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O “novo” acordo de não persecução penal

Com a promulgação da lei 13.964/19, não subsistem mais dúvidas, o acordo de não persecução penal passa a integrar efetivamente o ordenamento jurídico brasileiro, mitigando o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e ampliando sobremaneira as hipóteses em que o investigado - antes do oferecimento da denúncia - pode celebrar acordo com o Ministério Público.

4/3/2020

Entrou em vigor, recentemente, a lei 13.964/19 - denominada popularmente de “Pacote anticrime”. Vista como uma das ações prioritárias do Governo Federal na área de segurança pública, a lei sancionada introduz modificações significativas na legislação penal e processual penal, perpassando por institutos como legítima defesa, juiz de garantias, cadeia de custódia, acordo de não persecução penal e colaboração premiada.

Especificamente em relação ao acordo de não persecução penal, a nova lei concretizou um antigo intento do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP: introduzir no sistema criminal brasileiro a figura do acordo despenalizador, que consiste em ajuste passível de ser celebrado entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu advogado, e que, uma vez cumprido, acarretará a extinção da punibilidade.

Importa dizer, nesse contexto, que a tentativa anterior de regulamentação da matéria deu-se por meio da resolução 181/17 do CNMP. Contudo, a simples existência de tal normatização despertava intensos debates doutrinários, especialmente pelo possível vício  de inconstitucionalidade formal que a inquinava, tendo em vista a veiculação de matéria reservada à lei federal por meio de resolução administrativa.

Com a promulgação da lei 13.964/19, porém, não subsistem mais dúvidas, o acordo de não persecução penal passa a integrar efetivamente o ordenamento jurídico brasileiro, mitigando o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e ampliando sobremaneira as hipóteses em que o investigado - antes do oferecimento da denúncia - pode celebrar acordo com o Ministério Público.

Apesar de, no âmbito criminal, a cultura jurídica do consenso ainda se mostrar incipiente, a expansão dos mecanismos alternativos de solução de conflitos indica, sobretudo, o fortalecimento da justiça penal negocial no Brasil, que promete – ao menos em tese – desafogar o judiciário e aprimorar o sistema punitivo brasileiro. Em suma, pretende-se a quebra da dualidade da função da pena, incluindo a reparação do dano como uma nova possibilidade.

Essa nova realidade, por óbvio, tende a impactar diretamente na atuação do advogado criminalista, que, de perfil historicamente mais combativo, terá que revisitar institutos típicos do direito processual civil – como o negócio jurídico processual – para se adequar à utilização de técnicas de negociação no âmbito criminal e analisar de forma estratégica a viabilidade de obstar a persecução penal prematuramente.

Pois bem, com a inclusão do art. 28-A no Código de Processo Penal, o acordo de não persecução penal (ANPP) ganhou novos contornos. Em termos literais, não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal.

À primeira vista, nota-se que a premissa básica sobre a qual se fundamenta o acordo é a inviabilidade do arquivamento da investigação, isto é, devem existir indícios mínimos de autoria e materialidade aptos a ensejar ação penal, bem como estarem ausentes causas de atipicidade ou excludentes de ilicitude e culpabilidade.

Neste ponto, um sinal de alerta se acende: em que pese o caráter inovador da medida, não se pode admitir que a propositura do acordo despenalizador seja reduzida a uma mera etapa pré-processual operada em automático, sob pena de prejudicar drasticamente a primordial análise acerca da existência ou não de condições para o oferecimento de denúncia.

Isto porque, em não havendo justa causa para a ação penal, o arquivamento é medida que se impõe. Em outras palavras, é pressuposto do acordo que, antes mesmo de sua propositura, o Ministério Público já tenha concluído pela presença de conteúdo probatório suficiente para amparar o oferecimento de denúncia. Todavia, exercendo sua discricionariedade enquanto titular da ação penal, proceda à formalização do ANPP,  situação mais benéfica para o agente.

Além disso, a lei traz como requisito autorizador do acordo a confissão formal da prática do crime pelo investigado, disposição de constitucionalidade bastante questionável, mormente se considerado o princípio da presunção de inocência que vige no ordenamento jurídico brasileiro. Ora, se não há persecução penal – e, por conseguinte, devido processo legal – é injustificável exigir do investigado a assunção prévia da responsabilidade criminal para fins de negócio jurídico processual.

No que tange às condições para celebração do acordo, a lei diz que podem ser estipuladas as seguintes: I) reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto se impossível fazê-lo; II) renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III) prestação de serviços à comunidade ou entidade pública; IV) pagamento de prestação pecuniária e V) outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Aqui, notadamente em razão da cláusula aberta constante do inciso V do art. 28-A, caput, percebe-se que a lei concedeu ampla liberdade ao Ministério Público no que concerne ao estabelecimento das condições para realização do acordo, o que exigirá postura ativa dos causídicos e do próprio judiciário, que procederá à homologação do ajuste, no sentido de impedir eventuais excessos e abusos.

