I – A MP 927/20: VIGÊNCIA E ABRANGÊNCIA MATERIAL.
Assinada no dia 22/03/2020, ainda no domingo, e publicada em edição extraordinária do Diário Oficial, entrou em vigência a tentativa do Governo federal em criar instrumentos excepcionais no Direito do Trabalho com vistas a conter a crise desencadeada pela disseminação da Covid-19.
Com início de vigência ao tempo da publicação, as disposições especiais perdurarão enquanto vigorar o estado de calamidade pública, inicialmente reconhecido pelo decreto legislativo 6/20 com efeitos até 31/12/2020. Acaso haja prorrogação temporal do estado de calamidade pública, portanto, as medidas trabalhistas da MP 927/20 também valerão. Neste caso, dado o prazo de vigência de no máximo 120 dias de medidas provisórias, será necessário ter havido a aprovação pelo Congresso da norma, não é demais mencionar.
É preciso indicar, ainda no quesito vigência, que há providências que, embora tomadas ao longo da vigência da MP 927, podem se projetar para além do tempo de estado de calamidade. Como será abaixo demonstrado, tal se passa, por exemplo, com a possibilidade de antecipação de períodos futuros de férias e banco de horas de 18 (dezoito) meses.
Igualmente, acordos coletivos e convenções coletivas cuja vigência expire no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da publicação da MP poderão ser unilateralmente prorrogadas pelo empregador por até 90 (noventa) dias, conforme art. 30 da norma.
Os Auditores Fiscais do Trabalho atuarão em regime de orientação pelo período de 180 (cento e oitenta) dias contados da vigência da MP, salvo para casos especificados, como falta de registro e trabalho em condições análogas a de escravo, nos termos do art. 31 da MP.
Por fim, é preciso apontar que a MP foi dotada também de efeito retroativo, de forma que os atos tomados em consonância com a norma nos 30 (trinta) dias anteriores à sua publicação estão convalidados. O efeito parece particularmente relevante, por exemplo, para férias já concedidas sem o aviso prévio de 30 (trinta) dias.
Quanto à abrangência material, o texto é expresso ao determinar sua aplicação para empregados rurais, estagiários, aprendizes, empregados domésticos, além de contratos temporários e de terceirização (art. 32).
II – DAS MEDIDAS EM ESPÉCIE.
Em relação às medidas propriamente ditas, é possível antecipar que a MP 927/20 buscou flexibilizar formalidades que dificultavam ou mesmo obstaculizavam a utilização de certos expedientes em regime de urgência. Não houve, de forma geral, a criação de novos expedientes, mas sim a confirmação da necessidade premente da utilização das figuras já existentes, de forma a simplificar a aplicação nestes tempos de emergência, como férias, banco de horas e suspensão do contrato e teletrabalho.
Para além do desembaraço proposto em relação a figuras já existentes, o texto propõe significativa mudança em relação à hierarquia das normas trabalhistas, temporariamente neutralizando o princípio da norma mais favorável. Trata-se, aqui, sem dúvidas, de relevante aspecto, na perspectiva dos fundamentos do Direito do Trabalho.
Iniciemos a análise por tal aspecto, pois.
a) A suspensão temporária do princípio da norma mais favorável em estatura legal. Art. 2º da MP.
Por sua relevância, convém transcrever desde já o teor do art. 2º da MP 927/20:
Art. 2º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.
Vige no Direito do Trabalho, como se sabe, o princípio da norma mais favorável. Segundo o fundamento, as diversas fontes do direito, como a Constituição, uma lei, um acordo coletivo e o próprio contrato individual, se organizarão pela ideia de maior benefício ao empregado. É dizer, dispondo várias fontes sobre uma mesma questão, valerá a que importar em melhores condições ao empregado. É como se passa com o advogado empregado: dispondo a Constituição do adicional de horas extras na ordem de 50%, é válida a lei própria que determina o adicional de 100% (lei 8.906/94).
Em 2017, a reforma trabalhista (lei 13.467/17) determinou uma importante mitigação ao princípio geral, ao determinar que acordos coletivos devem ser aplicados sobre o que dispõe a lei, só devendo obediência ao que determinado pela Constituição (art. 620 da CLT). Para seguir no exemplo acima, por meio de acordo coletivo é possível reduzir o adicional de horas extras de advogados empregados previsto na lei, de 100%, até o limite de 50% previsto na Constituição.
