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A apólice de seguro à base de reclamação (claims made basis) e suas peculiaridades

A apólice à base de reclamação, de aparente dificuldade na sua compreensão, se interpretada e consequentemente aplicada corretamente, tem a força suficiente para proteger os interesses do segurado frente sua responsabilidade perante terceiros.

11/2/2020

A apólice à base de reclamação, também conhecida como “claims made basis”, foi concebida em meados da década de 1980, nos Estados Unidos da América, por conta da crise que se instalou nos seguros de responsabilidade civil que tinham suas apólices à base de ocorrência.

Naquela época surgiram inúmeras ações indenizatórias por conta da contaminação por amianto, intoxicação por dioxina, falhas em produtos, como as próteses de silicone e sinistros ambientais, que levaram as Cortes de justiça americana a condenar os respectivos responsáveis pelos danos causados.

Em relação aos seguros de responsabilidade civil contratados pelos autores dos danos, as apólices à época eram à base de ocorrência (“ocurrence losses basis”) e como não se conseguiu determinar a data exata em que os danos foram causados, essas Cortes – em geral – fixaram o entendimento de que diversas seguradoras de um determinado período fossem responsáveis solidárias pelas reparações dos danos, somando-se os limites máximos de indenização das respectivas apólices.

Esses prejuízos provocaram a ruína de algumas seguradoras e resseguradoras que não estavam preparadas financeiramente para esses pagamentos, já que muitas daquelas apólices tiveram término vigência muitos anos antes e, portanto, não se esperava mais pagamentos de indenizações.

Para esse tipo de situação, convencionou-se chamar de risco de latência prolongada ou cauda longa (long-tail).

A modalidade de apólice à base de reclamação, nasceu, portanto, da necessidade de garantir riscos marcados por um longo período oculto, ou seja, de latência entre o fato ou ato e sua eclosão. Ela desconsidera em grande parte a data da ocorrência do evento e determina a data da ciência da reclamação do terceiro prejudicado como condição de gatilho (trigger) disparador do mecanismo de cobertura.

A Europa, em seguida aos Estado Unidos da América, buscou adotar o princípio “claims made”, mas em alguns países como Bélgica e Espanha encontrou-se muita resistência. Na França, por exemplo, se chegou a proibir o uso dessa modalidade de seguro (Corte de Cassação desde 1990), admitindo-a somente em 2002 (Código Francês) – L.251-2) e ampliando-a em 2003 (Código Francês – L.124-5).

Superados alguns problemas, inclusive, judiciais, de interpretação, a conclusão a que se chegou foi a de que essa modalidade de apólice protege de maneira mais harmônica os riscos de latência prolongada. Aliás, as próprias legislações em seguros de alguns países europeus foram modificadas para admitirem a apólice claims made de forma expressa. A legislação francesa, como já mencionado, e a lei de seguros de Portugal (decreto-lei 72/08 - Art. 139 –item 2 e 3) são bons exemplos.

Por sua vez, no cenário nacional, o primeiro contato com essa modalidade de apólice se deu no final da década de 1980, quando o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) lançou o produto denominado “Responsabilidade Civil Produtos Exterior”.

A partir daí passou a coexistir no Brasil duas modalidades básicas de apólice; i) a “tradicional”, que fixa a responsabilidade do segurador de acordo com o momento do fato ou ato que causou o evento danoso, ou seja, que essa circunstância tenha ocorrido durante a vigência do contrato, denominada de “à base de ocorrência” ou “ocurrence basis”; e, ii) a “moderna”, para atender à necessidade de garantir os “eventos danosos ocultos”, que fixa a responsabilidade do segurador no momento da ciência da reclamação do terceiro prejudicado, denominada então de  “à base de reclamação” ou “claims made basis”.

Para ilustrar, essas duas modalidades de apólice foram bem individualizadas conceitualmente em acórdão proferido pelo Tribunal de Relações do Porto – Portugal:

Nas apólices de reclamação, também denominadas claims made, a delimitação temporal da garantia do seguro reporta-se não à data da verificação do facto causador do prejuízo, mas antes à data da sua reclamação, diferentemente do que acontece nas apólices de seguro denominadas de ocorrência, que apenas admitem a indemnização quando o facto causador do dano se verifica na vigência do contrato de seguro1

O fato é que se passou de um tradicional e arraigado conceito, que objetivava estabelecer o momento do fato ou ato causador do dano para identificar a apólice aplicável, para um momento aparentemente indefinido e oculto, ou seja, a eclosão de um incubado evento danoso.

Vale dizer que naquela época o sistema jurídico nacional vinha alterando alguns conceitos, notadamente no que concerne à contagem do prazo prescricional nas questões de responsabilidade civil. A jurisprudência passou a adotar como termo inicial da prescrição para exigir reparação do dano, o momento em que a ação pudesse ser exercitável (“actio nata”), assim, se o dano está oculto, não é exercitável e, portanto, não corre o prazo prescricional.