Ademais disso, não obstante a estipulação de pena mínima inferior a quatro anos para fins de cabimento, que permite ao instituto alcançar um arcabouço considerável de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça,  a lei trouxe expressamente as hipóteses de sua inaplicabilidade. A primeira delas refere-se aos casos em que é admitida a transação penal, que, por se destinar aos crimes de menor potencial ofensivo e impor condições menos gravosas, tem aplicação preferencial.

Da mesma maneira, não se admitirá a formalização do acordo caso o investigado ostente a condição de reincidente ou “criminoso habitual” – seja lá o que isso quer dizer. Afora a imprecisão técnica do termo, fato é que, no Estado Democrático de Direito, inquéritos policiais em andamento e ações penais em curso não podem ser considerados como maus antecedentes, razão pela qual eventual recusa ministerial com base nesse aspecto subjetivo não encontrará respaldo legal.

Inviabiliza, também, a formalização do ajuste ter o investigado sido beneficiado – no quinquênio anterior ao cometimento da infração – por algum outro instituto despenalizador, ou, ainda, ter sido o crime cometido no contexto de violência doméstica ou familiar. Essa última disposição está em  consonância com o entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça em relação à inaplicabilidade da suspensão condicional do processo e da transação penal aos delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha (súmula 536).

A recém promulgada legislação, é importante consignar, não impõe limitação de natureza econômica, diferentemente da resolução 181/17 do CNMP, que trazia expressamente a impossibilidade de celebração do acordo quando o dano causado fosse superior a vinte salários mínimos.

Superada a fase de formalização entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu advogado, o acordo de não persecução penal segue para a etapa judicial, onde será realizada audiência para homologação do ajuste. Nesta fase, a lei atribui ao juízo – de forma altamente discricionária, é bom ressaltar – a incumbência de analisar a voluntariedade e legalidade do acordo, bem como a adequação das condições propostas pelo órgão ministerial.

Para fins de análise da voluntariedade, a lei trouxe baliza objetiva, qual seja, oitiva do investigado em audiência. Em relação à legalidade, porém, o legislador não estipulou critério de mensuração, o que faz presumir que o juízo deve restringir-se à verificação da natureza do delito, pena cominada, perfil do investigado e adequação do acordo às condições previstas nos incisos I a V do caput do art. 28-A, a fim de que não seja criado ambiente de insegurança jurídica.

Caso alguma das cláusulas seja considerada abusiva  ou insuficiente, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para reformulação, sob pena de recusa à homologação pelo órgão jurisdicional. Em face da decisão que recusar a homologação, caberá recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581, XXV, do CPP.

Em havendo a homologação judicial, caberá ao Ministério Público proceder à execução do acordo perante o juízo da execução penal, o que deve ampliar profundamente a já sobrecarregada atuação das varas de execução criminal. Outrossim, com a homologação do acordo de não persecução penal, sua celebração e cumprimento não constarão em certidão de antecedentes criminais, salvo para obstar idêntico benefício no prazo de cinco anos.

Na hipótese de o investigado descumprir quaisquer das condições estipuladas, a lei dispõe que o Ministério Público deverá comunicar ao Juízo para fins de rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Não obstante a grave omissão do legislador a respeito de como se procederá a rescisão aludida, é inconteste que, em virtude dos princípios do contraditório e ampla defesa, não poderá ocorrer sumariamente, sendo estritamente necessário oportunizar ao investigado manifestar-se previamente à decisão.

Em mais um aspecto relevante, a lei enuncia que a vítima será intimada tanto da homologação do acordo quanto de seu eventual descumprimento, o que destaca o atual e crescente papel da vítima na implementação de institutos penais e processuais penais, movimento denominado pela doutrina de “privatização” do direito penal2.

Por fim, havendo o cumprimento integral do acordo de não persecução penal, será decretada a extinção da punibilidade do investigado, fazendo com que o Estado não possa mais instaurar ação penal em seu desfavor ou mesmo aplicar-lhe a sanção cominada ao delito.

Sem pretensões de esgotar o tema, que ainda demandará significativas reflexões por parte da comunidade jurídica, é possível concluir que a correta implementação do acordo de não persecução penal no ordenamento brasileiro tende a enfrentar inúmeros percalços decorrentes dos pontos omissos – e, também, controvertidos – da legislação, notadamente porque a inserção desse instituto de direito penal negocial altera profundamente o sistema processual penal.

Ademais disso, seja pela ampla discricionariedade atribuída ao Ministério Público em relação à propositura do acordo, seja pela ausência de balizas objetivas no sentido de orientar a análise da legalidade pelo judiciário, possíveis dificuldades de ordem prática reivindicarão apreciação – e pacificação – pelos Tribunais Superiores.

De todo modo, é inquestionável que, de agora em diante, o acordo de não persecução penal (ANPP) passa a integrar efetivamente o rol de estratégias defensivas, apresentando-se como instrumento despenalizador legítimo, que deve ser utilizado com a devida cautela pelos operadores do direito, de modo a resultar, invariavelmente, em situação mais favorável ao investigado, sob pena de desvirtuamento da finalidade do instituto.

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1 CUNHA, Rogerio Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. 7 edição. Salvador: Juspodivm, 2019.

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*Ana Cássia Barbosa é advogada. Residente jurídica na PGE/ES e pós-graduanda em Direito Processual na PUC/MG.

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