Apesar do advento da legislação processual vigente, persistem as dúvidas acerca do destinatário dos honorários advocatícios de sucumbência fixados nos processos judiciais em que se sagrarem vencedoras entidades da Administração Pública. Recorrentes, ainda hoje, os embates doutrinários e judiciais sobre se os honorários de sucumbência fixados em tais causas deverão ser pagos à Administração ou aos seus representantes judiciais.
O tema, como um todo, já gerou muitos debates acadêmicos e judiciais ainda na vigência do CPC/73. A redação do art. 20 da legislação superada previa que a sentença deveria condenar o “vencido a pagar ao vencedor” as despesas antecipadas e os honorários advocatícios, o que permitia a leitura de que era a parte (um dos sujeitos principais da relação processual) que deteria o direito ao reembolso dos gastos com advogado para o patrocínio da sua causa.1
O advento do Estatuto da OAB (lei 8.906/94) trouxe novos ingredientes à discussão da matéria, ao assegurar aos inscritos na OAB o direito ao recebimento dos honorários advocatícios de sucumbência em seus arts. 22 e 23. A partir daí, ganhou força a tese de que as referidas normas revogaram, tacitamente, a disposição que conferia à parte o direito de ser indenizada pelos valores dispendidos com advogado.2
Importante destacar que este entendimento passou a prevalecer exclusivamente no que tange à distribuição dos honorários advocatícios para os representantes judiciais privados. Já para os advogados públicos e representantes das pessoas jurídicas de Direito Público e da Administração Pública em geral, a orientação firmada foi no sentido de que as verbas honorárias pertencem à entidade pública vencedora do processo judicial, afastando-se, portanto, no que toca a matéria, o regime estabelecido pelo Estatuto da OAB.
Algumas razões fundamentaram esta orientação diferenciada para a advocacia pública:
(I) as peculiaridades do vínculo jurídico (chamado estatutário) entre as entidades e os seus representantes judiciais, (II) os princípios regentes da Administração Pública, tais como a moralidade e a indisponibilidade da coisa pública, (III) o preceito contido no então vigente artigo 20 do CPC/73, que atribuía ao vencedor (uma das partes) o direito ao recebimento dos honorários, e (IV) o artigo 4º da lei federal 9.527/97, que exclui as regras do Capítulo V, Título I, do Estatuto da Ordem dos Advogados (lei 8.906/94), do âmbito da Administração Pública direta e indireta em todos os níveis da Federação.
De acordo com estas premissas, a orientação consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça foi no sentido de que "(...) a titularidade dos honorários advocatícios de sucumbência, quando vencedora a Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou as autarquias, as fundações instituídas pelo Poder Público, ou as empresas públicas, ou as sociedades de economia mista, não constitui direito autônomo do procurador judicial, porque integra o patrimônio público da entidade.”.3
A promulgação da atual legislação processual lançou novos ingredientes sobre o tema, trazendo problemas interpretativos aos operadores do sistema e sérias dúvidas aos jurisdicionados, com alto potencial de consequências gravosas ao seu patrimônio.
Se, por um lado, o caput do art. 85 do CPC, além do seu §14, atribui ao advogado da parte vencedora a titularidade dos honorários de sucumbência4, ratificando a previsão contida no Estatuto da OAB, por outro, o §19 do mesmo dispositivo estabelece que os “(...) advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei.”.
Em outros termos, ao que tudo indica, o legislador visou criar uma exceção à regra geral, quando se fala na sucumbência em relação aos advogados públicos, posto que se condiciona o pagamento e o seu modo à regulamentação em lei.
Significa dizer que, no nosso entender, o pagamento ao advogado público não poderá se realizar automaticamente, sem análise prévia da legislação estabelecida pelo ente representado por aquele.5 Naturalmente, em razão dos princípios da legalidade e da moralidade que incidem sobre as atividades da Administração Pública.
Apesar da boa intenção do legislador, a alteração legislativa não cumpriu o papel de pacificação do tema; muito pelo contrário. Na doutrina e nos tribunais, persiste a controvérsia a respeito da titularidade dos honorários de sucumbência nas causas envolvendo a Fazenda Pública e as pessoas jurídicas da Administração Pública, na medida em que a constitucionalidade e o significado normativo do §19 do art. 85 do CPC/15 são pontos de divergência.
