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Pandemia de Covid-19 e o equilíbrio econômico-financeiro das concessões

As circunstâncias extraordinárias relacionadas com o covid-19 afetam diretamente os contratos de concessão.

27/3/2020

 

Objeto

As circunstâncias extraordinárias relacionadas com o covid-19 afetam diretamente os contratos de concessão. Há uma multiplicidade de fatores que se conjugam, alguns derivados dos fatos, outros das medidas estatais adotadas para fazer frente a eles.

A amplitude assumida pela crise e a velocidade com que se alteram as condições impõem às concessionárias condutas incontornáveis. No âmbito dos contratos de concessão, a situação implica o rompimento da equação econômico-financeira e o direito à sua recomposição.

Contexto

A propagação do coronavírus Covid-19 assumiu dimensão pública sem precedentes modernos. Tal como em ocasiões anteriores, como o surto de H1N1 em 2009, a OMS - Organização Mundial da Saúde declarou seu caráter de pandemia em 11 de março de 2020.

Uma conjugação de circunstâncias possivelmente relacionadas com a doença em si, a facilidade da troca de informações e as características demográficas da população atingida tornaram-na um fenômeno de gravidade inquestionável.

A percepção de insegurança em face da crise provocou reações intensas de governos em todo o mundo. No Brasil, surgiram atos estatais de várias naturezas e efeitos.

A lei 13.979, depois alterada pela MP 926 e regulamentada pelo decreto 10.282, pretendeu coordenar os esforços do Poder Público na reação à crise. Mas competências públicas vêm sendo invocadas também por estados e municípios, agências reguladoras e outros entes, de modo legítimo e proporcional ou não, para adotar medidas de contenção do contágio, de quarentena ou de garantia de estruturas mínimas de saúde.

Qualquer que seja a explicação para a origem da crise, seus efeitos atuais e futuros são reais, graves e possivelmente duradouros, resultantes de circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis, alheias ao controle dos particulares e em grande medida vinculadas a iniciativas estatais.

Matriz contratual de risco

Cada contrato de concessão, implícita ou explicitamente, contém uma alocação de riscos. A alocação ideal (ótima) é a que atribui o risco à parte que tem melhores condições de gerenciá-lo.

Bem por isso, os riscos ligados à força maior, caso fortuito e aos chamados fato do príncipe ou fato da administração são tipicamente assumidos pelo Poder Público.

Embora a legislação sobre parcerias público-privadas (lei 11.079) aluda a possíveis ajustes contratuais distintos quanto a riscos desta natureza, geralmente se reconhece que atribuir riscos dessa natureza à concessionária implica oneração inadequada do poder concedente e, por conseguinte, da coletividade.

Ainda assim, a análise acerca da equação econômico-financeira não prescinde do exame da alocação de riscos de cada contrato. Embora grave e incomum, a crise em curso, suas causas e seus efeitos se reconduzem aos paradigmas próprios do regime jurídico da concessão, notadamente os de força maior, caso fortuito e fato do príncipe – todos fatores que implicam a quebra da equação contratual das concessões.

Desse modo, o enquadramento detalhado de cada situação dependerá não só da circunstância concreta ocorrida, mas também das previsões contratuais específicas de cada caso.

Circunstâncias extraordinárias

Em linhas gerais, situações caracterizadas como caso fortuito, força maior ou fato do príncipe provocam danos que não se enquadram nos riscos assumidos pela concessionária.

O art. 65, II, ‘d’, da lei 8.666 estabelece que é cabível o reequilíbrio econômico-financeiro “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”

Além disso, o art. 9º da lei 8.987 permite o reequilíbrio dos contratos de concessão (i) quando há a criação de encargos que provocam impacto na equação econômico-financeira (§ 3º) ou (ii) quando há uma alteração unilateral que afete o equilíbrio (§ 4º).

A necessidade ou mesmo a proporcionalidade dos atos estatais adotados em resposta à crise não descaracterizam a quebra da equação contratual.

O art. 3º, § 1º, da lei 13.979 impõe que as medidas excepcionais autorizadas no diploma legal “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégias em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.

Mesmo se cumpridos esses rigorosos critérios, o que possivelmente não correspondente à realidade em muitas situações concretas, a interferência estatal sobre a economia da concessão produz o direito à recomposição de seu equilíbrio original.

