Migalhas de Peso

Uma análise da política econômica e do Sistema de Seguridade Social em um contexto de reforma da Previdência

Respeitar o maior princípio constitucional, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, e viver com dignidade, transmuta-se como um verdadeiro ideal e indicador mais idôneo de uma civilização evoluída.

19/3/2020

A reforma da Previdência foi promulgada em 12/11/19 e desde então tem sido um dos assuntos mais debatidos na imprensa e na sociedade.

Sob o discurso da necessidade urgente de se modificar o sistema previdenciário, para salvaguardar as presentes e futuras gerações, a Emenda Constitucional 103/19 extinguiu a aposentadoria por tempo de contribuição, ao impor uma idade mínima de aposentadoria, que seria de 62 anos para a mulher e 65 anos para o homem. Sob o mesmo argumento, alterou sensivelmente a renda mensal dos benefícios previdenciários, extinguindo-se, ainda, a integralidade de salários quando da acumulação de pensão por morte com outras espécies de benefícios. Institui, ainda, uma idade mínima para a concessão da aposentadoria especial, quando os trabalhadores estão sujeitos a agentes nocivos à saúde e integridade física.

Embora a realidade demográfica brasileira não seja satisfatória no sentido de garantir com fartura por gerações uma cartela de benefícios previdenciários à população, há possibilidades sensatas e responsáveis a serem aplicadas e que vão ao encontro de um crescimento social e econômico, ao mesmo tempo em que atende de forma justa e digna o trabalhador que com esforço, direta ou indiretamente, contribui com a Previdência Social.

Há medidas econômicas que garantem um crescimento do orçamento da Previdência Social, tais como o aumento de contribuintes, por meio do fomento de empregos, progressos de gestão, operação de créditos, combatendo-se, ainda, fraudes.

O sistema previdenciário deve ser modernizado e incrementado conforme a nova realidade econômico-social, todavia, o que se deve combater são de fato os privilégios, pois a reforma atual prejudica, massivamente, a camada mais pobre da população, tendo em vista que a maioria, o que corresponde a 70% dos aposentados do Regime Geral de Previdência Social (INSS) recebe entre um a dois salários-mínimos.

As pessoas que possuem maior carência financeira, quase sempre se aposentam por idade, por passarem boa parte da sua vida profissional, desde a mais tenra idade, na informalidade do mercado de trabalho, o que tende a piorar com a exigência da idade mínima, pois quase sempre não se contratam pessoas, ainda mais com baixa escolaridade, com idades elevadas, acima dos 60 anos de idade.

Segundo dados do IBGE, há cerca de 16 milhões de pessoas acima de 65 anos no Brasil. Todavia, apenas 137,6 mil destas ocupam vagas formais no mercado de trabalho, de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2015, o que representa apenas 0,3% dos 48 milhões de trabalhadores formais.

Não se garante, em tal contexto, o mínimo essencial para garantir a dignidade da pessoa humana, pois uma boa parte da população pode se observar sem emprego e sem aposentadoria, podendo causar, inclusive, impactos na saúde, aumentando-se também os requerimentos de benefícios por incapacidade, que corresponde a, aproximadamente, 20% de todo montante de benefícios previdenciários.

Ainda conforme dados da Organização Mundial de Saúde, trabalhadores em envelhecimento são aqueles que apresentam mais de 45 anos de idade, sendo que a partir dessa idade a capacidade funcional começaria a ser reduzida se ausentes medidas preventivas e condições de trabalho adequadas, que poderiam resultar em saída precoce do mercado de trabalho.

Portanto, se a ideia é se evitar saídas precoces do mercado de trabalho, uma boa medida seria direcionar os investimentos em educação e qualificação do mercado de trabalho, aumenta-se, assim, a capacidade funcional do trabalhador brasileiro.

Ademais, as condições de trabalho devem ser adequadas, a fim de se evitar maiores riscos de natureza física, química, biológica ou organizacional que podem ocasionar no afastamento precoce do mercado de trabalho.