A MP 927/20, portanto, aprofunda a mitigação ao princípio da norma mais favorável. Segundo o artigo 2º, por meio de contrato escrito individual entre empregado e empregador é possível criar disposições contrariando benefícios já previstos, seja em leis, como na CLT, seja em acordos coletivos e convenções coletivas. Só as disposições da própria Constituição não podem ser superadas. Para seguir no exemplo tomado, passa a ser possível a redução legal do adicional de horas extras do advogado empregado por contrato individual escrito, sem a necessidade de consulta ao sindicato profissional.
Por derivação, se passa igualmente a mitigação do princípio da inalteralibidade contratual lesiva. Segundo princípio, previsto no artigo 468 da CLT – e, portanto, de sede apenas legal – benefícios estabelecidos no contrato individual de trabalho não podem ser posteriormente revogados. Assim, dispondo a regra da MP que os contratos individuais escritos prevalecem sobre o que definido na lei, fica autorizado, por sede contratual, a retirada de benefícios concedidos no próprio contrato, desde que não previstos na Constituição. Vale esclarecer que a redução salarial não é permitida, precisamente por se tratar de aspecto previsto na Constituição, que impõe a realização de negociação coletiva com essa finalidade (art. 7º, inciso VI).
É preciso, por fim, bem compreender os limites de aplicação dessa liberdade contratual.
Em primeiro lugar, um limite temporal. As reduções impostas contratualmente terão aplicação exclusivamente ao tempo da calamidade pública reconhecida pelo Poder Público.
Em segundo lugar, a legislação determina uma contrapartida necessária: a manutenção do contrato de trabalho, ao menos ao tempo de vigência das reduções contratualmente impostas. É razoável supor, assim, que eventuais reduções estabelecidas no contrato individual de trabalho só terão validade se o contrato de trabalho for mantido.
É essa contrapartida necessária, aliás, que traz sentindo geral à MP.
De fato, qual seria o sentido de se autorizar a redução geral da legislação por contrato individual de trabalho no artigo 2º da norma e, logo após, nos demais dispositivos, tratar de outras flexibilizações legais ao texto? Há sentido: a criação de flexibilizações à legislação pelo contrato individual do trabalho impõe, necessariamente, a manutenção do vínculo. Já a utilização das flexibilizações previstas nas normas não importam em semelhante compromisso.
Poderá o empregador, assim, reverter empregados ao regime de teletrabalho nos termos da previsão da MP e, ao terceiro mês da crise, optar por demitir o empregado revertido. Semelhante opção não estará aberta ao empregador que optar pela redução de benefícios legais e normativos pela via do contrato individual de trabalho, sob pena de nulidade das reduções contratualmente impostas.
Vale, por fim, transcrever o caput do art. 3º que trata das demais hipóteses de flexibilização para exaurir a questão:
Art. 3º Para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e para preservação do emprego e da renda, poderão ser adotadas pelos empregadores, dentre outras, as seguintes medidas: (...)
Embora o caput do artigo 3º da norma também refira à "preservação do emprego e da renda", não há no texto a mesma relação direta entre a utilização de tais ferramentas e a indicação da finalidade de garantia de emprego, não se verificando, aqui, o mesmo comando de contrapartida necessária. Tanto é assim que o mesmo texto refere, ainda, outras medidas que poderiam ser adotadas. Assim, para se compreender que a utilização das demais flexibilizações dependeria da manutenção do empregado seria necessário adotar que toda e qualquer medida do empregador importaria na criação da garantia de emprego, o que não se justifica, principalmente considerando já haver na CLT variadas hipóteses de flexibilização.
A adequada interpretação a ser conferida ao artigo 3º da MP, portanto, aponta no sentido da justificativa para a ação do próprio legislador, que indica a intenção geral de combate aos efeitos da crise e preservação do emprego e da renda para o estabelecimento das medidas de flexibilização propostas, as quais passam a ser indicadas.
b) Da flexibilização de formalidades próprias ao teletrabalho. Art. 4º e ss da MP.
Os artigos 4º e ss da MP 927/20 tratam das hipóteses de flexibilização de formalidades para o uso do Teletrabalho, as quais também se aplicam a estagiários e aprendizes.
Segundo a novidade, a reversão ao regime de teletrabalho, e seu retorno, podem se dar por decisão unilateral do empregador, sem a necessidade de acordo individual escrito. É estabelecida, apenas, a notificação prévia de 48 (quarenta e oito) horas.
