1 Do conceito legal do juiz das garantias
Em termos legais, por força dos arts. 3-A a 3-F introduzidos no Código de Processo Penal pela lei 13.964/19, o juiz das garantias trata-se de magistrado com atuação no âmbito criminal em fase exclusivamente pré-processual, ressalvados os crimes de menor potencial ofensivo, sendo ele “[...] responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (BRASIL, 2019, p. 03).
2 Do juiz das garantias nas legislações portuguesa e brasileira
Ante o tradicional e velho sistema jurídico brasileiro, no qual o juiz prevento é o responsável por toda a persecução penal, o juiz das garantias vem a ser uma inovação na legislação penal brasileira, trazida pela lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019.
Malgrado o mencionado instituto jurídico seja uma novidade do Brasil, a divisão da atividade jurisdicional do estado nas fases pré-processual e processual não se trata de uma ideia original de nosso país, sendo ela já aplicada em diversos países da Europa, tais como Portugal, França e Itália, bem como em países do continente americano, v.g. os Estados Unidos, Chile e Colômbia.
A título de exemplo, veja-se que em Portugal, o juiz das garantias surgiu em 1987 através do Código de Processo Penal português, sob o nome de “juiz da instrução”.
Nos termos do art. 17 do Códice retrocitado, ao juiz da instrução compete “proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo para julgamento” (PORTUGAL, 1987), estando os atos a serem por ele praticados previstos nos arts. 268 e 269 do mesmo diploma legal. Confiram-se:
“art. 268 [...] 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;
e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
2 - O juiz pratica os actos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente.
3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades.
4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível” (PORTUGAL, 1987).
“art. 269 [...] 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:
a) A efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º;
b) A efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º;
c) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º;
d) Apreensões de correspondência, nos termos do n.º 1 do artigo 179.º;
e) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º;
f) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo anterior” (PORTUGAL, 1987).
Tendo em vista o acima disposto, dúvida não há de que ao juiz da instrução cabe a função de garantidor no âmbito pré-processual, ou seja, de controle de legalidade da investigação criminal, bem como o resguardo dos direitos fundamentais dos direitos do acusado na mencionada fase, cabendo a outro magistrado dirimir a fase processual, por força do art. 17 do Código de Processo Penal Português.
No mesmo trilhar, foi criado instituto jurídico nomeado no Brasil como “juiz das garantias”, através da lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Tanto o é que nesse sentido, em decisão liminar proferida nos autos da ADIn 6298 MC/DF, do dia 15 de janeiro de 2020, se manifestou o ministro do STF Dias Toffoli nas suas considerações iniciais. Veja-se:
“O microssistema do juiz das garantias, inserido no CPP pela Lei nº 13.964/2019, promove uma clara e objetiva diferenciação entre a fase pré-processual (ou investigativa) e a fase processual propriamente dita do processo penal. Determina que magistrados distintos atuem em cada uma dessas fases, sendo que o juiz que atua na fase investigativa tem o propósito específico de controlar a legalidade dos atos praticados e de garantir os direitos do investigado.
A partir da nova lei, passou a existir uma cisão muito mais acentuada entre as duas fases do processo penal. A linha divisória entre as duas fases está situada no recebimento da denúncia ou da queixa, último ato praticado pelo juiz das garantias (art. 3º-C, caput). Após essa etapa, as questões pendentes passam a ser resolvidas pelo juiz da instrução e do julgamento (art. 3º-C, § 1º)” (BRASIL, 2020, p. 9, grifo nosso).
Imperioso observar que as atribuições do juiz em epígrafe foram disciplinadas através do art. 3-B do CPP com redação dada pela lei 13.964/19 e elas se assemelham bastante com as do juiz da instrução instituído no direito português. A título de exemplo, pode-se dizer que a ambos compete decidir sobre os requerimentos de interceptação telefônica, buscas domiciliares e sobre a aplicação de meios de coação/prisões, respeitadas as peculiaridades de cada legislação.
Outro ponto de semelhança a se destacar é que tanto o juiz das garantias brasileiro quanto o juiz da instrução português possuem certa limitação na sua atuação, se restringindo ela à fase pré-processual, devendo outro juiz tomar os rumos do processo após iniciado o trâmite da fase processual.