Frisa-se também que em razão da rede de proteção social, os sistemas previdenciários, embora possam trazer influência na política fiscal de um país, não são criados por motivo do impacto que possam ter sobre a economia, já que estes se destinam a oferecer cobertura à população em casos de incontingências e necessidades sociais, a fim de assegurar, de fato, um sistema de proteção social.

O sistema de Seguridade Social, na qual a Previdência Social está inserida, tem por objetivo garantir proteção social na ocorrência de situações de carência, havendo uma responsabilização de todos os indivíduos pelas necessidades vitais básicas de outros, para que todos possam gozar de uma vida digna, a fim de que se realize o bem comum e a justiça social.

Respeitar o maior princípio constitucional, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, e viver com dignidade, transmuta-se como um verdadeiro ideal e indicador mais idôneo de uma civilização evoluída e com sedimentação nos direitos sociais conquistados.

Nesse contexto, instituir uma reforma da previdência com o único intuito de cortar ou suprimir direitos dos trabalhadores ao invés de se ampliar e aperfeiçoar o sistema previdenciário brasileiro é dar um passo atrás nos consolidados princípios da seguridade social.

O sistema previdenciário, albergado nos princípios da Seguridade Social, da qual a previdência faz parte, deve propor um bem-estar social que esteja em harmonia com o tipo de economia, emprego e família que vem se configurando na referida época pela qual a sociedade se encontra atualmente.

É certo que a capacidade das unidades domiciliares e dos mercados de trabalho de proporcionar as garantias básicas de bem-estar social tidas como certas, modificou-se, havendo novos riscos e necessidades, mas a reforma da previdência não visa a corresponder economicamente e dignamente a este novo cenário.

Um Estado eficiente para o futuro precisa ser realinhado, de modo que o mercado de trabalho e a família funcionem em uma perspectiva mais atinente com a realidade apresentada, mas isso não tem sido tão bem observado pela classe política.

Deve haver ainda políticas econômicas desejáveis, tais como: macroeconomia robusta; moderação e flexibilidade de salários; política social fiscal eficiente e propícia ao emprego; flexibilidade no mercado de trabalho, que em conjunto, aumentariam o orçamento da seguridade social; novos métodos de combater a pobreza e a exclusão social.

Quanto ao regime de capitalização, ou seja, de previdência privada, que embora não tenha malgrado êxito no cenário da reforma da previdência, e que pode, gradativamente, ser instituído, esclarece-se a importância, quase que imperiosa, de se manter políticas básicas e indispensáveis a determinadas camadas da população, de grupos homogêneos mais vulneráveis e que estejam atinentes com o regime de previdência atual, que tem a tutela do Estado.

A exemplo de países vizinhos da América Latina, alguns adotaram totalmente o sistema de capitalização, como Chile e México, ou em parte, como Uruguai, Peru, Colômbia e Argentina. 

Enquanto que o sistema previdenciário atual, de repartição, quando os custos dos benefícios previdenciários são repartidos entre todos, não é sensível às condições econômicas, tanto de forma positiva como negativa, pois é mais seguro, mas com rendimento mais baixo, na capitalização há altos custos e anuidades indexadas de acordo com o produto do mercado financeiro e não com a inflação e crescimento salarial. 

Caso a capitalização seja adotada, o que é uma grande tendência, trato que é necessário conciliar uma combinação entre aposentadoria básica financiada por uma repartição simples e a aposentadoria profissional financiada por capitalização referente à renda, com maior grau de diversificação, havendo mais facilidade na redistribuição dos valores arrecadados, vez que o caro recurso dignidade da pessoa humana não pode ser indexado a variáveis taxas de administração de fundos de pensão e que as mudanças estruturais nos regimes previdenciários no cenário mundial devem estar embasadas em uma conjuntura política econômica que esteja umbilicalmente relacionada com o sistema de Seguridade Social.

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*Carla Benedetti é jornalista, advogada e mestre em Direito Previdenciário.

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