Migalhas de Peso

O problema da guarda compartilhada de animais

A legislação civil cuida do animal como um bem indiviso, e permite aos compossuidores o exercício dos atos possessórios, garantindo a igualdade de direitos entre eles.

6/3/2020

O ativismo judicial nasceu no direito americano, ramo do sistema jurídico anglo-saxão ou common law, relacionando-se à atuação da Suprema Corte quando da presidência de Earl Warren, entre os anos de 1954 e 1969. O ativismo judicial está ligado a uma atuação mais ampla da função judiciária na consubstanciação dos fins e valores constitucionais, tendo uma ação decisiva na esfera de atuação das demais funções do Poder, quais sejam, executiva e legislativa. Desse modo, desempenha um papel criador por parte do Judiciário, trazendo uma significativa contribuição para o desenvolvimento do direito, decidindo a partir da análise do caso concreto, e formando precedentes que se antecipam, muitas das vezes, à produção legislativa.

É desse conceito que entendemos o ativismo judicial como uma postura, um modo de agir escolhido pelos magistrados na busca de uma hermenêutica jurídica expansionista, tendo como finalidade a concretização dos valores normativo-constitucionais, visando garantir os direitos da pessoa de modo mais célere, e atendendo às especificações do caso concreto e suprindo as necessidades advindas da omissão ou morosidade legislativa e, até mesmo, executiva. No Brasil, a partir da promulgação da Carta Magna de 1988 e de sua fundamentação programática e principiológica, o ativismo jurídico começa a tomar corpo.

O ativismo judicial é realista, com dimensão política, pois separa a atuação mais distribuidora da justiça, da manutenção e garantia da ordem e paz social. Assim, a figura do juiz distribuidor de justiça se revela, principalmente, quando o direito é negligenciado pela lei, e o magistrado cria no ordenamento, utilizando-se das diversas técnicas hermenêuticas. A finalidade, em tese, não é outra senão a de tornar realidade os objetivos delineados pela Constituição Federal.

O sistema processual contemporâneo está permitindo uma atuação mais ativa dos julgadores, estabelecendo que ao magistrado não cabe mais a mera missão de ser uma mera boca da lei, ponderando valores e princípios compreendidos nas causas sujeitas a seu crivo e isso implica uma atitude menos inertes nas conduções dos processos. A questão é que o ativismo no Brasil não se assenta numa tradição judicativa sólida, ou numa ratio hermenêutica (ratio iuris), entregando o julgado ao decisionismo e ao casuísmo.

Exemplo disso é a solução dada para a convivência entre ex-casais com seus animais de domésticos. As cortes jurisdicionais do país posicionam-se acerca da guarda compartilhada de animais não humanos domesticáveis. O Superior Tribunal de Justiça, por meio do julgamento do RESP 1.713.167/SP, reconheceu a possibilidade da concessão de guarda compartilhada à animais, sob o argumento de que “os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimo de seus donos, totalmente diversos de qualquer outro de propriedade privada”. O STJ ainda acrescentou que a legislação brasileira relativa aos bens não vem se mostrando capaz para resolver satisfatoriamente as contendas familiares envolvendo pets, em razão de não se tratar de discussão envolvendo mera posse e/ou prioridade.

Ante de uma crítica mais aprofundada, necessário, primeiramente, entendermos o que é o instituto da guarda compartilhada. Sabe-se que a guarda é um atributo do poder familiar. Nesse sentido, o fim do relacionamento amoroso dos genitores não pode ser um fator que comprometa a continuidades dos vínculos parentais, porquanto o exercício daquele poder em nada tem a ver com o fato separação.

Ora, como o exercício do poder familiar pode desembocar na figura de um dono? Não se pressupõe a existência de um vínculo pessoal entre todos os envolvidos? Vale destacar que quando da análise da guarda, o que se leva em consideração é o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio esse retirado da própria dignidade humana. Trata-se de guarda co-responsável, com a finalidade de consagração dos direitos das crianças e dos adolescentes, pondo freio na irresponsabilidade parental e incentivando as atividades habituais de afeto e cuidado dos pais para com os filhos.

