Com as transformações socioeconômicas pelas quais atravessaram as democracias ocidentais em tempos últimos, passou-se a idealizar a edição de normas que, em função das novas necessidades, recobrissem a ordem econômica com sua proteção. Isso porque os efeitos difusos produzidos pela prática de crimes nas relações comerciais, empresariais e financeiras, grosso modo, passaram a transcender a esfera de bens jurídicos de pessoas determinadas, atingindo uma coletividade indeterminada. Tal juízo de valor fora recebido pelo legislador, que optou por tipificar condutas que ofendam o regular funcionamento da ordem econômica, trazendo consigo algumas peculiaridades, descortinando, para começo, a substancial diferença entre os tipos penais econômicos e os tradicionais.
Em se tratando de crimes econômicos, não raramente, é dispensável o uso de violência, bastando que o criminoso se valha de fraude ou violação da relação de confiança para praticar um ilícito penal. Havendo a prática, como consequência, há a ofensa de bens jurídicos de natureza supra-individual, repousando aqui outra diferença, uma vez que um grupo indeterminado de pessoas, diretamente relacionadas à ordem econômica do país, são afetadas.
Contudo, a distinção mais forte repousa na complexidade do modus operandi e na figura do sujeito ativo, detentor, em geral, de boa condição financeira e de certo prestígio perante a sociedade, o que pode dificultar a persecução penal e tangenciar a ocultação de um crime por muito mais tempo. (BOTTINO, 2013).
Não por outro motivo, os antigos instrumentos utilizados pelo Direito tradicional, para viabilizar a persecução penal, são readaptados, de modo a garantir a aplicação da ordem jurídica e o cumprimento das funções da pena, segundo o discurso oficial, no Direito Penal. Nesse sentido, as medidas cautelares – sequestro, hipoteca legal e arresto – acabam se mostrando importantes instrumentos para garantir o cumprimento das penas e a devolução dos recursos obtidos ilicitamente aos donos de direito, diante de um eventual cenário de possível dilapidação de bens.
Nesta linha de pensamento, Pierpaolo Bottini (2019) dispõe que a constrição de bens, além de assegurar a perda de bens e a reparação do dano em caso de condenação, é uma estratégia eficaz no combate aos crimes de lavagem de dinheiro, pois, ao se identificar os recursos ilícitos e bloquear os bens, a entidade delitiva, por ter esvaziado o seu patrimônio material, morrerá de inanição, sem dinheiro para pagar seus membros ou cooptados, sendo, também, frequente a ocorrência de constrição de bens de pessoas jurídicas para apuração de eventuais crimes praticados por seus diretores.
Deste modo, ante sua importância para a garantia de uma prestação jurisdicional eficaz, passaremos a analisar os principais aspectos das medidas assecuratórias para garantir a reparação dos danos e o pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes do ilícito penal, no que tange à lavagem de capitais.
Pois bem, previstos no Código de Processo Civil, o arresto e o sequestro, medidas cautelares de natureza real, também encontram previsão no Código de Processo Penal e na lei 9.613/98, a chamada Lei de Lavagem de Capitais, como se extrai da leitura dos seguintes dispositivos:
Art. 4º O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas que sejam instrumento, produto ou proveitos dos crimes previsto nesta Lei ou das infrações penais antecedentes.
[...] § 2º O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal.
Por isso, antes de adentrada a problemática que permeia a razão de ser deste texto, passar-se-á a análise dos citados institutos.
O caput do art. 4º faz menção à medida cautelar similar ao sequestro, embora prevendo a possibilidade de bloqueio de instrumentos e produtos de crimes, ao contrário do referido instituto, que somente incide sobre os proventos da infração, (JÚNIOR, 2019).
Deste modo, uma análise criteriosa levaria o intérprete a concluir que, quando forem os instrumentos e produtos de crimes objetos de constrição, estes serão alvos de uma busca e apreensão e não do sequestro propriamente dito. De todo modo, dito isso, Accioly (2013) assevera que o objetivo do sequestro é “[...] reparar o dano provocado pelo crime e impedir que o indiciado usufrua dos proventos do delito cometido”.
Nesse sentido, Câmara; Leardini (2011) pontuam que, nesse caso, apenas os bens ilícitos dos acusados que fazem parte do inquérito policial ou do processo penal em que se requereu a medida cautelar podem ser sequestrados, ficando excluídos destes os demais bens ilícitos frutos de crimes diversos.
Comparado com o Código de Processo Penal, a lei 9.613/98 trouxe um grau probatório menor para a decretação do sequestro, bastando que haja indícios suficientes da infração penal, isto é, mera probabilidade, ao contrário daquele diploma, que exige probabilidade elevada. (ACCIOLY, 2013).