Disposições próprias relativas aos custos envolvidos na infraestrutura, conforme disciplina do artigo 75-D da CLT, continuam demandado previsão em contrato individual escrito, mas podem ser firmadas no prazo de 30 (trinta) dias do início da reversão. Recomenda-se, em todo caso, que seja firmado tal contrato no ato da reversão, se possível.
A MP estabelece que o empregador poderá colocar à disposição, em regime de comodato, os equipamentos necessários à realização das atividades, sendo expressamente indicada a natureza indenizatória da parcela.
É preciso se atentar ao fato de que a MP determinou que, acaso não haja a possibilidade de trabalho remoto por meio da utilização de equipamentos eletrônicos, ainda que emprestados do empregador, será preciso contabilizar a jornada de trabalho por algum meio, sendo considerado tempo à disposição do empregador (art. 4º, § 4º, inciso II da MP).
Por fim, vale anotar que direitos como vale transporte e vale alimentação devem ser mantidos se previstos em acordo coletivo ou convenção coletiva.
c) Da flexibilização do instituto das férias. Artigos 6º e ss da MP.
Em relação às férias, registra-se, inicialmente, a retirada de formalidades prévias como o aviso prévio de 30 (trinta) dias e o pagamento antecipado do benefício. O aviso passa a ser de 48 (quarenta e oito) horas e o pagamento poderá ser realizado até o quinto dia do mês subsequente, sendo que o terço constitucional poderá ser realizado até o pagamento do 13º salário.
Novidade expressiva da MP é a possibilidade de antecipação de férias relativas a períodos aquisitivos já iniciados e ainda não vencidos, sob a discricionariedade do empregador. Igualmente, é possível que períodos futuros de férias, relativos a períodos aquisitivos ainda não iniciados, possam ser usufruídos, desde que seja celebrado acordo individual nesse sentido. Com isso, por exemplo, é possível que seja feito acordo antecipando férias relativas às férias de 2021-2022.
Ao empregador da área de saúde foi também facultada a imediata convocação dos trabalhadores em férias para atuação.
Já a conversão das férias em pecúnia, a chamada "venda de férias", deverá ser acordada com o empregador, deixando de ser prerrogativa exclusiva do empregado ao longo da crise.
A flexibilização também se estende a férias coletivas, as quais poderão ser convocadas pelo empregador, observando-se apenas o prévio aviso de 48 (quarenta e oito) horas. Ficam suspensos, igualmente, o limite mínimo de 10 (dez) dias de férias e a comunicação à Secretaria do Trabalho.
d) Da flexibilização em relação a banco de horas e antecipação de feriados. Art. 13 e ss da MP.
Em relação à compensação de jornadas, a MP estabelece duas grandes flexibilizações.
Em primeiro lugar, é possível determinar compensação de dias feriados não religiosos, por ato unilateral do empregador. Será preciso, apenas, a notificação prévia do novo calendário a ser seguido no prazo de 48 (quarenta e oito) horas. Para feriados religiosos, é necessária a concordância do empregado.
Em segundo lugar, será possível considerar os feriados no banco de horas, que passa a ter limite de 18 (dezoito) meses, desde que por acordo individual escrito. O prazo de 18 (dezoito) meses, é preciso bem anotar, será contado a partir do fim do estado de calamidade pública.
e) Da suspensão de exigências administrativas em segurança e medicina do trabalho. Art. 15 e ss da MP.
Ao longo do estado de calamidade pública fica suspensa a exigência de realização de exames médicos ocupacionais, mantido apenas o exame demissional – acaso não realizado o exame médico ocupacional no prazo de 180 (cento e oitenta) dias. Tais exames deverão realizados no prazo de 60 (sessenta) dias após o término do estado de calamidade, salvo recomendação médica específica.
Igualmente, fica suspensa a obrigatoriedade de realização de treinamentos periódicos referidos em Normas Regulamentares da Secretaria do Trabalho, podendo, ainda, serem realizados por meio telemático. Os treinamentos precisarão ser realizados em 90 (noventa) dias contados do término do estado de calamidade.
As comissões internas de prevenção de acidente (CIPA) poderão ser mantidas, inclusive com a suspensão dos respectivos processos eleitorais.
f) Da flexibilização do lay off – suspensão do contrato para qualificação. Art. 18 e ss da MP.
A Medida Provisória flexibilizava pontos relevantes da figura já prevista no artigo 476-A da CLT.