Com o advento do Código Civil de 2002, esse entendimento se consolidou e, para acompanhá-lo, o próprio seguro de responsabilidade civil, qualquer que seja a modalidade, tem como termo inicial, em regra, para a contagem de prescrição entre o segurado e segurador, o momento efetivo da ciência do exercício da pretensão pela vítima, como se observa do disposto no artigo 206, §1º, II, “a”.

A ideia é que o sinistro, no contexto do seguro de responsabilidade civil, a rigor, é a efetiva reclamação da vítima pelos danos sofridos, logo, se a vítima não reclamar indenização pelo dano, não há sinistro, mas mera expectativa. 

Pois bem, no início dos anos 2000, as seguradoras passaram a submeter à SUSEP os primeiros produtos “claims made” adaptando aos clausulados praticados no exterior, mas em 2001, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), sem a compreensão exata do tema, proibiu a “claims made” para pessoas físicas e pessoas jurídicas como destinatárias finais (portaria SDE 03).

Em 2003 a SUSEP editou a circular 235 admitindo a comercialização da apólice à base de reclamação apenas para as pessoas jurídicas, substituída em 2004 pela Circular 252, ocasião em se estabeleceu a possibilidade de contratação de data retroativa de cobertura anterior ao início da vigência da primeira apólice. No mesmo ano de 2004, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) publicou a portaria 24, revogando a de 3, ensejando a edição da circular SUSEP 252/04 para contemplar as pessoas físicas.

A apólice à base de reclamação é atualmente regulamentada pela SUSEP por meio da circular 336/07, que a conceitua da seguinte maneira:

Art. 3º Considera-se, para os fins desta norma:

(...)

II - apólice à base de reclamações ("claims made basis"): forma alternativa de contratação de seguro de responsabilidade civil, em que se define, como objeto do seguro, o pagamento e/ou o reembolso das quantias, respectivamente, devidas ou pagas a terceiros, pelo segurado, a título de reparação de danos, estipuladas por tribunal civil ou por acordo aprovado pela sociedade seguradora, desde que:

a) os danos tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice ou durante o período de retroatividade; e

b) o terceiro apresente a reclamação ao segurado:

1. durante a vigência da apólice; ou

2. durante o prazo complementar, quando aplicável; ou

3. durante o prazo suplementar, quando aplicável;

Para melhor compreensão do texto normativo, o dividimos em três partes:

A primeira parte, “em que se define, como objeto do seguro, o pagamento e/ou o reembolso das quantias, respectivamente, devidas ou pagas a terceiros, pelo segurado”, evidencia que o interesse legítimo segurável e objeto de cobertura, constitui-se na garantia de pagar indenizações devidas a terceiros a título de perdas e danos, ou seja, trata-se de garantia atrelada ao seguro de responsabilidade civil.

Na segunda parte, onde se consigna que “a título de reparação de danos, estipuladas por tribunal civil ou por acordo aprovado pela sociedade seguradora, desde que: a) os danos tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice ou durante o período de retroatividade”, a norma deixa claro que a apólice “claims made” cobre as reclamações apresentadas durante a vigência da apólice, mas desde que os atos e fatos (as ocorrências) tenham se originado durante o “período de cobertura”, qual seja, período retroativo2 até o último dia de vigência da apólice ajustados.

Por fim, a terceira parte, que registra que “b) o terceiro apresente a reclamação ao segurado: 1. durante a vigência da apólice; ou 2. durante o prazo complementar, quando aplicável; ou 3. durante o prazo suplementar, quando aplicável”, estabelece a existência de um prazo complementar para apresentação de reclamações por terceiros e, ainda, em sendo pago prêmio adicional, um prazo suplementar, imediatamente subsequente ao prazo complementar. Tanto o prazo complementar quanto o suplementar visa conferir cobertura para os danos decorrentes de atos e fatos ocorridos durante o “período de cobertura”, porém, reclamados pelos terceiros dentro desses referidos prazos.

Com efeito, prazo complementar significa um prazo adicional – de no mínimo 1 ano – “para a apresentação de reclamações ao segurado, por parte de terceiros, concedido, obrigatoriamente, pela sociedade seguradora, sem cobrança de qualquer prêmio adicional, tendo início na data do término de vigência da apólice ou na data de seu cancelamento”, ao passo que prazo suplementar significa o “prazo adicional para a apresentação de reclamações ao segurado, por parte de terceiros, oferecido, obrigatoriamente, pela sociedade seguradora, mediante a cobrança facultativa de prêmio adicional, tendo início na data do término do prazo complementar”.

Mais detalhadamente, o prazo complementar é contado a partir do término de vigência da apólice, nas seguintes situações: i) se a apólice  não for renovada; ii) for transferida para outra sociedade seguradora que não admita, integralmente, o período de retroatividade da apólice precedente; iii) for substituída por uma apólice à base de ocorrência, ao final de sua vigência, na mesma sociedade seguradora ou em outra; iv) for cancelada, desde que o cancelamento não tenha ocorrido por determinação legal, por falta de pagamento do prêmio ou o pagamento das indenizações tenha atingido o limite máximo de garantia da apólice.

Ressalva-se, contudo, que o prazo complementar concedido não se aplica àquelas coberturas cujo pagamento de indenizações tenha atingido o respectivo limite agregado3; e às coberturas previamente contratadas e que não foram incluídas na renovação da apólice, desde que estas não tenham sido canceladas por determinação legal, ou por falta de pagamento do prêmio.

