Apreender o passaporte e consequentemente, impedir cidadãos brasileiros de sair do Brasil em função de dívidas judiciais tem sido argumentado como meio de “motivação” ao pagamento da dívida ou do cessar da fraude à execução/credores, e tem sido recebido a denominação de medida coercitiva atípica fundamentada no artigo 139 inciso IV do Código de Processo Civil mas sem regramento objetivo, corre o risco de tornar-se letra morta por violar ordenamento jurídico fundamental.
O Direito de ir e vir previsto no artigo 5o inciso XV da Constituição de 1988 é uma cláusula pétrea e, a todos os brasileiros, soa algo natural pois foi conquistado a custa de muito sacrifício dos antepassados, e habituou os cidadãos a liberdade de poder transitar pelos rincões sem limites e sem ter de dar satisfações, podendo até, na calada da noite fazer toda a mudança da casa e desaparecer do mapa, sem que vizinhos, credores ou meramente pessoas incômodas saibam o paradeiro. Recordando que em alguns países da Europa, ainda hoje, a cédula de identidade está atrelada ao endereço de residência do cidadão, bem como os serviços de saúde e educação assim, se ele desejar mudar, deverá comparecer à prefeitura e comunicar (dar publicidade) seu novo endereço. Isso sem citar os países fechados onde a majestade do estado impõem regras ainda mais rigorosas aos seus cidadãos.
Voltando ao Direito de ir e vir, perceber-se que ninguém pode obstacularizar esse Direito Fundamental, mas relativiza-se em função da supremacia do estado em exercer o ônus da transgressão de norma penal após o agente, percorrer o Due Process Law, em pena que, genericamente, afetará a liberdade do agente, restringindo-a ou tolhendo-a temporariamente.
Excluída tal situação, as hipóteses de aplicação das teorias da 3a e da 4a velocidade do Direito Penal também se prestam para resumir Direitos Fundamentais à margem do amplo direito de defesa. Casos muito peculiares como dívida por pensão alimentícia embora jamais esquecidos, por hora não serão abordados.
Talvez em função do desenvolvimento da Internet, nos últimos anos tem crescido na massa popular, a idéia de que o aparato judicial é deveras leniente com os transgressores do colarinho branco, protege os devedores e sua lentidão serve de incentivo para novos abusos, então, aos olhos do público leigo é impunidade toda ocorrência onde, o magistrado, ao invés de decretar a prisão do suspeito, opta pela apreensão do passaporte, interpretando equivocadamente esses leigos, que o juiz ou é afeto ao réu ou pretende arrefecer o caso em favor dos imputados quando, a repercussão é exatamente o anverso dessa face e o uso indiscriminado desse ato jurídico pode trazer sérias consequências não só para o magistrado mas para o Governo Brasileiro. A apreensão do passaporte, passa longe de ser um mero ato de “tomar o documento de viagens” do réu, é na verdade um procedimento de extrema seriedade que exige cautela no seu trato.
O que consigna a conotação de uso indiscriminado, ou exagerado, desse procedimento extremo, consiste na sua aplicação após um processo penal elaborado aquém da qualidade necessária para embasar a restrição de liberdade e, na seara civil, o emprego de apreensão de passaporte com justificativa subjetiva, pautada em um prognostico vagamente vinculando, fundamentado no artigo 139 inciso IV Codex Adjetivo Civil, sob a etiqueta das medidas coercitivas atípicas, e portanto, medida sem descrição expressa em lei (cito a apreensão do passaporte do devedor), de livre arbítrio do magistrado, dado seu convencimento de que o devedor esconde patrimônio com o fito de frustrar a satisfação da relação obrigacional e que, in tesi, se limita apenas ao Princípio da Dignidade Humana.
E se atendo a esta aplicação civil em específico, recentemente a apreensão do passaporte tornou-se resposta ao dilema clássico do cotidiano forense intitulado “ganha mas não leva”, cuja narrativa é: A vitima, no caso o exequente, sofre inexoravelmente com a sonegação dos seus créditos, pois o réu (executado), por meios artificiosos, esconde e inviabiliza a liquidação dos créditos, seja transferindo a titularidade, seja levando-os para fora do país, seja por outro meio maliciosos que impossibilite sua penhora ou evicção com a finalidade de quitar a dívida judicial. As inovações do CPC alinham a eficácia legal com a eficácia social do Direito Adjetivo Civil, consistindo em importante ferramenta jurídica que merece ser tutelada, conservada e aprimorada.
O objetivo de apreender o passaporte do devedor é “motivá-lo” a pagar sua dívida. E essa tênue justificativa é o quê dá convicção de que há algo errado pois não se guarda conexão entre os dois elementos (o passaporte e a execução). Há quem diga que, não é justo que o devedor realize viagens sendo ele devedor, também há quem diga que se o devedor não tem dinheiro para pagar a dívida, também não tem dinheiro para viajar e portanto é inútil o passaporte e, há quem diga que, retirando o passaporte, o devedor se verá necessitado pagar sua dívida pois caso contrário não poderá realizar viagens para fora do país.
Em que pese o injusto e realista mote da Justiça brasileira (ganha mas não leva), a apreensão do passaporte não pode ser empregada como meio para alcançar a eficácia social da norma, independentemente do fato do réu ser um devedor viajante ou não, rico ou pobre, endinheirado ou quebrado, é um ato extremo, aplicável somente se couber pena restritiva de liberdade ou se houver risco de fuga ou sequestro de menor, mas nunca poder-se-ia fundamentar o feito como se fosse uma “medida atípica” de cobrança pecuniária pois, viola não só Norma Constitucional como Norma Supraconstitucional, pois conduz o cidadão a um status análogo ao Capitis Deminutio do Direito Romano.