Em primeiro lugar, a suspensão do contrato de trabalho, pelo texto, poderia ser realizada por meio de acordo individual escrito com o empregado, sendo dispensada, pois, a consulta ao Sindicato profissional, sendo livre a possibilidade de estipulação de estipulação de valores aos empregados no período. Em segundo lugar, a norma estabelecia de forma textual a possibilidade de realização de treinamento não presencial.
Após a repercussão negativa da disposição, o Governo entendeu por voltar atrás no dispositivo. O texto do artigo 18 da MP 927, assim, foi sumariamente revogado pelo artigo 2º da MP 928, publicada no dia 23/03/2020, um pouco antes das 23hs. Em entrevista coletiva realizada no dia 23/03, pela tarde, foi indicado que a questão da suspensão retornará em outra medida, na qual serão também estabelecidas também participação do erário em ajudas financeiras aos empregados cujos contratos forem suspensos.
g) Do diferimento do recolhimento do FGTS. Art. 19 e ss da MP.
Fica suspensa a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente.
Tais obrigações poderão ser quitadas de forma parcelada – em até seis vezes – a partir de julho de 2020. O empregador precisará declarar as informações até o dia 20 de junho para fazer uso da prerrogativa.
h) Das matérias específicas aos profissionais da área de saúde. Art. 26 e ss da MP.
Estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, poderão prorrogar a jornada de trabalho dos profissionais da área, mesmo para aqueles que trabalham em condições insalubres e em regime de compensação de 12x36.
As prorrogações ao trabalho poderão ser incluídas em banco de horas, e compensadas em 18 (dezoito) meses do fim do estado de calamidade pública.
Aspecto relevante da norma diz respeito à questão de eventual reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional. Para o texto legal, apenas se comprovado o nexo de causalidade será possível indicar adoecimento como decorrente da relação de trabalho.
i) Da antecipação do abono anual. Art. 34 da MP.
A MP estabelece, ainda, a antecipação do abono previsto no artigo 40 da lei 8.213/91. Trata-se de benefício pago a segurados da Previdência que durante o ano tenha recebido auxílio-doença, auxílio-acidente ou aposentadoria, pensão por morte ou auxílio reclusão.
O benefício, que normalmente é pago no final do ano, será pago nos meses de abril e maio.
III – CONCLUSÃO. A QUESTÃO DA FORÇA MAIOR.
Tendo a MP, em seu artigo 1º, parágrafo único, indicado de forma expressa estarmos em regime de força maior, é preciso indicar as consequências que daí decorrem.
Segundo o artigo 501 da CLT, entende-se por força maior acontecimentos inevitáveis, fora do controle do empregador, dos quais decorram prejuízos à empresa, levando à extinção da empresa ou de estabelecimentos.
Em tais condições, indica o artigo 502 da CLT que as verbas rescisórias serão pagas pela metade, nos contratos tanto a prazo determinado como indeterminado.
O artigo 503 da CLT, por sua vez, refere à possibilidade de redução de até 25% (vinte e cinco por cento) dos salários de empregados, respeitado o salário mínimo.
Reconhecido o estado de força maior pela legislação, é possível, portanto, que, em hipóteses de extinção de empresas ou de estabelecimentos, as indenizações pela extinção dos respectivos contratos de trabalho sejam pagas pela metade, nos termos do artigo 502 da CLT. É preciso considerar, no entanto, que a indenização relativa aos 40% do FGTS, por decorrer de previsão constitucional, o Art. 10, inciso I, do ADCT, não poderá ser alcançada pela redução, apenas as demais verbas rescisórias.
Em igual medida, não parece apropriado falar-se em aplicação do artigo 503 da CLT, precisamente em decorrência da aplicação do artigo 7º, inciso VI, da Constituição da República. Segundo o dispositivo constitucional, a redução salarial só poderá se dar por meio de negociação coletiva, a afastar a recepção, pela Carta de 1988, do artigo 503 da CLT.
Essas, pois, as primeiras medidas legislativas trabalhistas apontadas pelo Governo Federal para apaziguar os efeitos da crise da Covid-19 aos contratos de trabalho. Agora é aguardar os efeitos práticos da norma, bem como a interpretação que será conferida ao texto pelas Autoridades Judiciárias. Nesse sentido, inclusive, não é demais mencionar, desde já, manifestação bastante dura da Anamatra (Associação Nacionais dos Magistrados Trabalhistas) contra o texto da Medida Provisória. Alguma cautela na aplicação do texto, portanto, é recomendada.
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