Da anorexia de ética para uma bulimia regulamentária: salvará ela a comédia do mercado americano?
Jayme Vita Roso*
Aliás, no Brasil, estes últimos arranjaram ardorosos defensores (advogados de renome, evidentemente) para respaldar sua desvinculação do Sistema Financeiro e escapar da macia, complacente e caricata fiscalização do Banco Central e, chi lo sa, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). É-lhes confortável (palavra chave da nova geração) ficar ao abrigo anti-regulatório da ANBID (Associação Nacional dos Bancos de Investimento): na verdade uma galhofa.
Pois bem, volvendo ao paraíso neoliberal buschiano, poucos dias atrás, estouraram dois fundos de investimento com um prejuízo acima de quinze bilhões de dólares, obrigando, outra vez, o Procurador-Geral de Nova Iorque, Eliot Spitzer, a vir aos holofotes – o que muito lhe apraz – para denunciá-los e começar uma investigação paralela à da SEC. O resultado é que esse escândalo, conhecido como Putnam, Strong Funds and Fidelity balançou a indústria norte-americana de fundos, onde há cerca de sete trilhões de dólares aplicados. Aliás, desde o último verão americano, aquele Procurador vinha investigando não só os mencionados, como, também, outros gigantescos fundos, neles se incluindo os do Bank of America e os Janus Funds.
As principais fraudes foram descobertas e, até agora, anunciadas: utilização de operações no final do pregão em benefício dos administradores; práticas ilegais de vendas; comissões exageradas e lucros compartilhados ilicitamente entre eles.1
Enquanto os quotistas dos fundos eram roubados (pobres investidores) pelas manipulações, os administradores dos portfólios levantavam empréstimos, dando ações dos mesmos portfólios como garantia colateral para cobrir os rombos. O que mais chamou a atenção é que alguns fundos, ligados a bancos respeitáveis (lembramos a peça teatral de Sartre), faziam as trapaças e, depois, davam ações em garantia para sacar empréstimos com eles mesmos, num circuito interminável de atos ilícitos com prejuízos dos incautos investidores, mas não dos fundos que, de forma indireta, chancelaram as fraudes.
Realmente, a máquina de manipulação de fundos só poderia funcionar com todas as pontas ou partes envolvidas - exceto os otários investidores -, agindo elas em comum, com o objetivo de ganhar fortunas, através de meios ilegais, em detrimento dos crédulos aplicadores.
Eric Naimer-Roseman, em recente número do Global Mutual Fund Investor (v. 12, nº 10, p. 11, on line: https://www.eas.ca), descreveu os fatos acima apontados com o pungente título: “A SEC dorme, enquanto os escândalos dos fundos mútuos sacodem a América”.
De outra banda, o pândego George Soros resolveu ser filantropo, doando, ao que dizem, quinze milhões de dólares para combater a candidatura de Bush ao pretenso segundo mandato. Mas, o que me parece ser coerente com a filantropia de Soros é o fato de o governo americano, após 11 de setembro de 2001, acabar com a privacidade. E seguiram-se-lhes os países da OCDE, de modo particular a Inglaterra, do ex-trabalhista Blair. Em nome do combate ao terrorismo, Soros deve ter pensado: “Até eu, poderei ser acusado de estar envolvido e, como cidadão global (= investidor global), poderei ter meus ativos financeiros, ou não, bloqueados”. Perderia ele a “soberania individual”, expressão bem criada por Mark Nestmann, e o resultado poderia ser-lhe patrimonialmente pungente.
Comento o desespero de Soros, até dando-lhe a palma de haver levantado, para o indivíduo, o que já é tábula rasa para os países: a globalização frenética e manipulada acabou com a soberania dos países, pois foi orquestrada pelas multinacionais para desmoralizar o Poder Judiciário; adotar gradualmente a forma contratual da common law; localizar a arbitragem como maneira de acabar com os conflitos; adotar o foro de Nova Iorque, em caso de litígio, ou a Câmara de Arbitragem, da mesma cidade, como palco para deslindar controvérsias.
