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OSC e covid-19: impactos das medidas legais no dia a dia das organizações da sociedade civil

As OSC devem ter em mente que a conservação do negócio jurídico, o objeto do contrato, deve ser o objetivo perseguido.

27/3/2020

Assembleias, reuniões de conselho e diretoria

A pandemia não estendeu mandatos ou dispensou formalidades para a tomada e registro de decisões. Assim, eleições e deliberações devem acontecer conforme regras estatutárias, para que a OSC siga funcionando. As disposições estaduais e municipais sobre quarentena e isolamento social afetam as reuniões presenciais, mas estas podem ser substituídas por meios telefônicos ou eletrônicos, com lavratura de atas pelo presidente e secretário de trabalhos. Os registros de presença individuais são alternativas às listas de presença, e podem ser firmados por cada um dos participantes e depois agregados às atas, para fins de registro.

Repactuação de contratos

Contratos podem ser repactuados, com rearranjo de metas, prazos e valores, ou mesmo encerrados, por invocação de exceção de caso fortuito (ato imprevisto pela vontade do ser humano, caso do vírus), força maior (fato resultante de ato alheio, como a quarentena) ou hardship (renegociação quando a execução se torna demasiadamente onerosa por modificações imprevistas das circunstâncias).

As OSC devem ter em mente que a conservação do negócio jurídico, o objeto do contrato, deve ser o objetivo perseguido. A pandemia não deve ser usada como forma de obter vantagem indevida. Assim, ao invocar essas exceções, a OSC ou sua contraparte contratual não deve buscar se eximir da obrigação, mas apenas readequar o equilíbrio perdido pelo evento invocado. Deve, pois, ser acompanhada de uma proposta.

Relações trabalhistas e home office

Durante o estado de calamidade pública a OSC poderá mexer em algumas regras da relação de emprego. O regime de trabalho presencial pode ser alterado para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho, conforme o artigo 4º da MP 927/20.

A organização de regime remoto implica na utilização de tecnologias que facilitem a comunicação e induzam ao distanciamento físico, respeitando as regras de quarentena ou isolamento necessárias à prevenção de contaminação pelo covid-19. Importante atentar que ao adotar essa medida, a OSC deve verificar se o empregado possui os equipamentos tecnológicos e a infraestrutura necessária e adequada ao desempenho de suas funções. Caso o empregado não possua tais equipamentos, a OSC poderá fornecê-los em comodato (empréstimo gratuito).

Além do home office, a MP trata também da possibilidade de antecipação de férias, instituição de banco de horas e do diferimento do pagamento de FGTS para pagamento futuro, a partir de julho de 2020.

Aspectos fiscais e tributários

As medidas tomadas até então em matéria fiscal e tributária estão mais relacionadas à sistemática de recolhimento dos impostos e taxas devidas do que ao pagamento dos tributos propriamente ditos. Em nível federal foi aprovada possibilidade de transação extraordinária de débitos já inscritos em dívida ativa da União, com opção de parcelamento. A Procuradoria da Fazenda Nacional suspendeu, por 90 dias, os procedimentos de cobrança e protestos da dívida ativa e a exclusão de contribuintes de parcelamentos já firmados no caso de inadimplência de parcelas.

O prazo de validade das certidões negativas federais de regularidade fiscal (Certidão Negativa de Débitos ou Certidão Positiva com Efeitos de Negativa) válidas em 24 de março de 2020 foi prorrogado por 90 dias pela portaria conjunta RFB/PGFN 555/20. No Estado de São Paulo, em não sendo isenta do ITCMD, a OSC pode requer o parcelamento do tributo, mediante pedido a ser apresentado para a Secretaria da Fazenda. Foi informado, ainda, que haverá suspensão, pelo prazo de 90 dias, dos procedimentos de cobrança, como inscrição em dívida ativa.

Execução de parcerias públicas e projetos incentivados

Qualquer suspensão de atividades desempenhadas pela OSC em parcerias públicas e projetos incentivados deve ser formalmente comunicada ao parceiro federal, por escrito, e com cópia da norma local (municipal ou estadual, sempre que houver), já que, por analogia às normas processuais, cabe ao interessado demonstrar essa situação ao ente público de outra esfera. Neste caso, a OSC deverá pedir extensão da vigência da parceria (ou do projeto incentivado) pelo tempo da suspensão, com base no art. 55 da lei 13.019/14. Mesma situação se aplica ao parceiro estadual, quando a determinação for municipal.

