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Pedido de Impeachment contra ministro de Estado: algumas questões procedimentais

O controle social é premissa para o bom funcionamento da democracia e garantia essencial de que o Estado de Direito não será apenas uma expressão vazia.

3/3/2020

Nos últimos meses, dois pedidos de impeachment de ministros de Estado aportaram nos gabinetes do Supremo Tribunal Federal. Em agosto de 2019, por meio da Petição 8.351, o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, teve sua retirada compulsória do cargo solicitada. Em fevereiro de 2020 foi a vez do ministro da Educação, Abraham Weintraub, ser alvo de requerimento igual (Petição 8.680).

Certamente é um tipo um tanto incomum de processo, não sendo numerosos os precedentes do Supremo Tribunal Federal. Mesmo dentre a doutrina jurídica, pouca atenção é dedicada a esta situação específica, ao contrário de manancial de arrazoados sobre o impeachment direcionado ao chefe do Poder Executivo. A ocasião, portanto, é oportuna para lançar breves luzes sobre o tema, que comporta algumas especificidades procedimentais não muito difundidas.

Inicialmente, importante tratar das hipóteses de cabimento. O pedido de impeachment contra ministro de Estado pode ser formulado em dois casos:

a) Prática de crime de responsabilidade conexo com o imputado ao Presidente ou Vice-Presidente - hipótese regulada pelo art. 52, I, CF/88;

b) Prática de crime de responsabilidade - hipótese regulada pelo art. 102, I, c, CF/88.

Para incidência da primeira situação, é preciso que ao presidente ou vice-presidente tenha sido imputado crime de responsabilidade, cujo rol se encontra no artigo 85, CF., estando em curso, portanto, apuração voltada a eventualmente aplicar a sanção de perda do mandato eletivo. Caso algum ministro de Estado tenha participado das ações objeto de análise - havendo, portanto, conexão com o crime de responsabilidade atribuído ao Presidente ou Vice - aquele será julgado conjuntamente.

Neste caso, todas as regras procedimentais aplicáveis aos titulares dos cargos eletivos serão estendidas ao ministro de Estado, segundo o modelo que o país vivenciou em passado recente. É um julgamento político, posto que realizado de forma imotivada pelas instâncias legislativas, às quais cabe decidir pelo recebimento da denúncia e aplicação da sanção.

Quando as condutas que possam ser imputadas ao ministro de Estado são próprias (e normatizadas pelos artigos 5º a 12 e no artigo 13 da lei 1.070/50), não se vinculando de forma direta a qualquer medida adotada pessoalmente pelo presidente da República, aplica-se a hipótese do art. 102, I, c, CF/88. Neste caso, adota-se uma lógica processual completamente diferente.

Como é de conhecimento, o artigo 102, CF, trata das competências do Supremo Tribunal Federal e o inciso I lista os processos de competência originária da Corte. Nota-se, então, que as duas hipóteses em que pode se dar o impeachment de ministro de Estado recebem tratamento normativo processual bastante diverso. Em suma, se o ato imputado ao agente público é praticado de forma conexa com crime de responsabilidade atribuído a presidente ou vice-presidente, aquele será julgado pelas casas do Congresso Nacional. Se, de outro lado, a conduta é própria, o julgamento acontece perante o Supremo Tribunal Federal.

Já há alguns bons anos a Corte teve oportunidade de se debruçar sobre o tema e afirmar sua competência exclusiva para processo e julgamento de ministro de Estado em caso de crimes de responsabilidade, entendendo se tratar de matéria jurisdicional que não se submete a apreciação prévia e nem posterior do Poder Legislativo. Como se vê nos julgamentos das Petições 1.104 (Rel. Min. Sydney Sanches), 1.656 e 1.954 (Rel. Min. Maurício Correa), todos de setembro de 2002, ficou assentado entendimento de que a regra do artigo 14 da lei 1.079/50 (“É permitido a qualquer cidadão denunciar o presidente da República ou ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados”), na parte referente aos ministros de Estado, não se manteria ante o disposto no art. 102, I, c, da Constituição de 1988.

O tema foi retomado e aprofundado no julgamento da Reclamação 2.138, relatada pelo min. Gilmar Mendes e decidida em junho de 2007. Na ocasião, além de reafirmar sua competência nos termos mencionados, a Corte estabeleceu que os crimes de responsabilidade não se confundem com os atos caracterizadores de improbidade administrativa, de sorte que, presente discussão acerca de conduta que se enquadre como um daqueles, estaria fixada a competência do STF e afastada, consequentemente, a lei 8.429/92.