Quanto ao prazo suplementar, sua contratação se dá durante o transcurso do prazo complementar e somente pode ser contratada uma única vez, com no mínimo 1 ano, não podendo ele ser concedido àquelas coberturas cujo pagamento de indenizações tenha atingido o respectivo limite agregado ou limite máximo de garantia4.

Ademais, na apólice à base de reclamação é obrigatória a existência de uma cláusula declaratória para estabelecer “entre as condições necessárias para a aceitação da proposta, que o segurado apresente declaração informando desconhecer a ocorrência, durante o proposto período de retroatividade, de quaisquer fatos ou atos que possam dar origem, no futuro, a uma reclamação garantida pelo seguro” (art. 8º da Circular Susep 336/2007), sendo ela “aplicável tanto na contratação inicial de uma apólice à base de reclamações, quando acordado período de retroatividade, quanto na hipótese de transferência desta apólice para outra sociedade seguradora, se houver manutenção, ainda que parcial, do período de retroatividade do seguro transferido”. (Parágrafo único).

Com relação às renovações sucessivas desse tipo de apólice numa mesma seguradora, é obrigatória a concessão do período de retroatividade de cobertura da apólice anterior, ou seja, tem o segurado o direito de ter fixado, no mínimo, como data limite de retroatividade aquela ajustada por ocasião da primeira apólice, facultado, mediante acordo entre as partes, a fixação de outra data, anterior àquela.

No caso de transferência da apólice para outra seguradora, a nova sociedade poderá, mediante cobrança de prêmio adicional e desde que não tenha havido solução de continuidade do seguro, admitir o período de retroatividade de cobertura da apólice precedente.

Sendo assim, uma vez fixada data limite de retroatividade igual ou anterior à da apólice vencida, a sociedade seguradora precedente fica isenta da obrigatoriedade de conceder os prazos complementar e suplementar.

Porém, se a data limite de retroatividade, fixada na nova apólice, for posterior à data limite de retroatividade precedente, o segurado, na apólice vencida, terá direito à concessão de prazo complementar e, quando contratado, de prazo suplementar; nessa hipótese, a aplicação dos prazos adicionais ficará restrita à apresentação de reclamações relativas a danos ocorridos no período compreendido entre a data limite de retroatividade precedente e a nova data limite de retroatividade.

Por fim, a apólice à base de reclamação pode conter cláusula de notificação, de oferecimento facultativo pela seguradora, que permite ao segurado notificar - que não se confunde com aviso de sinistro, já que este pressupõe a existência de uma reclamação por parte do terceiro - por escrito, durante a vigência da apólice, fatos ou circunstâncias que possam dar origem a reclamações futuras amparadas pelo seguro, as chamadas expectativas de sinistro, vinculando a apólice então vigente a reclamações futuras que vierem a ser apresentadas por terceiros prejudicados, ainda que fora do “período de cobertura”.

Mas, se o segurado não notificar a seguradora, e este vier a ser reclamado, no futuro, por terceiros prejudicados, será acionada a eventual apólice que estiver em vigor por ocasião da apresentação da reclamação.

Em linhas gerais, a apólice à base de reclamação, de aparente dificuldade na sua compreensão, se interpretada e consequentemente aplicada corretamente, tem a força suficiente para proteger os interesses do segurado frente sua responsabilidade perante terceiros e, ao mesmo tempo, o fundo mutual administrado pela seguradora, já que lhe garante fazer provisões adequadas ao risco por ela assumido (IBNR5), salvaguardando a base econômica do contrato e consequentemente a estabilidade do próprio sistema securitário em si.

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1 Apelação - Processo 9108/16.0T8PRT-A.P1 – Relator INÊS MOURA – nº do documento RP201711099108/16.0T8PRT-A.P1 – Data do acórdão 09/11/2017 - Unanimidade

2 Nos termos da Circular Susep 336/2007, o período de retroatividade de cobertura significa “data igual ou anterior ao início da vigência da primeira de uma série sucessiva e ininterrupta de apólices à base de reclamações, a ser pactuada pelas partes por ocasião da contratação inicial do seguro” (art. 3º, III).

3 Limite agregado: valor total máximo indenizável por cobertura no contrato de seguro, considerada a soma de todas as indenizações e demais gastos ou despesas relacionados aos sinistros ocorridos. Os limites agregados estabelecidos para coberturas distintas são independentes, não se somando nem se comunicando;

4 Limite máximo de garantia da apólice (LMG): representa o limite máximo de responsabilidade da sociedade seguradora, aplicado quando uma reclamação, ou série de reclamações decorrentes do mesmo fato gerador, é garantida por mais de uma das coberturas contratadas. Na hipótese de a soma das indenizações, decorrentes do mesmo fato gerador, atingir o LMG, a apólice será cancelada;

5 Sinistros ocorridos, porém, desconhecidos ou não avisados.

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*Victor Augusto Benes Senhora é sócio titular do escritório J. Armando Batista e Benes Advogados.

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