Já o arresto, outra medida cautelar, é tratado nos § 2º e § 4º da lei 9.613/98. Neste caso, a constrição de bens lícitos do acusado tem o fito de assegurar o pagamento de prestação pecuniária, multa e despesa processual advinda de sentença condenatória ao final do processo. Accioly (2013) aborda, com maestria, uma peculiaridade do instituto: a impossibilidade de que a constrição recaia sobre o patrimônio de terceiros.
Passando a análise dos limites no bloqueio de bens de pessoa jurídica, se são as medidas cautelares instrumentos necessários para a garantia da efetiva aplicação do Direito Penal, a observância de seus requisitos legais e do sistema de garantias proposto pela Constituição Federal de 1988 demonstra-se imprescindível para que não seja desrespeitada a estrutura dogmático-principiológica do sistema jurídico-penal.
Assim sendo, a aplicação de medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores de interpostas pessoas não pode estar em desarmonia com os princípios da pessoalidade da responsabilidade penal, da legalidade e do devido processo legal. Não por outro motivo, os institutos do caput e dos § 2º e 4º do art. 4º da lei 9.613/98 precisam ser interpretados cautelosamente, com o devido respeito semântico, sendo vedadas interpretações extensivas decorrentes de confusões conceituais, que, em muitos momentos, são reflexos de uma dificuldade de se delimitar, com clareza, a distinção da responsabilidade penal daquele que decide em nome da pessoa jurídica e da própria pessoa jurídica, resultante de uma compreensão na qual não se dissocia a personalidade de ambos.
Pois bem, ao prever a constrição de bens do acusado ou existentes em nome de interpostas pessoas, o caput do artigo 4º da lei 9.613/98 legitimaria, em tese, o bloqueio de bens de pessoas jurídicas, ao facultar ao juiz o decreto de medidas assecuratórias de bens direitos ou valores, de interpostas pessoas, desde que sejam instrumento, produto ou proveito do crime; isto é, desde que possuam origem lícita, em medida similar ao sequestro.
Contudo, é importante ressaltar que a constrição de bens a que se refere o parágrafo anterior é diferente da prevista no § 2º da mesma lei, que trata dos bens lícitos. Por este motivo, se comprovada a licitude dos bens constritos – o que pode ser discutido em sede de embargos de terceiros –, o juiz deverá determinar a liberação total ou parcial dos bens, mantendo-se, porém, bloqueados os direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes de infração penal, em medida similar ao arresto, utilizados futuramente em decorrência de uma sentença condenatória. (BOTTINI, 2019).
Dito isso, porém, uma leitura apressada de tais dispositivos poderia levar o intérprete a concluir que i) é admitido o bloqueio de bens ilícitos de pessoas jurídicas, tidas como interpostas pessoas; ii) e que também é admitida a discussão da licitude desses bens em sede de embargos de terceiros; iii) podendo, caso comprovado a licitude, serem esses mesmos bens desbloqueados; iv) mantendo-se, contudo, do patrimônio bloqueado da empresa – inicialmente tido como ilícito –, o necessário – dos bens agora comprovadamente lícitos – para garantir a reparação dos danos e o cumprimento da sentença condenatória.
Por este motivo, a interpretação de tais dispositivos exige certa reflexão e cautela, pois, na hipótese do § 2º, por atingir a medida cautelar bens de origem lícita, ao se aderir à essa linha de pensamento, passar-se-ia a admitir a possibilidade da constrição recair sobre bens lícitos de terceiros para garantir os efeitos de uma sentença, respondendo este com o seu patrimônio.
Contudo, a proposição jurídica segundo a qual não se admite a constrição de bens lícitos da pessoa jurídica em observância ao princípio da responsabilidade pessoal da pessoa jurídica (RMS 23189), permite que se conclua que o bloqueio de bens lícitos não pode atingir pessoas jurídicas estranhas à relação processual, quando o acusado for o controlador, executivo ou gestor, posto não poderem ser as empresas compelidas a garantir o cumprimento de uma sentença a elas não impostas, vez que limitadas às partes no processo penal; em processo do qual não foram partes, nem exerceram o contraditório e, por óbvio, não cometeram crime. (BOTTINI, 2019).
Assim, em outras palavras, interpretados tais artigos em conformidade com um direito íntegro e coerente, como aduzia Dworkin, ficaria vedada a constrição de bens lícitos da pessoa jurídica por meio do arresto – salvo nos crimes ambientais na qual seja ré –, visto que, além de violar o princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, se chocaria com o que prevê o § 2º da lei 9.613/98, que não traz, na hipótese de bloqueio de bens e valores lícitos, a menção à incidência de bens ou valores de pessoas interpostas, mas tão somente aos do próprio agente, único que poderá ter bens líticos afetados para garantir a reparação dos danos e ao pagamento de multas.