A pandemia e seu impacto sobre os serviços concedidos

No caso do Covid-19, trata-se de pandemia reconhecida e declarada formalmente pela Organização Mundial da Saúde. Seus efeitos no Brasil, derivados da própria doença ou da reação estatal e social a ela, provocaram a declaração formal do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional em 20 de março de 2020.

Trata-se, portanto, de situação de gravidade peculiar, que não pode ser enquadrada como situação de risco ordinário. A crise instaurada tem diversos efeitos nocivos em face das concessionárias. Atos estatais podem eles próprios contribuir para gerar efeitos que afetam os contratos de modo direto e com grande intensidade.

Dois exemplos ilustram bem essas afirmações.

O primeiro seria uma eventual recusa de funcionários terceirizados em realizar serviços instrumentais aos serviços objeto da concessão. Essa recusa pode decorrer de algum ato estatal, como os diversos atos de entes políticos variados que vêm impondo isolamento, bloqueando cidades, vedando o transporte de pessoas, fechando atividades comerciais ou estabelecendo limitações de outra natureza. Ou pode ser espontânea, derivada do pânico instalado na população por força da sensação de insegurança e das recomendações sanitárias e médicas.

Dependendo do que ocorrer, as concessionárias não terão alternativa para enfrentar o problema. Deixará de ser prestado o serviço adequado, independentemente por circunstância absolutamente excepcional e alheia ao controle da concessionária.

O segundo exemplo consiste na impossibilidade de aquisição de insumos necessários à execução de suas atividades. A fabricação e o transporte dos produtos podem ser afetados por razões variadas e isso acabaria prejudicando a própria prestação dos serviços concedidos. Trata-se de mais uma circunstância apta a prejudicar as atividades (como, por exemplo, a instituição de limitações à utilização dos serviços), inexistindo alternativa para que seja contornada ou resolvida.

Ou seja, por mais que as concessionárias se esforcem em minimizar problemas e prejuízos, certos intercorrências serão incontornáveis.

Impacto econômico sobre a concessão

Além do impedimento – por atos estatais diretos ou por força de outros fatos – à realização de certas atividades (como nos dois exemplos acima), poderá haver outras decorrências que afetem a economia do contrato e produzam o direito ao reequilíbrio.

A primeira hipótese seria o aumento abrupto dos preços de certos produtos e insumos necessários à prestação dos serviços. Essa circunstância pode não impedir os serviços, mas ocasionar uma elevação de custos em razão de caso fortuito ou de força maior ou derivado dos atos estatais de contenção da propagação do vírus. Quando menos, seria aplicável a teoria da imprevisão.

Atos estatais legítimos ou desproporcionais

Outra categoria de impactos envolveria a desproporcionalidade de atos praticados pelo Estado, em suas diversas manifestações. Já se aludiu às diretrizes da lei 13.979 para a adoção de medidas estatais. O descumprimento de tais pautas, mediante medidas desproporcionais ou sem base científica que provoquem perdas à concessionária, reforça o direito a uma compensação.

Se mesmo atos estatais válidos e razoáveis geram direito ao reequilíbrio por afetar de modo imprevisível ou irresistível a economia da concessão, o direito à recomposição tem fundamentos adicionais nos casos de atos estatais que desbordem dos limites normativos e atinjam a concessão de modo desproporcional, exagerado ou infundado.

Ressalte-se que o direito à recomposição não depende necessariamente da invalidade ou ilicitude do ato estatal. O reconhecimento da validade ou da ausência de ilicitude não se confunde com a ausência de impactos sobre a concessão.

É perfeitamente possível que se estabeleça inclusive uma presunção de legitimidade das medidas estatais de reação à crise. A gravidade da situação e o nível de incerteza científica podem dificultar o reconhecimento de que as medidas estatais são desproporcionais.

O regime jurídico derivado da lei 13.979 e da MP 926 pretende justamente dar segurança aos agentes públicos na resposta à grave situação em curso. Pode-se defender que as diversas escolhas da autoridade são presumidas como adequadas e necessárias diante das dificuldades enfrentadas. A Administração Pública deve considerar as consequências práticas de suas decisões (art. 20 da LINDB), mas também se deve ter em conta o princípio da precaução e a exigência de que as decisões considerem o nível de informação disponível à época (art. 24 da LINDB).