Isso sem falar com a condução, através de manobras politicamente indecorosas, de indivíduos com MD ou PhD, formados em universidades americanas, a postos chaves em algumas das instituições monetaristas dos países em desenvolvimento. O governo de FHC foi pródigo em acolher esses rapazolas. Até o atual presidente do Peru foi funcionário privilegiado.
A globalização volta-se contra este novel defensor da privacidade individual, ele que sempre manipulou mercados, com requinte de barbaridade (o caso da libra esterlina é inesquecível).
Voltando à SEC, no dia 4 de novembro, para mostrar que funciona, aprovou os padrões da nova governança corporativa para empresas listadas na New York Stock Exchange (NYSE) e na Nasdaq Stock Market (Nasdaq). Na verdade, a SEC apenas chancelou o que essas bolsas haviam redigido, no último verão, sugerindo sua aprovação pela autoridade competente.
O que a SEC referendou se aplica às empresas listadas na NYSE e na Nasdaq norte-americanas, bem como, em parte, às estrangeiras que nelas operam. Quanto a estas últimas, pelo que interpreto do longo texto, a médio prazo, terão que, nos seus países, adaptar-se à regulamentação da SEC, ficando à mercê de hostile-takeovers (ou aquisições feitas na marra, à moda do antigo faroeste).
Por ora, listarei apenas os pontos relevantes, no geral, pois há significativas diferenças nas exigências a serem cumpridas pelas empresas cotadas na NYSE e na Nasdaq, que são impossíveis de oferecer, neste espaço.
Há requisitos distintos para o funcionamento e composição da diretoria (e conselho) das empresas.
Há requisitos funcionais e operacionais para os diretores independentes que trabalharem nas empresas, devendo ser a maioria e, com isso, harmonizam com a SEC e com a exigência do Sarbanes Oxley Act de 2002 (Act). Nessa área, as diferenças entre os requisitos da NYSE e os da Nasdaq são relevantes.
Há instruções para o funcionamento do Comitê de Auditoria, que tem diferenças básicas (maiores ou menores) com os da NYSE e da Nasdaq.
Muito embora o Act não se atenha nem abarque o papel ou a composição de outros comitês da diretoria, tanto a NYSE como a Nasdaq criaram peculiaridades aplicáveis às empresas sobre as quais têm competência regulatória.
A desqualificação de diretores e de funcionários, como previu a Section 305 do Act, poderá ser feita pela SEC quando ela entender que o profissional tenha conduta que demonstre infitness com a companhia, ou seja, que ele não ostente a “esbelteza” necessária.
A SEC encampou a Section 406 do Act, que elaborou um Código de Ética para funcionários e diretores que exerçam cargos relevantes, inclusive “manipulação de auditores”. Aqui, também, há distinções dos critérios eleitos pela NYSE e pela Nasdaq.
Embora o Act não tenha provisionado qualquer regra para a educação e treinamento dos diretores, tanto a NYSE como a Nasdaq enfatizam que os diretores de companhias listadas deverão freqüentar e participar de educação permanente e treinamento contínuo para conhecer, aplicar e melhorar as regras de governança corporativa, sobretudo no que se refere às responsabilidades.
Reitero o que acima apontei, no item 4: que as empresas estrangeiras cotadas na NYSE ou Nasdaq, a pouco e pouco, deverão submeter-se às regras e os regulamentos, como decidido em 4 de novembro de 2003.
Finalmente, a SEC, pela Regra 10A-3, vai exigir o cumprimento do Act e verificar seu atendimento, fornecendo, a cada ano, uma certidão de que a companhia cumpriu com seus deveres ou se violou a lei, exigência essa que deve comunicar aos acionistas, no seu relatório anual.
Essa bulimia a que conduzirá? Esperemos pelos novos escândalos com outras desculpas regulatórias, o que é de se lamentar.
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1BOLAND, Vincent. Mutual funds scramble to limit damage. Financial Times. Londres, 25-26.out.2003. Markets Week, p. 11.
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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