Por outro lado, em se tratando do sequestro, sendo a empresa utilizada para garantir o cometimento do ilícito penal, não há que se falar na ocorrência do fenômeno acima descrito, vez que terceiros podem sim ser obrigados a devolver bens de origem ilícita, mesmo não sendo parte no processo, posto não poderem se beneficiar com a própria torpeza ou se enriquecerem sem justa causa. (BOTTINI, 2019).
Nessa esteira, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nas Apelações Criminais 0001164-04, 0900289-91 e 0001059-27, v.g., já admitiu o sequestro de bens da pessoa jurídica, desde que a empresa tenha sido utilizada como instrumento para a prática dos crimes, não havendo que se falar, neste caso, em ofensa ao princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, porém limitando o bloqueio das contas bancárias em 15%, de modo a evitar a bancarrota da empresa.
Outro julgado importante é o RMS 23189 (BRASIL, 2009), interposto junto ao Superior Tribunal de Justiça, que discutiu a legalidade acerca do sequestro e arresto de bens da empresa dos acusados de cometerem os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Argumentou a defesa acerca da impossibilidade de constrição de bens da pessoa jurídica sob pena de ofensa ao princípio da pessoalidade da responsabilidade penal. Isso porque, em suma, não poderia uma terceira pessoa ter seus bens constritos se não comprovada sua ilicitude. Se assim fosse, razão assistiria à parte, pois tratar-se-ia de arresto de bens de interpostas pessoas, o que seria vedado, conforme abordado pelo presente resumo. Contudo, por ter a empresa a administração dos bens dos acusados como objeto social, seu patrimônio acaba, dado o cunho familiar, por se confundir com o patrimônio dos denunciados, pessoas as quais se imputava a prática dos crimes descritos. Assim sendo, entendeu o STJ que i) por ter a empresa cunho familiar, sendo seu patrimônio de titularidade dos acusados, ii) o arresto, medida cautelar consistente no bloqueio de bens lícitos para garantir a reparação do dano e os efeitos da condenação, não fora ilegal, iii) dado que não havia ultrapassado o patrimônio dos envolvidos, negando o provimento ao recurso.
Assim, para concluir, se são as medidas cautelares instrumentos necessários para a garantia da efetiva aplicação do Direito Penal, a observância de seus requisitos legais demonstra-se imprescindível, sob pena de ofensa à estrutura dogmático-principiológica do sistema jurídico-penal. Sendo assim, a leitura que se faz dos institutos previstos no art. 4º da lei 9.613/98 deve ser acompanhada de cautela, de modo a se evitar uma confusão conceitual entre os institutos do sequestro e arresto, principalmente no que tange à origem dos bens, os impactos na esfera patrimonial de terceiros e suas consequências jurídicas.
Por este motivo, a estrutura penal e processual penal deve ser observada, sendo o princípio da pessoalidade da responsabilidade penal o balizador necessário para a obtenção de uma sentença que seja proferida em conformidade com o paradigma democrático adotado pela Constituição Federal de 1988. Nessa linha, empresas, em virtude de condutas ilícitas praticadas por seus sócios controladores, não podem sofrer com efeitos penais que não serão a elas impostas, garantindo o cumprimento da pena com seu patrimônio lícito, porque limitados somente às partes no processo penal, sem prejuízo de devolução do valor obtido ilicitamente, quando interposta pessoa.
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ACCIOLY, Maria Francisca dos Santos. As medidas cautelares patrimoniais na lei de lavagem de dinheiro. 2013. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 19 ago. 2019.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz Bottini. O bloqueio de bens de empresa em crimes de lavagem de dinheiro. 2019. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 24 ago. 2019.
BOTTINO, Thiago. Regulação econômica e direito penal econômico: eficácia e desencontro no crime de evasão de divisas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2013. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 27 ago. 2019
BRASIL. Lei n° 9.613 de 3 de março de 1998. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 20 ago. 2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processo: RMS 23189 PR 2006/0255160-7. Relator: Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG). Brasília, 06 fev. 2009. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 20 ago. 2019.
CÂMARA, Luiz Antônio; LEARDINI, Márcia. Breves considerações sobre o sequestro no processo penal no processo penal brasileiro. 2011. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 20 ago. 2019.
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*Gean Saturnino dos Santos é bacharelando em Direito pela PUC Minas. Membro-Diretor da Liga Acadêmica Jurídica de Minas Gerais. Estagiário Jurídico na Marcelo Tostes Advogados.
*Renato Patrício Teixeira é pós-doutor em Direito Processual pela Università degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde leciona disciplinas afetas ao Direito Penal e Processual Penal. Delegado da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, aposentado.
*Samuel Justino de Moraes é bacharelando em Direito pela PUC Minas. Membro-Diretor da Liga Acadêmica Jurídica de Minas Gerais. Pesquisador pelo PICV. Integrante do Observatório da LR. Monitor Acadêmico. Estagiário Jurídico no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.