3 Do objetivo da instituição do juiz das garantias na França e no Brasil
Assim como na legislação portuguesa, na legislação francesa existe a figura do “juiz da instrução”. Contudo, o juiz da instrução francês não possui uma atribuição garantista, sendo ela, em verdade, inquisitória, conforme se extrai do art. 81 do Código de Processo Penal francês (Code de Procédure Pénale). Veja-se:
“Article 81
Le juge d'instruction procède, conformément à la loi, à tous les actes d'information qu'il juge utiles à la manifestation de la vérité.
[...]
Si le juge d'instruction est dans l'impossibilité de procéder lui-même à tous les actes d'instruction, il peut donner commission rogatoire aux officiers de police judiciaire afin de leur faire exécuter tous les actes d'information nécessaires dans les conditions et sous les réserves prévues aux articles 151 et 152.
[...]
Le juge d'instruction procède ou fait procéder, soit par des officiers de police judiciaire, conformément à l'alinéa 4, soit par toute personne habilitée dans des conditions déterminées par décret en Conseil d'Etat, à une enquête sur la personnalité des personnes mises en examen, ainsi que sur leur situation matérielle, familiale ou sociale” (FRANÇA).
“Artigo 81
O juiz investigador procede, de acordo com a lei, a todos os atos de informação que julgue úteis na descoberta da verdade. Ele instruiu no comando e na alta.
[...]
Se o juiz investigador for incapaz de realizar todos os atos de investigação, ele poderá enviar cartas de solicitação aos policiais judiciais para que eles realizem todos os atos de informação necessários, nas condições e sujeito às reservas previstas nos artigos 151 e 152.
[...]
O juiz investigador deve realizar ou fazer com que seja realizado, por policiais judiciais, de acordo com o parágrafo 4, ou por qualquer pessoa habilitada nas condições determinadas por decreto do Conselho de Estado, uma investigação sobre a personalidade das pessoas indiciado, bem como sua situação material, familiar ou social. No entanto, em matéria de crime, esta investigação é opcional” (FRANÇA).
Como se nota, ao magistrado da instrução francês competem dois papéis, quais sejam o investigativos/inquisitórios e o do próprio juiz, sendo o Ministério Público e a polícia judicial meros colaboradores.
Por sua vez, o “juiz das garantias francês” surgiu através da lei 2000-516, em junho de 2000, sendo denominado como juiz das liberdades e da detenção (juge des libertés et de la détention).
O objetivo da criação de tal juiz foi de modo a servir de contrapeso à “inquisição” tradicionalmente realizada pelo juiz da instrução francês, máxime considerando que compete ao primeiro a última palavra acerca da manutenção ou não da liberdade do indivíduo na fase pré-processual, conforme se extrai do art. 137-1 do Código de Processo Penal Francês, com redação data pela lei 2000-516:
“Article 137-1
La détention provisoire est ordonnée ou prolongée par le juge des libertés et de la détention” (FRANÇA).
“Artigo 137-1
A prisão preventiva é ordenada ou prorrogada pelo juiz de liberdade e detenção. Pedidos de liberação também são enviados a ele” (FRANÇA).
No Brasil, tendo em vista que aqui não há um “juiz da instrução ao estilo francês”, cabendo a iniciativa dos investigativos à polícia judicial e ao Ministério Público, assim como no direito português (vide art. 53 do Código de Processo Penal português), o juiz das garantias brasileiro foi instituído com o objetivo de primar pela imparcialidade do julgador responsável pela instrução e julgamento, advindos da fase pré-processual.
Nesse sentido, confiram-se excertos da justificação do PL 4.981/19:
“Acreditamos que a atuação escorreita dos magistrados pode ser contaminada por sua atuação prévia na fase de investigação. Nessa fase, drásticas medidas são tomadas em desfavor dos investigados, tais como prisões cautelares, buscas e apreensões e interceptações telefônicas.
É até natural que o juiz que acabou por deferir essas medidas, tomadas sem contraditório algum, se veja, em alguma medida, comprometido com a hipótese em investigação, com a tese da acusação por assim dizer” (BRASIL, 2019).
No mesmo trilhar, o ministro Dias Toffoli ao proferir sua decisão liminar em 15 de janeiro de 2020, nos autos da ADR 6298 MC/DF: “Portanto, do ponto de vista material, a instituição do juiz das garantias buscou densificar a exigência de imparcialidade do julgador” (BRASIL, 2020, p. 18, grifo do autor).