No âmbito regional, a posição dominante do Tribunal de Justiça de São Paulo é de que as verbas de sucumbência pertencem, a priori, à Administração Pública (parte), tendo natureza de verba pública, cumprindo ao ente público disciplinar a forma de utilização dos valores recebidos. Nessa esteira, em alguns casos, entende-se que o pagamento, em nenhuma hipótese, poderá ser realizado diretamente ao advogado, ainda que exista legislação local específica.6
Os argumentos, para tanto, permanecem os mesmos já mencionados acima, sustentados durante a vigência do CPC/73, com a adição da alegação de inconstitucionalidade formal e material do §19 do art. 85 do CPC.7
Ainda, não se pode olvidar, na análise do tema, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que os advogados públicos estão vinculados ao teto constitucional. A observação é relevante, tendo em vista que se firmou orientação que os valores dos honorários de sucumbência entram no cálculo de remuneração para submissão ao teto previsto no art. 37, XI, da Constituição Federal.8
Em todo esse contexto de intensos questionamentos dos dispositivos atinentes aos honorários de sucumbência nas causas em que vencedora a Administração Pública, quem sofre, naturalmente, é o jurisdicionado vencido no processo judicial que tem e terá consideráveis dúvidas a quem deve efetuar o pagamento da verba honorária arbitrada em decisão judicial passível de execução.
Com efeito, diante deste cenário de incertezas, o jurisdicionado ficará sujeito, a depender do entendimento do órgão jurisdicional prevento para o caso concreto, à aplicação das severas sanções pecuniárias previstas no artigo 523, §1º, do CPC, caso opte por impugnar a execução, sem a realização do depósito da verba honorária, além, evidentemente, de estar sujeito à invasão compulsória do seu patrimônio.9
Por esta razão, é premente a necessidade de pacificação do tema nos tribunais. Um primeiro passo poderia ser dado pelos tribunais integrantes da chamada Justiça Comum (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais), por meio de utilização das técnicas de julgamento de recursos repetitivos, previstas no atual CPC (art. 928, I). Ainda que seja inequívoco que a última palavra caberá às Cortes Superiores, que, certamente, em algum momento, terão de enfrentar a matéria à luz da Constituição e da legislação processual.
_____________________________________________________________________
1 Cf. Cândido Rangel Dinamarco, a regra tinha como intuito reembolsar o vencedor (parte) tudo que gastou para ter o reconhecimento jurisdicional de sua razão. (Fundamentos do Processo Civil moderno. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 658-659).
2 Esse entendimento foi esposado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal no acórdão da ADI 1194-4/DF.
3 Por todos, ver REsp 1213051/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 14.12.10, DJe 08.02.11.
4 Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. (...)
§ 14. Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial.
5 A lei a que se refere o dispositivo deverá ser emitida pelo ente a quem estiver vinculado o advogado público, ou seja, pela União, estado ou município. Na opinião de Ronaldo Cramer, a lei regulamentadora não poderá retirar a titularidade dos honorários de sucumbência dos advogados públicos (In: BUENO, Cássio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. 1. ed., São Paulo: Saraiva, 2017. v. 1, p. 450).
6 Nessa seara, há decisões que declaram que a sucumbência pertence exclusivamente à Fazenda Pública, cabendo a ela disciplinar a forma de utilização da verba incorporada ao seu patrimônio, vedado o recebimento direto pelo agente público, por necessidade de contabilização dos valores nos cofres públicos (agravo de instrumento 2073753-29.2018.8.26.0000, rel. Djalma Lofrano Filho, 13ª Câmara de Direito Público, j. 10.4.19; agravo de instrumento 2102596-72.2016.8.26.0000, des. Oswaldo Luiz Palu, 9ª Câmara de Direito Público, j. 23.11.16), já outras admitem, em tese ou no caso prático, o pagamento direto aos advogados públicos, desde que haja lei específica disciplinando a matéria no acervo legislativo do ente estatal (agravo de instrumento nº 2163216-45.2019.8.26.0000, des. Oscild de Lima Júnior, 11ª Câmara de Direito Público, j. 11.11.19; agravo interno 2265901- 67.2018.8.26.0000/50001, des. Francisco Bianco, 5ª Câmara de Direito Público, 29.4.19).
7 Além de suporte em parte da doutrina, a constitucionalidade do art. 85, §19, do CPC, é questionada pela Procuradoria Geral da República no âmbito da ADI 6.053/DF do Supremo Tribunal Federal.
8 Cf. RE 629675 AgR, Relator Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 26.02.13.
9 Ainda que o vencido deposite o valor da condenação, caso apresente resistência ao cumprimento de sentença, por meio da arguição de ilegitimidade da parte exequente, poderá estar sujeito à aplicação das sanções processuais. Nesse sentido, ver REsp 1.834.337-SP, Terceira Turma do STJ, j. 3.12.19.
_____________________________________________________________________
*Pedro Augusto de Jesus é advogado em São Paulo. Mestrando em Direito Processual pela USP.