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A lei de direitos autorais e o PL 2.370/19: o que muda?

Dada a relevância do tema e a necessidade de compatibilizá-lo com outros direitos garantidos constitucionalmente, é oportuno o debate de atualização da lei de direitos autorais vigente, suscitado pelo projeto de lei 2.370/19, de autoria da dep. Jandira Feghali, em tramitação na Câmara dos Deputados.

12/3/2020

Seja para ver um filme no Netflix ou para ouvir uma música no Spotify, os direitos autorais estão presentes no nosso dia a dia, mesmo que não tenhamos consciência disso. A proteção à chamada propriedade intelectual torna possível que criadores consigam usufruir pessoalmente e economicamente das suas criações, ao mesmo tempo em que cria um ambiente de fomento e de incentivo para que os destinatários desfrutem das obras criadas.

A proteção à propriedade intelectual, em geral, e aos direitos autorais, em especial, é amplamente reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro.  Tanto que se configura como cláusula pétrea, ou seja, está inserida no rol de dispositivos que só podem ser alterados caso haja uma nova Constituição. O art. 5°, inciso XXVII, da Constituição Federal (CF) assegura ao autor o exercício exclusivo de utilização de suas criações, ao passo que as alíneas a) e b) do inciso XXVIII da CF garantem, respectivamente, a proteção das contribuições individuais em obras coletivas e o direito à fiscalização do proveito econômico das obras aos artistas, intérpretes e associações.

Dada a relevância do tema e a necessidade de compatibilizá-lo com outros direitos garantidos constitucionalmente (tais como o da liberdade de expressão, o do acesso à cultura e à educação, o da função social da propriedade, etc.), é oportuno o debate de atualização da lei de direitos autorais vigente (lei 9.610/98), suscitado pelo projeto de lei  2.370/19, de autoria da dep. Jandira Feghali, em tramitação na Câmara dos Deputados.

A lei 9.610/98, tendo sido gestada no final dos anos 1990, nasceu em um ambiente em que a internet ainda era incipiente, o CD reinava absoluto e as pessoas alugavam filmes em videolocadoras. De lá para cá, muita coisa mudou: a internet se faz cada dia mais presente, a circulação de informação e de bens, inclusive imateriais, tomou proporções inimagináveis e tecnologias como o streaming e o acesso em nuvem intangibilizaram o consumo de áudio e de vídeo.

Segundo a autora demonstra na exposição de motivos do referido PL, os objetivos pretendidos por este se dividem em três eixos:

a)    correção de erros conceituais e da técnica legislativa de alguns dispositivos, fonte de incertezas quanto a sua interpretação jurídica;

b)  inclusão de novos dispositivos em temas nos quais a lei é omissa (como as obras sob vínculo empregatício e o tratamento dado às obras órfãs) ou que estão abordados de forma insuficiente ou desequilibrada (como as transferências de direitos e as limitações);

c)  concretização da técnica legislativa contemporânea consagrada na Constituição, nas leis especiais que dela derivaram e no Código Civil, com recurso a princípios, cláusulas gerais e normas mais abertas e narrativas, harmonizando-se o direito autoral com o restante do ordenamento jurídico brasileiro e prevenindo seu anacronismo precoce. (BRASIL, 2019, págs. 41-42)

No que tange à correção de erros terminológicos e conceituais, vale ressaltar a inclusão dos conceitos de cessão e de licença no rol de conceitos utilizados ao longo do diploma legal, presente no artigo 5° da lei de direitos autorais vigente. Tanto a cessão (transferência total ou parcial dos direitos patrimoniais de autor) quanto a licença (autorização de uso por tempo determinado, sem que se transfira a titularidade de tais direitos), são instrumentos fundamentais no manejo econômico-contratual dos direitos autorais, o que torna essa positivação conceitual um elemento em busca de clareza e de segurança jurídica para futuros negócios firmados nesse campo. Além disso, o artigo 52-A do referido PL estabelece o regramento do contrato de licenciamento, a exemplo do que ocorre com o contrato de cessão (arts. 49 a 51, lei 9.610/98).

No campo dos direitos morais, os quais são os direitos relativos à personalidade do autor e à sua relação com a obra criada, o PL traz modificações interessantes. A primeira delas é o alargamento da coautoria para obras audiovisuais. Além do diretor e do autor do argumento ou assunto literário, musical ou literomusical, como prevê o art. 16, caput, da lei de direitos autorais vigente, seria coautor também o roteirista. Além disso, os assuntos ou argumentos supracitados estariam condicionados a terem sido criados especialmente para a obra audiovisual para terem a coautoria reconhecida.  Embora, num primeiro momento, possa parecer uma restrição desmedida, trata-se de uma confirmação das especificidades da obra audiovisual, a qual requer um processo de criação e de elaboração diferente dos demais tipos de obra intelectual.

A segunda mudança relevante é a possibilidade de os herdeiros de autor falecido poderem ter acesso a exemplar raro de obra, para que a conservem e permitam a sua perpetuação, sem prejuízo da indenização por possíveis danos causados ao proprietário original da mesma (Art. 24, inciso VII e § 1°, PL 2.370/19).

Por fim, a terceira mudança relevante em relação aos direitos morais é a necessidade de inclusão do nome dos autores, artistas intérpretes e executantes das obras musicais ou literomusicais incorporadas à cada cópia de obra audiovisual (art. 81, inciso VIII, PL 2.370/19).

No que diz respeito aos direitos patrimoniais, o PL 2.370/19 introduz as seguintes modificações: a inclusão do streaming como uma das modalidades de uso condicionadas à autorização do autor (artigo 29, inciso VIII, alínea d) e o prazo de 70 anos, a partir de 1° de janeiro do ano seguinte ao da publicação, para o exercício dos direitos patrimoniais em relação às obras coletivas (artigo 44).