Acerca do assunto, ainda, é imperioso verificar interessante texto online que segue na mesma linha acima esboçada, mas com apresentação de estudos científicos sobre a questão. O mencionado texto foi publicado na revista Época em 09 de janeiro de 2020 por Rodrigo Mudrovitsch, doutor em Direito do Estado pela USP, professor de Direito Público, advogado e membro da Comissão de Juristas responsável pela Lei de Improbidade Administrativa. Transcrevam-se excertos dele:
“[...] Leon Festinger, Professor da Universidade de Michigan e Pesquisador do MIT, realizou estudos a respeito do comportamento humano ao longo de toda a sua carreira.
Dentre as teorias que formulou, Festinger foi notabilizado pela ‘Teoria da Dissonância Cognitiva’, a qual pontua, em suma, que é condição inata do ser humano a predisposição por validar hipóteses que já foram anteriormente por ele analisadas, superestimando elementos supervenientes que confirmem essa predisposição e subestimando aqueles que a invalide.
Por sua vez, Bernd Schünemann, professor catedrático da Universidade de Munique e ex-consultor do Parlamento Alemão, desenvolveu estudo empírico com magistrados de seu país. Como conclusão, Schünemann demonstrou existir na atividade jurisdicional o que denominou de ‘Efeito Perseverança’ e ‘Princípio da Busca Seletiva de Informações’.
O Efeito Perseverança consiste no fato de que ‘as informações, previamente tomadas como corretas à ratificação da hipótese preconcebida, sejam sistematicamente superestimadas, enquanto que as informações dissonantes sejam sistematicamente subavaliadas’. Por sua vez, o ‘princípio da busca seletiva de informações’ favorece ‘a ratificação da hipótese originária que tenha sido, na auto compreensão individual, aceita pelo menos uma vez’" (MUDROVITSH, 2020).
Como se nota, sejam os legisladores, sejam operadores do direito, sejam estudiosos do comportamento humano, todos entendem que é condição natural do ser humano fazer um pré-julgamento como base em suas anteriores atuações, dando menor importância e, por vezes, não se subvertendo às posteriores advindas em contraposição.
Tal fato é prejudicial à imparcialidade do juiz, pelo que se fez necessário a introdução no Brasil do juiz das garantias, de modo a assegurar que o magistrado da instrução possa julgar o feito sem que tenha formado pré-conceitos da fase pré-processual.
4 Das ações diretas de inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 E 6.305 ajuizadas no Supremo Tribunal Federal.
4.1 Do objeto das ADIns
Com o advento da lei 13.964/19, foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal quatro ações diretas de inconstitucionalidade em face de dispositivos da lei 13.964/19. A mencionadas ADIns correm sob os números 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.
4.2 Das decisões liminares nas ADIns
Na data de 15 de janeiro de 2020, o ministro Dias Toffoli, no exercício do plantão judicial, concedeu parcialmente as medidas cautelares pleiteadas em três ADIns, quais sejam as de números 6.298, 6.299 e 6.300.
Na mencionada decisão, restou resolvido pelo julgador que:
“(i) suspender-se a eficácia dos arts. 3º-D, parágrafo único, e 157, § 5º, do Código de Processo Penal, incluídos pela Lei nº 13.964/19; (ii) suspender-se a eficácia dos arts. 3º-B, 3º-C, 3º-D, caput, 3ºE e 3º-F do CPP, inseridos pela Lei nº 13.964/2019, até a efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, o que deverá ocorrer no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contados a partir da publicação desta decisão; (iii) conferir-se interpretação conforme às normas relativas ao juiz das garantias (arts. 3º-B a 3º-F do CPP), para esclarecer que não se aplicam às seguintes situações: (a) processos de competência originária dos tribunais, os quais são regidos pela Lei nº 8.038/1990; (b) processos de competência do Tribunal do Júri; (c) casos de violência doméstica e familiar; e (d) processos criminais de competência da Justiça Eleitoral. (iv) fixarem-se as seguintes regras de transição: (a) no tocante às ações penais que já tiverem sido instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente. O fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará seu automático impedimento; (b) quanto às investigações que estiverem em curso no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), o juiz da investigação tornar-se-á o juiz das garantias do caso específico. Nessa hipótese, cessada a competência do juiz das garantias, com o recebimento da denúncia ou queixa, o processo será enviado ao juiz competente para a instrução e o julgamento da causa” (BRASIL, 2020, p. 40 e 41).