No Direito romano, relembrando a brilhante obra de Thomas Mark, o instituto do Capitis Deminutio era a mudança da capacidade jurídica do indivíduo, representando normalmente um rebaixamento, originária de um ilícito comercial ou penal, o procedimento era mormente acompanhado de humilhação e execração social podendo ser em três graus: Mínima – que tornava o indivíduo dependente de seu genitor, tirando parte considerável de sua capacidade civil; Média – levava à perda da cidadania que correspondia a segregação e banimento do indivíduo daquela sociedade; Máxima – que finalmente levava à perda da liberdade do indivíduo.
Para fazer entender a seriedade da medida, tomando como exemplo prático, considerando que não é o passaporte que impede uma pessoa de entrar, sair ou permanecer em um país, na hipótese de um devedor brasileiro, emigrar ilegalmente para um país que demande passaporte e visto, como cotidianamente se vê, e ao ser detido pelas autoridades de fronteira daquele país, sendo questionado sobre o passaporte, o brasileiro informa que as autoridades judiciais brasileiras apreenderam o documento. Ora, sem passaporte, o não mais cidadão brasileiro, torna-se por definição do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados um “migrante indocumentado” e receberá o tratamento de um apátrida de facto, podendo pleitear o status de refugiado.
Isso é o que se conclui após analisar o documento intitulado “O Conceito de Pessoa Apátrida segundo o Direito Internacional Resumo das conclusões”, ocorrido na Reunião de especialistas organizada pelo escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, Prato, Itália, 27-28 de maio de 2010. Assim, perante a comunidade internacional, o que se tem é, o Estado Brasileiro rebaixando a cidadania de um de seus co-nacionais ao ponto dele alcançar o status de apátrida, violando assim o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz: 1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.
Saindo dessa situação extrema e voltando à análise teórica, ao apreender o passaporte do devedor, o rol dos ordenamentos jurídicos supraconstitucionais violados, são inaugurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, que em seu artigo 13 expressa que “Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país”, recepcionado e traduzido pela nossa Constituição em Direito de ir e vir, e logo após adentra-se nos regramentos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, na medida que o Brasil é também signatário.
O Pacto de San Jose de Costa Rica, por onde se baliza a Corte de Direitos Humanos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, cita em seu artigo 22 item 2 que toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio, cujo texto da norma jurídica foi firmado em 1969 e ratificado pela nação brasileira em 1992, quatro anos após a promulgação da Constituição Federal que, por meio de seu artigo 5o inciso XV refletiu o extrato dessa manifestação internacional. E para consolidar a eficácia jurídica, a emenda constitucional 45 inseriu o parágrafo 3o no artigo 5o na CF 88 e assim, passa a valer como se emenda constitucional assim fossem, os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos, aprovados nas casas legislativas, como foi o caso tanto da Declaração Universal dos Direitos Humanos como do Pacto de San Jose.
Como fato marcante da grande influência do Pacto de San Jose da Costa Rica foi a modificação do Código de Processo Civil, fazendo extinguir uma das duas hipóteses de prisão civil previstas até então: a prisão ao depositário infiel expresso no artigo 904 do CPC/73. Essa penalidade civil colidiu com o artigo 7o item 7 (“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”), e coube ao STF sacramentar o sepultamento da norma devido a Supraconstitucionalidade do Pacto Americano, sedimentado pela EC 45. As atuais gerações de operadores do Direito desconhecem a possibilidade do depositário inadimplente com suas relações obrigacionais ser penalizado com a privação da liberdade pois essa hipóteses já não consta do texto do CPC/15 – hoje o Brasil está alinhado aos países que não realizam detenções pautadas em dívidas, ou pelo menos não possui norma jurídica expressa e clara a esse respeito.
Além de ferir norma da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e da Constituição Brasileira, é uma medida completamente inócua se o alvo for um viajante da América do Sul já que, publicado no Diário Oficial da União em 16 de abril de 2018, pelo Ministério das Relações Exteriores, o acordo sobre documentos de viagem e de retorno dos Estados partes do Mercosul e Estados Associados, que engloba República Argentina, República Federativa do Brasil, República do Paraguai, República Oriental do Uruguai, República Bolivariana da Venezuela, Estado Plurinacional da Bolívia, República do Chile, República da Colômbia, República do Equador e República do Peru, diz que, basta a cédula de identidade com data de emissão inferior a 10 (dez) anos para que um cidadão de um desses países possa transitar tranquilamente e livre de qualquer problema por entre as fronteiras desses países, sendo portanto, desnecessário o uso do passaporte.
Em conclusão, percebe-se que o procedimento de apreensão de passaporte sob a chancela de “medida coercitiva atípica” em função de dívida pecuniária consiste em extrapolação da interpretação do artigo de lei e que, viola Normas Supraconstitucionais, Constitucionais e Infraconstitucionais em razão de produzir um Capitis Deminutio à cidadania brasileira do executado, além de não prestar nenhuma garantia de sucesso no objetivo que é motivar devedor a pagar a dívida, expõem o Estado e as Instituições Brasileiras ao crivo da crítica internacional em matéria de Direitos Humanos e ainda é completamente inócua quando se trata de viagens internacionais por países da América Latina, já que os cidadãos dessa localidade não necessitam de passaporte para circular livremente entre as fronteiras. Nessas breves considerações, não foi relevada a possibilidade do executado com dupla cidadania que, possua portanto, passaporte brasileiro e da outra nação, nem a hipótese em que o executado seja estrangeiro e possua apenas o passaporte de outra nação e nem, finalmente, se o devedor simplesmente não possuir passaporte – em todas essas circunstancias, não alcançará a ordem judicial a esperada eficácia.
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*Luiz Wagner Miqueletti Junior é advogado e professor no Centro Universitário Fundação Santo André.