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Você e o coronavírus

Já que existe a lei considerando situação de emergência e com previsão de enfrentamento para a proteção da coletividade, nada mais justo que ocorra a restrição a alguns direitos individuais em favor do interesse coletivo.

22/3/2020

Foi noticiado pela imprensa que um advogado, suspeito por ser marido de uma paciente já contaminada pelo Covid-19, recusou-se a atender a determinação da autoridade epidemiológica para que fosse submetido a coleta de amostras clínicas e exames laboratoriais para diagnosticar se tinha sido infectado pelo coronavírus. Em razão da desobediência foi expedida tutela de urgência pela Justiça, que determinou o isolamento domiciliar e estabeleceu a pena de multa por descumprimento de R$5.000,00, limitada a R$ 20.000,00. Os exames comprovaram, posteriormente, que ele também era portador do vírus.

Após o Brasil proclamar Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em razão ainda do surto do coronavírus, sanciona agora, com a decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, a lei 13.979/20, lei excepcional caracterizada por circunstâncias que determinaram sua edição, que prevê medidas de enfrentamento da emergência da saúde pública, com a finalidade de evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º para o enfrentamento, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Também merece atenção especial a atribuição que a lei confere a cada pessoa, como se fosse um longa manus do Estado a respeito da obrigatoriedade de colaborar com as autoridades sanitárias em fazer a comunicação imediata de possíveis contatos com portadores do coronavírus e a circulação em áreas consideradas de contaminação.

A Portaria 356, de 11 de março de 2020, regulamenta a operacionalização da referida lei, inclusive juntando os modelos de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para ser assinado pelo paciente em caso de isolamento ou quarentena recomendado pela vigilância epidemiológica.

O descumprimento destas medidas por parte do infectado pelo coronavírus acarretará sua responsabilização civil e penal e o médico ou o agente da vigilância epidemiológica deverá, obrigatoriamente, informar a autoridade policial e o Ministério Público para que sejam tomadas as medidas compreendidas no inciso III do artigo 3º da lei 13.979/20. Além do que foi editada a Portaria Interministerial nº 5 dos Ministérios da Saúde e Justiça disciplinando que, em casos de descumprimento das determinações impostas pelos órgãos públicos, o responsável poderá incorrer nas penas do artigo 268 (infração de medida sanitária preventiva) e do artigo 330 (desobediência), ambos do Código Penal.1

A Constituição Federal estabeleceu, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e que é dever do Estado realizar a promoção do bem-estar social. No caso específico, em que foi decretada a pandemia do coronavírus, fica mais do que evidenciado que a atenção estatal deve tomar todas as providências para evitar a contaminação ou sua propagação.

Para tanto, já que existe a lei considerando situação de emergência e com previsão de enfrentamento para a proteção da coletividade, nada mais justo que ocorra a restrição a alguns direitos individuais em favor do interesse coletivo. Na realidade, não se pode falar em desrespeito ao direito pessoal, pois no momento em que haja fundada desconfiança no sentido de que o paciente seja portador do vírus, a ele é conferida toda a atenção para que se submeta aos exames necessários e, constatada a enfermidade, que a ele seja conferido o tratamento adequado. Ao mesmo tempo em que se ergue a proteção para o paciente, a própria comunidade é alcançada, pois trata-se de uma de medida preventiva de saúde.

Em tal caso, não se pode afirmar que a autonomia da vontade do paciente não deva experimentar limitações. O critério de danos deve vir acompanhado dos custos sociais que irá provocar ação tão abusiva. Inquestionavelmente muitas outras pessoas serão afetadas pelo incauto que transporta o hospedeiro que chega a ser letal. Basta ver que muitas nações estão cerrando suas fronteiras como forma de combate ao coronavírus e outras decretam estado de emergência com a proibição de movimentação da população em seu próprio território, até mesmo com o fechamento dos espaços públicos.

A autonomia da vontade vê-se atrelada aos interesses que possam beneficiar a comunidade. Daí não pode o agente recusar-se a se submeter às medidas obrigatórias de enfrentamento, devendo, no entanto, assinar um termo de consentimento para a prática dos atos previstos no procedimento.

A razoabilidade das medidas reside em proporcionar prioridade de tratamento aos cidadãos suspeitos de infecção para se buscar a eficiência dos cuidados, visando à maximização dos resultados. Percebe-se que há nítida concordância da população com os pressupostos básicos das cautelas apontadas, levando-se em consideração os benefícios coletivos que advirão.

A lei, desta forma, além dos subsídios protetivos, carrega alta dosagem do pensamento bioético, consistente em promover ações concretas visando à promoção e à prevenção da saúde da coletividade. "O balanço entre o bem-estar individual e bem-estar do grupo, afirma categoricamente Stepke, deve ser considerado ao se desenvolver ou modificar qualquer sistema de cuidado de saúde".2

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2 Stepke, Fernando Lolas, José Geraldo de Freitas Drumond. Fundamentos de uma antropologia bioética: o apropriado, o bom e o justo. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2007, p. 73.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp e advogado.

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