Não são todos os custos existentes alocados no projeto incentivado ou na parceria que poderão ser suspensos na situação vigente. Eventuais ônus adicionais gerados pela extensão de prazo ou pela natureza da atividade desenvolvida em período de pandemia deverão ser justificados à administração pública que deve acolher essas despesas e promover uma revisão de metas e resultados esperados no plano de trabalho correspondente.

Importante registrar a aplicação da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – nestes casos, que impõe às esferas administrativa, controladora e judicial o dever de que suas decisões considerem consequências, de forma motivada e considerando possíveis alternativas. Devem, ainda, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas anormais ou excessivos.   

Prestações de contas e renovações de certificados

As restrições ao atendimento presencial em repartições públicas não implicam em suspensão de prazos para entrega de documentos ou prestações de contas, pois grande parte da administração pública segue funcionando. Assim, cabe à OSC avaliar a situação específica de cada caso de seu interesse. Como exemplo, até o momento, não há regras que estendam a validade de CEBAS vigente ou que considerem tempestivos pedidos de renovação protocolados depois do vencimento do último certificado. Ademais, estes procedimentos já têm sido realizados de forma eletrônica, via email e/ou sistemas informatizados.

Tampouco houve expedição de regras federais prorrogando o suspendendo prazos para entrega de prestações de contas das leis de incentivo, com exceção dos projetos audiovisuais (portaria Ancine 151-E, art 5º). Cuidar dos prazos segue sendo essencial. Eventuais situações que impliquem impossibilidade de atendimento dos prazos devem ser informadas e justificadas aos órgãos competentes o quanto antes por meio de ofício por escrito enviado em email institucional.

Serviços públicos e atividades essenciais

Muitas das áreas de atuação das organizações da sociedade civil no país estão no campo dos serviços públicos e atividades essenciais, definidos como aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população. Na lista publicada pelo decreto Federal 10.282/20, que regulamenta a lei 13.979/20, também constam entre os serviços essenciais, além da assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; a assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade; entre outros. Não se discute a importância da manutenção a pleno vapor de todas as entidades filantrópicas que estão na linha de frente no combate ao covid-19. Chamamos atenção aqui para desafios das que atuam com assistência social.

Portaria 337/20 do ministério da Cidadania trata de algumas diretrizes para essa reorganização de prioridades que os órgãos gestores da política de assistência social dos Estados, Municípios e Distrito Federal devem adotar para prevenção, cautela e redução do risco de transmissão, preservando a oferta regular e essencial dos serviços, programas e benefícios socioassistenciais. O ato normativo autorizou a aplicação dos recursos financeiros transferidos aos fundos de assistência social dos Estados, Municípios e Distrito Federal à título de apoio à gestão, por meio do Índice de Gestão do SUAS - IGD SUAS, na organização e desenvolvimento das ações destinadas a prevenir e mitigar riscos e agravos sociais decorrentes da pandemia do coronavírus que impliquem em desassistência.

A rede socioassistencial privada deve atentar não apenas para as normativas federais e estaduais mas para os atos municipais que estão sendo editados, assim como as orientações formais das Secretarias correspondentes. No geral, o desafio da OSC é organizar a manutenção das suas atividades à frente de um serviço ou uma oferta de assistência social, contribuir para o atendimento do que de mais prioritário se apresenta no território, além de tomar todos os cuidados de higiene e saúde. Há casos em que mesmo com pedido de suspensão de atividades normais e reorganização de serviços de proteção básica ou de proteção especial de média complexidade, se solicitou das entidades parceiras que fosse mantida a oferta de refeições e/ou gêneros alimentícios aos usuários vinculados aos serviços. Unidades de acolhimento institucional são os serviços mais sensíveis frente a pandemia no âmbito da assistência e deverão continuar abertas, sendo certo que os serviços de acolhimento de idosos deverão ter uma atenção especial redobrada diante do cenário. Recursos emergenciais poderão ser utilizados para ampliação de vagas, alimentação e equipe técnica em virtude de técnicos doentes ou pertencentes a grupos de risco.

