Uma epidemia virulenta e de alto contágio se dissemina em todo o planeta em questão de poucos meses, provocando efeitos de expressiva magnitude, particularmente no mercado econômico. Os resultados são avassaladores, com óbitos em grande escala, dificuldades financeiras de empresas, de trabalhadores sem poder comparecer em seu labor diário, enfim uma situação que atinge todos os segmentos.
Os impactos contratuais são sensíveis em praticamente todos os setores da atividade econômica, e geram a impossibilidade do cumprimento de prazos, preços ou quantidades pré-estabelecidas. Trabalhadores veem-se impossibilitados de chegar às indústrias, que por via de consequência enfrentam redução de sua produtividade. Países decretam o fechamento de suas fronteiras e espaços aéreos, impossibilitando o transporte internacional de pessoas. O restaurante que contratou um açougue para fornecimento de carne não poderá realizar o pagamento, diante da ausência de clientes, que estão em isolamento domiciliar. Construtoras são impossibilitadas de dar continuidade às suas obras, o que gera atrasos nos prazos contratuais de entrega assumidos. Diante de tais situações, pergunta-se: é possível invocar a pandemia do covid-19 como excludente de responsabilidade por força maior?
Nesse contexto, insere-se a problemática do que fazer com os contratos celebrados anteriormente à eclosão dessa crise. Muitas obrigações se encontram agora impossibilitadas de serem cumpridas, pois o cenário mundial foi completamente alterado.
A recessão prevista e anunciada comprometerá o crescimento dos países e das empresas, produzindo em escala exponencial insolvências, perda de capital de giro e investimentos nas Bolsas de Valores. Por sua vez, o índice de desempregados e de pessoas que migrarão para a atividade informal será expressivo, com efeitos no sistema de arrecadação tributária, uma reação em cadeia com resultados nocivos para todos. Nesse cenário, torna-se necessário fazer uma reflexão e análise sobre as condutas que deverão ser tomadas pelas empresas, em termos de responsabilidade civil. No primeiro momento, é indispensável concluir que estamos diante de um fato de força maior, elemento da natureza que independe da intervenção humana. E, diante desse quadro, torna-se curial destacar a cláusula resolutiva prevista no artigo 393, do Código Civil, que dita: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. Ou seja, o devedor responderá apenas caso tenha assumido expressamente o compromisso de honrar com a obrigação, mesmo diante de força maior.
Por seu turno, o comando inserto no parágrafo único deste mesmo artigo estabelece como condição para a isenção de responsabilidade que não seja “possível evitar ou impedir” os efeitos ocasionados pelo caso fortuito ou força maior. Portanto, a excludente se operou ipso fato, porque não se trata de ato humano, e, ainda, por ser impossível de se evitar e ou impedir. É exatamente a partir dessa premissa que se desenvolve a presente pesquisa.
A ausência de responsabilidade pela inadimplência com base na força maior apenas será reconhecida se absolutamente impossível o cumprimento da obrigação. Cumpre ressaltar que para que seja identificada a inadimplência ou mora como resultado da força maior deve ser analisada, primeiramente, a ocorrência de um evento extraordinário, imprevisível e inevitável. Em segundo, deve ser questionada a relação causa-efeito (nexo de causalidade) desse evento que resultou na inadimplência, e, após, a perda total do objeto para ao menos uma das partes, não bastando uma dificuldade maior, mas, sim, a impossibilidade, ainda que parcial, prática ou econômica, do cumprimento da obrigação. Na mesma linha de pensamento, deve ser constatado que não há meios alternativos possíveis de cumprir a obrigação e que o devedor tomou todas as cautelas possíveis após a ocorrência do fato para notificar a outra parte.
Ademais, para a caracterização de força maior, não basta que se trate de evento da natureza. É certo que, ano a ano, as grandes cidades brasileiras são acometidas por pesadas tempestades de verão – embora sua intensidade varie, trata-se de evento previsível que sempre ocorre, sujeitando as empresas que operam nesse ambiente ao risco do negócio. Muito diferente é uma pandemia, capaz de estagnar a economia do planeta e impossibilitar o deslocamento de pessoas, um evento de magnitude não vivenciada pela humanidade por pelo menos um século. Portanto, um fato aleatório, sem qualquer intervenção humana. Nessa linha de ideias, passemos a alguns exemplos práticos em que a pandemia poderia ser invocada contratualmente como excludente de responsabilidade.