Sendo assim, diferentemente do que acontece com os animais não humanos, a guarda de uma criança não pode ser oriunda exclusivamente da vontade de seus pais, porque se leva em consideração, com prioridade, o bem estar da prole, devendo esse atender aos superiores interesses do menor (ECA, art. 129, III).

Diante dessa breve análise, observa-se que a guarda compartilhada é um instituto do direito civil (especificamente direito de família) criado em prol do bem estar e superior interesse da criança e do adolescente, ou seja, uma pessoal natural e, consequentemente detentora de personalidade jurídica. Personalidade jurídica é a máscara que potencializa o exercício decisório do homem, portador de vontade, condição para a titularidade de direitos, garantindo isonomia e deveres no contexto fático-jurídico.

Quando o STJ afirma que “os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente – dotados de sensibilidade, sentido as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem estar considerado” não estaria se antecipando ao legislador e concedendo, em certa medida, personalidade jurídica aos animais inumanos?

Nesses casos, necessária a análise e interpretação integradas do ordenamento jurídico. Por mais que seja criticável que a natureza jurídica dos animais seja equiparada a das coisas, sendo tratados como objetos destinados a circulação de riquezas (CC, art. 445, § 2º), servindo para garantir dívidas (CC, art. 1444) ou, até mesmo, para estabelecer responsabilidade (CC, art. 936), não é função do judiciário se antecipar a tais questões, na medida em que a composse regulamenta tranquilamente a celeuma relativa à partilha da guarda dos animas domésticos.

Considerando a tradição jurídica romano-germânica, os animais domésticos são tratados como propriedade, bens semoventes infungíveis e indivisíveis, com certa intangibilidade. No direito romano, o animal doméstico era tratado como um bem sujeito a afinidade ou afeição. Neste sentido, deve-se reconhecer o condomínio deste animal e em nome da convivência, regular o regime de composse. A composse se verifica quando duas ou mais pessoas exercem, ao mesmo tempo, poderes possessórios sobre a mesma coisa. O art. 1999 do Código Civil revela que “duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contando que não excluam os dos outros compossuidores.

A composse também admite a espécie pro indiviso e a simples. Aquela permite que todos os compossuidores exercerem, ao mesmo tempo e sobre a totalidade da coisa, os poderes de fato. Já a composse simples é aquela que casa um dos compossuidores pode exercer por si só poder de fato sobre o bem, sem que haja prejuízo dessa prerrogativa pelos demais compossuidores.

Logo, não há a necessidade de se aplicar teratologicamente a guarda compartilhada para animais, pois existem institutos próprios que propiciam os mesmos efeitos perseguidos.

Acrescenta-se que a matéria referente à guarda compartilhada de animais de companhia ainda não foi decidida pelo Congresso Nacional, dado que se trata de uma legítima opção do legislador. A legislação civil cuida do animal como um bem indiviso, e permite aos compossuidores o exercício dos atos possessórios, garantindo a igualdade de direitos entre eles.

Em suma, sob a ótica argumentativa aqui trazida, observa-se a desnecessidade de a função judiciária avançar irrestritamente em uma temática que não se encontra em completa lacuna, como vemos nas decisões que vem sendo prolatadas nas cortes do país. Como vimos, a guarda, regulamentada na parte do direito de família, é instituto destinado à promoção do bem estar da criança e do adolescente, quer dizer, um ente dotado de personalidade jurídica.

Em outras palavras, a guarda e a respectiva regulamentação de visitas são institutos civis aptos a garantir a efetividade de um importante direito fundamental, qual seja, a dignidade da pessoa natural. Já a composse, instituto muito similar a guarda, serve para garantir aos compossuidores a igualdade no exercício dos direitos sobre a coisa.

Conclui-se, portanto, que o ativismo judicial é uma ferramenta deveras importante, mas que deve ser utilizada com ponderação pelos juízes e tribunais, evitando-se a criação de normas que ainda não estão aptas a dar uma efetiva resposta a problemática sub judice.

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*Danilo Porfírio de Castro Vieira é doutor em Ciências Sociais pela UNESP/FCLAR; Mestre em Direito pela UNESP; Membro da ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões e advogado em Direito de Família, professor de direito pelo IDP.

*Kelly Araújo Batista de Carvalho é advogada em Direito de Família, graduada e pos-graduanda pelo IDP.

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