por não apenas atrasar – e, portanto, inadimplir – o devido pagamento previsto no contrato por prazo superior ao legalmente permitido, mas também por aplicar sanções administrativas ao particular contratado quando este faz uso do exercício de seu direito pela suspensão ou até pela rescisão contratual, extrapolando e abusando da posição que detém.
Embora o particular, quando contratado, seja conhecedor da condição diferenciada que assumirá na relação com a Administração Pública, aceitando as cláusulas exorbitantes previamente dispostas no edital do certame e do futuro contrato, que deve ser anexado ao instrumento convocatório, não se pode admitir que sobre ele recaiam os ônus e prejuízos causados exclusivamente pelo ente contratante sob o subterfúgio da incidência do princípio da supremacia interesse público e de sua indisponibilidade, desequilibrando a equação econômico-financeira e tornando impossível a continuidade de prestação dos serviços, ainda mais por prazo superior ao permitido em Lei, especialmente sob a ameaça de sofrer sanção contratual. Veja-se que o artigo 87 da lei 8.666/93 prevê, como possibilidades, a aplicação de pena de advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração e, a mais gravosa, declaração de inidoneidade, admitindo-se a aplicação conjunta das sanções (§2º), o que, por si só, pode representar grave ameaça ao particular contratado, especialmente aquele que costumeiramente contrata com o Poder Público e pode ser prejudicado por decisões administrativas arbitrárias e ilegais.
Em situações como esta, , em que a Administração Pública contratante restou inadimplente por prazo superior ao limite legal e o particular se utilizou do direito de suspender seus serviços ou de rescindir a relação contratual, afigura-se abusiva e ilegal a aplicação de qualquer sanção por parte da Administração, desafiando-se a intervenção do Poder Judiciário para a imediata suspensão de seus efeitos. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em situação como esta, determinou que a Administração se abstivesse de aplicar sanção em razão da falta de pagamento pelo prazo superior ao previsto no artigo 78, inciso XV da Lei de Licitações. No caso, uma empresa do ramo farmacêutico impetrou Mandado de Segurança pleiteando o afastamento da aplicação de sanções administrativas em razão da suspensão do contrato por decorrência do inadimplemento da Administração Pública. O Relator Carlos Levenhagen fundamentou sua decisão explicando que o regime contratual administrativo, apesar de garantir uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, não pode servir de justificativa para a inobservância das obrigações contratuais e respeito ao art. 78, XV da lei 8.666/93, visto que não se pode aplicar irrestritamente a inoponibilidade dos interesses públicos:
“Como se sabe, o regime contratual administrativo possui uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, sendo, uma delas, a posição preponderante da Administração dentro da relação contratual, expressão do princípio da supremacia do interesse público (...) Assim, dos elementos consignados nos autos, contata-se que o objeto contratual foi devidamente executado pela contratada, não tendo esta, contudo, recebido a ajustada contraprestação por parte do ente municipal, motivo pelo qual se valeu da prerrogativa do art. 78, XV, da lei 8.666/93. Ainda, não se desincumbiu o Município de demonstrar a existência de fundamento ou fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da impetrante.”
(TJMG - Remessa Necessária-Cv 1.0647.16.003941-6/001, Relator(a): Des.(a) Carlos Levenhagen, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/12/2017, publicação da súmula em 23/01/2018)
Em sendo assim, evidencia-se ainda ser comum a prática da Administração Pública em avocar o princípio da supremacia do interesse público para se esquivar do cumprimento de suas obrigações contratuais - especialmente aquela prevista no artigo 78, inciso XV da Lei Federal 8.666/93 -, de sorte que caberá ao contratado a adoção de providências necessárias para a suspensão de serviços ou a rescisão do contrato, não podendo ser sancionado em razão do exercício regular de seu direito legalmente garantido, devendo, eventuais arbitrariedades, serem afastadas pelas vias judiciais cabíveis.
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*Camillo Giamundo é especialista e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, e sócio fundador do escritório Giamundo Neto Advogados.
*Bruno de Oliveira Cortopassi é acadêmico de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e integrante da equipe de Direito Administrativo do escritório Giamundo Neto Advogados.