Imaginemos uma empresa de construção civil, a qual teve que paralisar uma obra já em fase de acabamento, cujo prazo de entrega seria o mês de julho de 2020. Em razão de determinação governamental de quarentena obrigatória dos trabalhadores ou por falta de insumos, ocasionada pela suspensão de atividade de uma indústria, ela é obrigada a suspender a obra por prazo indeterminado, descumprindo o termo de entrega com o qual havia se comprometido. Neste caso, poderá ser invocado em seu favor o artigo 625, inciso I, do Código Civil, que prevê a suspensão da obra por motivo de força maior. Não responderá, dessa forma, por qualquer prejuízo que o promitente comprador sofra em decorrência do atraso, seja de ordem material ou extrapatrimonial. Por evidente, deve haver nexo de causalidade entre o atraso e a pandemia, o que significa dizer que se o período de quarentena em que os trabalhadores se veem impossibilitados de chegar à obra se estenda por dois meses, não se justificaria um atraso de um ano.
Passando a outro exemplo, em geral, o cancelamento de um voo que acarrete a perda de compromissos seria causa para pleito de indenização por danos morais por parte do consumidor, além do evidente ressarcimento material tomando por base o valor despendido com o bilhete. Todavia, diante do cancelamento em razão da excepcionalidade da pandemia (considerando que inúmeras nações fecharam seus espaços aéreos), não se evidencia qualquer conduta ilícita por parte da companhia aérea, e, ademais, a força maior rompe com o nexo de causalidade entre a ação da empresa e eventual dano sofrido pelo consumidor. Não há, portanto, que se falar em condenação da companhia aérea ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais.
Por outro lado, não é lícito ao transportador reter qualquer valor a título de multa ou forçar o consumidor a reagendar sua viagem para outra data: deve, em tais casos, reembolsá-lo integralmente sem a cobrança de penalidades, pois qualquer atitude em sentido contrário daria azo a enriquecimento ilícito, vedada nos termos do art. 884 do Código Civil. Haveria um retorno ao status quo ante – a empresa não prestará o serviço e o consumidor teria o reembolso integral. A única ressalva é que, nos termos da Medida Provisória 925/2020, a empresa terá o prazo de 12 meses para concretizar o reembolso. Outras alternativas existentes em favor do consumidor seriam a utilização do crédito para viagens futuras ou ainda a remarcação do voo sem penalidades.
Não cabe esgotar todas as situações concretas em que será aplicável a excludente por força maior, mas certamente a mesma lógica se aplica a um número sem fim de casos similares, tais como contratos bancários, de fornecimento de mercadorias e até mesmo a contratos públicos.
Todavia, há situações de inadimplência em que não haverá isenção de responsabilidade. Caso o contrato tenha sido celebrado após a eclosão da pandemia, mesmo que supervenha a impossibilidade de cumprimento, o evento não será caracterizado como imprevisível. Se o contratante estava em mora antes do início do evento, igualmente, não terá isenta a sua responsabilidade. Ainda, caso o contrato possua cláusula expressa de assunção de responsabilidade pela ocorrência de força maior, não poderá arguir a excludente de responsabilidade. Nesses casos, poderá ser analisada a possibilidade de aplicação do artigo 478, do Código Civil, se for identificada a onerosidade excessiva para uma das partes, mas apenas em contratos de execução continuada ou diferidas e que seja comutativo, ou ainda, com prestações certas e determinadas.
Quando as partes celebram um contrato, é sempre esperada a fluidez do contexto mundial, que expõe os negociantes a riscos inerentes a seus respectivos negócios: inflação, câmbio, clima, mudanças de políticas públicas, dentre outras. Porém, há situações que vão muito além do previsível, como a pandemia do coronavírus (COVID-19), que alteram por completo as circunstâncias do negócio. Nesses momentos, pode se tornar impossível o cumprimento da obrigação, que pode ser descumprida, prorrogada ou diferida, conforme o caso, com o respaldo da lei, em razão do enquadramento como força maior, já que se extrapola a vontade no cumprimento da obrigação.
Ainda assim, a exonerabilidade do devedor somente poderá ser operada em circunstâncias especiais, diante do princípio do pacta sunt servanda e da própria segurança jurídica que se opera no ambiente negocial. Nesse quadro, caberá ao devedor comprovar de forma precisa os elementos (e sua intensidade) que ensejam a aplicação da excludente. Em qualquer caso, nossa recomendação é que, previamente à judicialização de tais situações, busque-se o consenso extrajudicial mediante a renegociação das obrigações assumidas, com a devida formalização de adendo contratual.
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