Um segundo aspecto que merece atenção diz respeito à legitimidade ativa para propositura do pedido de impeachment. O mencionado artigo 14 da lei 1.079/50 é taxativo ao reconhecer a possibilidade de ‘qualquer cidadão denunciar o presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade’, em fórmula semelhante à adotada pela Lei da Ação Popular (lei 4.717/65). A Suprema Corte, contudo, rejeita este modelo e sustenta que apenas o Ministério Público pode propor o processo. O tema foi assim definido no julgamento das referidas Petições 1.104, 1.656 e 1.954. Por maioria, entendeu-se que o Ministério Público é o titular exclusivo do direito de ação penal, considerando-se que, no caso dos crimes de responsabilidade, se estaria diante de ação penal pública.

Na ocasião, os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio votaram de forma divergente, entendendo pela manutenção da regra do artigo 14 da lei 1.070/50, e o fizeram tendo por base uma leitura acerca da natureza do assim chamado crime de responsabilidade. O ministro Celso de Mello, em cuidadoso voto, destaca que a teoria jurídica rejeita, de forma bastante enfática, a natureza penal dos crimes de responsabilidade, que seriam melhor definidos como ‘ilícitos político administrativos’. A consequência desta categorização é a não incidência do disposto no artigo 129, I, CF, acerca da exclusividade do Ministério Público para propositura de ação penal pública. Nos últimos 18 anos, contudo, este ministro não teve oportunidade de se manifestar novamente sobre o tema.

Mais recentemente o entendimento dominante foi reafirmado em duas ocasiões: em agosto de 2018, por força da Petição 7.514, decidida monocraticamente pelo ministro Luiz Fux, e em outubro de 2019, também por decisão monocrática do ministro Edson Fachin na Petição 8.351. Em todos os casos, é possível perceber que as manifestações trazem uma fundamentação implícita de política judiciária, na medida em que o monopólio atribuído ao Ministério Público funciona como um filtro, limitando severamente a possibilidade de múltiplos pedidos de impeachment serem protocolados.

Cumpre observar que, no caso da Petição 8.351, foi interposto Agravo Regimental e o processo está na fila para ser apreciado pelo Plenário. Considerando que os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello ainda compõem a Corte e que o ministro Fachin, em sua decisão monocrática, consignou expressamente que não concorda com o entendimento dominante, é possível que em breve haja nova discussão sobre a matéria.

Em resumo, a questão quanto à competência (se do STF ou da Câmara dos Deputados) para apreciação do pedido de impeachment de ministro de Estado é pacífica, diante de norma constitucional que expressamente a confere à instância judicial. Neste ponto, portanto, o disposto na lei 1.079/50 acerca do processamento do pedido perante a Câmara dos Deputados não se aplica.

Já com relação à legitimidade ativa, não há norma constitucional expressa. O fundamento por meio do qual o STF sustenta ser tal prerrogativa exclusiva do Ministério Público é o seu entendimento sobre a natureza jurídica do crime de responsabilidade. Percebe-se, portanto, que não é uma base decisória inabalável, ao contrário. Como se vê nos casos mais recentes das Petições 8.351 e 8.680, grupos de parlamentares federais ajuizaram os pedidos em nome próprio, acabando por reagitar a discussão.

A revisão desta jurisprudência seria bem-vinda especialmente em tempos de tanto temor quanto à preservação dos fundamentos democráticos sobre os quais se assenta o Estado brasileiro. Isto porque, ao permitir que qualquer cidadão promova semelhante ação, a Suprema Corte estaria contribuindo para promover uma abertura participativa importante, criando mais uma possibilidade de a sociedade exercer controle sobre a atividade dos agentes públicos.

É fato que a nomeação de ministros de Estado é ato discricionário do presidente da República, assim como é certo que o voto popular não confere ao titular de qualquer cargo eletivo um salvo conduto para gerir a nação de forma arbitrária. O controle social é premissa para o bom funcionamento da democracia e garantia essencial de que o Estado de Direito não será apenas uma expressão vazia. Lado a lado com as instituições, dentre as quais figura o Supremo Tribunal Federal, a sociedade precisa exercer papel ativo na fiscalização e controle sobre gestores públicos e mandatários.

No caso específico dos ministros de Estado – e, por simetria, dos Secretários Estaduais e Municipais, naturalmente – hoje existe uma barreira procedimental que aparta o cidadão, retirando-lhe qualquer possibilidade de contestar atos por aqueles praticados e a sua permanência no cargo. Assim é que, com amparo no princípio democrático e na certeza de que os espaços de participação cidadã precisa ser reforçados e ampliados, entende-se ser necessário que o plenário do STF não tarde e não se furte a analisar o tema.

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*Marcus Firmino Santiago é doutor em Direito do Estado, professor de Direito Constitucional e advogado especialista em Direito e Jurisdição Constitucional e em Direito Educacional.

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