Dispensa de chamamento público para parcerias com o Estado

A lei 13.019/14 (MROSC) no seu artigo 30 dispensa o chamamento público como condição precedente para a realização de parcerias com as OSC em situações de calamidade pública. Na União, o decreto legislativo 6/20 reconhece o estado de calamidade pública. A existência de declaração nesse sentido no âmbito estadual ou municipal corrobora o engajamento da OSC no esforço de combate aos efeitos da pandemia.

Há muitas frentes de atuação necessárias e esse momento exige de todos os atores um trabalho assertivo e coordenado para cuidar das populações mais vulneráveis e construir rapidamente soluções conjuntas e inovadoras. É relevante a mobilização da sociedade civil organizada para apoiar esse grande desafio do coronavírus que exige medidas rápidas tanto na garantia da saúde pública, quanto na ciência e tecnologia, assistência social, moradia e até mesmo na economia do país.

Fundos de emergência

Nesse olhar panorâmico sobre o Direito e o Terceiro Setor, registre-se ainda diversos fundos de emergência que estão sendo criados no momento. Alguns deles podem gerar a criação de uma pessoa jurídica sem fins lucrativos no formato fundacional ou associativo, podendo seguir a lei 13.800/19 que trata de fundos patrimoniais caso haja interesse de alocação de mais recursos a longo prazo, pensando no pós-covid-19.

É preciso lembrar, no entanto, que há uma média de 800 mil organizações do país e muitas delas estão bastante preparadas para a gestão de recursos nesses tempos de crise humanitária. Arranjos institucionais que envolvam investimento social privado em organizações da sociedade civil podem contar com dedução fiscal de até 2% do lucro operacional da doação efetuada por empresa que tribute pelo lucro real. A responsabilidade social corporativa deve estar no centro da estratégia empresarial de ajudar a salvar vidas.

Quarentena na gestão administrativa-financeira

Importante todo o trabalho que muitas lideranças e técnicos de organizações da sociedade civil estão fazendo de conectar trabalho voluntário de pessoas, redes e financiamentos, organizar comitês nas favelas e periferias, manter ação sentinela de fiscalização das ações do Estado e controle social das normas editadas e das políticas públicas que estão sendo realizadas nesse momento tão difícil da história.

Por outro lado, para aqueles que atuam em setores administrativo-financeiro  e têm condições de aproveitar o tempo do não deslocamento e da necessidade de gestão do trabalho de equipes em home office temos visto uma tendência de desejo de organizar a casa e realizar bases de trabalhos estruturantes como a preparação para a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados ou a construção de Programas de Compliance.

Direitos Humanos e o pós-crise

Cite-se, por fim, face a questão humanitária internacional tão relevante, que as lutas travadas para enfrentamento da pandemia nesse momento são para que os efeitos da crise sejam os menos devastadores possíveis e para que a reconstrução social e econômica seja feita com base no respeito à dignidade da pessoa humana.

Essa crise que está afetando tanto o dia a dia das pessoas, das organizações da sociedade civil, das empresas e dos governos vai passar. Que as OSC continuem firmes para realizar as ações complementares necessárias agora semeando geração de resultados transformadores no futuro. Sua experiência de lidar cotidianamente com cenários adversos contribui muito para que não esqueçamos de vocalizar a solidariedade e promover os direitos das pessoas mais vulneráveis, sejam elas pessoas com deficiência, mulheres, negros, LGBT, migrantes, refugiados, jovens, crianças e, principalmente, pessoas idosas.

As mazelas evidenciadas na pauta do dia reforçam o convite a todas e todos para que não desistamos de buscar um modelo de desenvolvimento econômico e social mais saudável, solidário, justo, democrático, sustentável e inclusivo. 

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*Eduardo Szazi é Doutor em Direito pela Universidade de Leiden, na Holanda, e sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados

*Laís de Figueirêdo Lopes é Doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

*Paula Raccanello Storto é Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, e sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

 

 

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