Outro ponto interessante é o alargamento das limitações ao direito de autor, os quais se encontram presentes no artigo 46 da lei de direitos autorais vigente. O PL em análise pretende incluir, dentre outros, o uso por pessoas com deficiência por todos os meios disponíveis, desde que sem intuito de lucro; o uso em divulgação de portifólio ou currículo profissional, na medida necessária para tal fim; o uso gratuito para fins de reabilitação ou terapia em unidades hospitalares; e o uso de obras musicais em rituais litúrgicos praticados unicamente dentro de templos religiosos (artigo 46, incisos IX, X, XV e XVII).

Esse alargamento das limitações ao direito de autor visa compatibilizar a proteção autoral com outros direitos constitucionalmente previstos, como o acesso à saúde e o exercício da liberdade religiosa, por exemplo. Dessa forma, os incisos supracitados implementam de forma satisfatória a integração pretendida pela autora do PL 2.370/19 com as demais normas do ordenamento jurídico pátrio, o que concorre para um sistema legal mais coeso, coerente e interligado.

Uma das mais importantes mudanças pretendidas pelo referido PL é a regulamentação do regime patrimonial das obras criadas durante o vínculo empregatício. Segundo o projeto, tais obras seriam de titularidade do empregador, que poderia usá-las por um prazo de 10 (dez) anos a partir da primeira publicação. Além disso, há a previsão de que, salvo convenção em contrário, a remuneração devida ao empregado esgota os valores devidos a este pela criação da obra. Por fim, estabelece que o empregado pode incluir a obra criada no vínculo laboral na sua relação de obras completas após 2 (dois) anos da primeira utilização pelo empregador (artigo 52-D, caput e §§ 1°, 3° e 4°).

Tal regulamentação visa sanar a lacuna existente na lei atual, a qual deixa a cargo da jurisprudência a decisão dos conflitos nesse assunto, o que, nem sempre, é o melhor caminho em busca da previsibilidade jurídica almejada, embora se reconheça o papel relevantíssimo dos tribunais na construção interpretativa das leis.

Outro ponto importante trazido pelo PL, em conformidade com a expansão da tecnologia, é um melhor regramento do uso de obras intelectuais no ambiente digital. Em primeiro lugar, inclui-se explicitamente a internet como local de frequência coletiva, o que leva ao pagamento de direitos autorais por execução pública. Além disso, substitui-se o rol extenso de locais considerados de frequência coletiva presentes no § 3° do artigo 68 da lei vigente por cláusulas mais amplas e abertas, considerando comunicação ao público o uso realizado mediante qualquer processo (art. 68, § 1°, incisos I a III, PL 2.370/19).

Além disso, a proposta prevê a possibilidade de o autor que teve sua obra utilizada sem autorização em ambiente digital proceder à sua retirada ou pleitear uma remuneração do provedor de internet que permitiu o uso não autorizado, por meio de um sistema de notificação e contra notificação, detalhado nos artigos 88-A a 88-C da mesma.

Por fim, outros dispositivos dignos de menção no PL são: a criação de um escritório central arrecadador específico para o setor audiovisual, fiscalizado pela ANCINE e responsável pela arrecadação e distribuição de valores devidos pela exibição desse tipo de obra, sendo um “ECAD do audiovisual” (artigos 85-A e 99-C); a caracterização da manipulação artificial do número de utilizações, o chamado “jabá”, como ilícito civil (artigo 110-E); o estabelecimento da prescrição da ação contra violação de direitos autorais em 5 (cinco) anos,  contada a partir da data da prática da violação (artigo 111 A); e o estabelecimento do foro competente para a propositura de tal ação como sendo o do domicílio do autor da obra violada, do artista ou intérprete executante  ou de seus herdeiros (artigo 111-B).

Em um mundo altamente globalizado, em que as formas de comunicação e de consumo de bens culturais se modificam com alta rapidez, as propostas trazidas pelo PL 2.370/19 buscam atualizar a lei de direitos autorais em relação à compatibilidade da proteção aos autores com o acesso à cultura e à educação, bem como sanar lacunas teóricas, processuais e práticas quanto aos mecanismos de proteção dos titulares de direitos autorais, e, ainda, trazer dispositivos de regramento quanto ao uso de obras intelectuais no ambiente digital e na relação empregatícia. Dessa forma, tornam-se imperiosas a análise e a aprovação do referido projeto pelo Parlamento brasileiro, a fim de que o país tenha para si e para seus cidadãos um instrumento de proteção à atividade cultural e de fomento à criatividade e ao desenvolvimento intelectual do nosso povo.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 05.03.20.

BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20.02.98. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 05.03.20.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 2.370/2019. Altera os arts. 1º, 2º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 15,16, 17, 19, 20, 24, 25, 28, 29, 30, 36, 37, 38, 39, 41, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 53, 68, 77, 78, 79, 81, 86, 90, 95, 96, 97, 100-B, 101, 102, 103, 107, 108 e 109 e acrescenta os arts. 30-A, 52-A, 52-B, 52-C, 52-D, 52-E, 61-A, 67-A, 85-A, 88-A, 88-B, 88-C, 99-C, 99-D, 110-A, 110-B, 110-C, 110-D, 110-E, 110-F, 110-G, 110-H, 110-I, 110-J, 110-K, 110-L, 111-A, 111-B, 113-A e 113-B na lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 05.03.20. Texto Original.

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*Guilherme Reis é graduando de Direito na Universidade de Brasília - UnB. Foi monitor da disciplina de Direito Industrial na referida instituição de ensino.


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