Também por isso é que, mesmo as medidas estatais não desproporcionais nem reconhecidas como ilegítimas, produzem o direito ao reequilíbrio derivado de situações de caso fortuito, força maior ou fato do príncipe. A solução jurídica é distinta quando a concessionária sofrer os efeitos de práticas administrativas ilícitas. 

Atos próprios da concessionária

A complexidade da crise e a velocidade com que os fatos se sucedem e se modificam provocam outra situação peculiar. Em muitas circunstâncias, os efeitos sobre a concessão derivam não diretamente de atos estatais, mas da resposta da própria concessionária aos fatos – inclusive de suas iniciativas dirigidas à mitigação dos danos resultantes das circunstâncias extraordinárias verificadas.

Na sua condição de gestora dos serviços concedidos, a concessionária pode ser compelida a tomar decisões drásticas. Imagine-se a situação da concessionária constrangida a, mesmo inexistindo determinação normativa ou do poder concedente, cessar a prestação de serviços instrumentais à propagação do vírus. Ou se imagine a concessionária sujeita a despesas inúteis, cuja manutenção apenas ampliaria o desequilíbrio contratual.

Essas situações autorizam a concessionária adotar decisões, de caráter inevitável e que correspondem às determinações que o poder concedente estaria obrigado a ordenar ou autorizar. Isso é ainda mais claro quando tais atos correspondam a formas de mitigação dos efeitos negativos provocados pelas circunstâncias extraordinárias verificadas. A eventual inação do poder concedente – inclusive diante das múltiplas demandas que a excepcionalidade da situação apresenta às autoridades públicas – não pode resultar em perda adicional para a concessionária.

Conclusões

Diversas ocorrências derivadas do surto do Covid-19 e da reação estatal e social à doença e aos riscos a ela associados ensejam o reequilíbrio econômico-financeiro das concessões.

Cada situação deverá ser examinada detalhadamente, mas, em linhas gerais, as circunstâncias extraordinárias vivenciadas se reconduzem às categorias de força maior e caso fortuito ou de fato do príncipe, conforme a causa direta das perdas verificadas.

O direito ao reequilíbrio derivados de atos estatais independe de sua ilegitimidade ou ilicitude, embora o direito da concessionária adquira fundamentos adicionais diante de atos governamentais desproporcionais ou sem fundamento científico.

Também não afeta o direito da concessionária o fato de as perdas apuradas derivarem de atos de iniciativa da própria concessionária, por vezes praticados em decorrência de circunstâncias incontornáveis ou com o propósito de mitigar, nas condições possíveis, os efeitos negativos da situação ensejadora do desequilíbrio contratual.

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*Cesar A. Guimarães Pereira é sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini desde 1994. É Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Foi visiting scholar na área de Arbitragem Internacional da Columbia University, sob a supervisão do Professor George Bermann. Publicou “Elisão Tributária e Função Administrativa” e “Usuários de Serviços Públicos”. Recentemente coordenou a edição brasileira do livro “Comentários à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias” de Schlechtriem & Schwenzer (Thomson Reuters). É course leader (instrutor) da SiLS – Swiss International Law School, da Basileia, e professor no Instituto de Direito Romeu Bacellar. É Fellow do Chartered Institute of Arbitrators (FCIArb).

*Rafael Wallbach Schwind ingressou na Justen, Pereira, Oliveira e Talamini em 2000 como estagiário, e desde 2003 é advogado. É Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo e visiting scholar na Universidade de Nottingham. Publicou os livros Remuneração do Concessionário, Licitações Internacionais e O Estado Acionista, e coordenou as obras coletivas Parcerias Público-Privadas, Direito Portuário Brasileiro e Direito, Instituições e Políticas Públicas LINDB Anotada (2 volumes). É autor de diversos artigos publicados em obras coletivas e revistas especializadas no Brasil e no exterior. É professor de direito administrativo, árbitro e mediador em diversas câmaras de mediação e arbitragem no país. Atua principalmente em questões de direito público, com foco em infraestrutura, regulação econômica, concessões, parcerias público-privadas, questões portuárias, arbitragem, licitações e contratos administrativos em geral.

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