Por sua, vez o ministro relator Luiz Fux, ao retornar do plantão, fez em 22 de janeiro de 2020 o reexame dos pedidos cautelares formulados nas quatro ADIns de 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, proferindo decisão nos seguintes termos:
“(a) Revogo a decisão monocrática constante das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (a1) da implantação do juiz das garantias e seus consectários (Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal); e (a2) da alteração do juiz sentenciante que conheceu de prova declarada inadmissível (157, §5º, do Código de Processo Penal); (b) Concedo a medida cautelar requerida nos autos da ADI 6305, e suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (28, caput, Código de Processo Penal); (b2) Da liberalização da prisão pela não realização da audiência de custodia no prazo de 24 horas (Artigo 310, §4°, do Código de Processo Penal); Nos termos do artigo 10, §2º, da Lei n. 9868/95, a concessão desta medida cautelar não interfere nem suspende os inquéritos e os processos em curso na presente data” (BRASIL, 2020, p. 42 e 43).
4.3 Da comparação entre os entendimentos firmados nas decisões liminares
4.3.1 Da análise formal da constitucionalidade dos artigos 3º-A a 3ºF
Segundo o ministro Dias Toffoli, em análise inicial, os artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, caput, 3º-E e 3º-F, introduzidos no Código de Processo Penal através da lei 13.964/19, respeitam a regularidade constitucional formal, bem como não ofendem o poder de auto-organização dos tribunais e sua prerrogativa de propor a alteração da organização e da divisão judiciárias. Veja-se:
“Nessa esteira, mostra-se formalmente legítima, sob a óptica constitucional, a opção do legislador de, no exercício de sua liberdade de conformação, instituir no sistema processual penal brasileiro, mais precisamente no seio da persecução criminal, a figura do ‘juiz das garantias’.
Trata-se, portanto, de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, que, de modo algum, afeta o necessário combate à criminalidade” (BRASIL, 2020, p. 12, grifo do autor).
“Não se sustenta, portanto, a alegação dos requerentes de que, ao instituir o juízo das garantias, a Lei nº 13.964/2019 estaria violando o poder de auto-organização dos tribunais e a sua prerrogativa de propor a alteração da organização e da divisão judiciárias.
[...]
Não há dúvidas de que os arts. 3º-A; 3º-B; 3º-C; 3º-D, caput; 3º-E e 3ºF do CPP ingressam em questões atinentes ao próprio exercício da jurisdição no processo penal brasileiro, alterando profundamente sua lógica de funcionamento, a partir de uma clara cisão de competência entre as fases pré-processual e processual” (BRASIL, 2020, p.13).
Por sua vez, no que tange ao art. 3-D, parágrafo único, entende o ministro já referenciado que ele viola o poder de auto-organização constitucionalmente conferido aos órgãos do poder judiciário. Senão vejamos:
“A norma em referência determina a forma pela qual, nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, deverá ser implementado o juízo das garantias. Ao fazer isso, cria uma obrigação aos tribunais no que tange a sua forma de organização, violando, assim, o poder de auto-organização desses órgãos (art. 96 da Constituição Federal) e usurpando sua iniciativa para dispor sobre organização judiciária (art. 125, § 1º, da Constituição Federal)” (BRASIL, 2020, p. 14).
Já o ministro Luiz Fux vai mais além e parte do entendimento que todas as normas previstas nos arts. 3-A a 3-F são formalmente inconstitucionais, pois, ante a realidade fática dos efeitos que elas podem causar, é possível visualizar ofensa ao artigo 96 da Constituição Federal, máxime considerando que os citados dispositivos legais, além de serem normas processual geral, também são normas de organização judiciária:
“Com a devida vênia aos que militam em favor desse raciocínio, entendo que essa visão desconsidera que a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente híbrida, sendo simultaneamente norma geral processual e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do artigo 96 da Constituição.
De antemão, o artigo 3º-D, parágrafo único, do Código de Processo Penal, ao determinar que, ‘[n]as comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo’, parece veicular a violação mais explícita ao artigo da 96 da Constituição.
[...]
De qualquer modo, esses dados da vida real são essenciais para a análise da inconstitucionalidade formal dos dispositivos atacados, na medida em que conduzem a uma inescapável conclusão: a instituição do juiz de garantias altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em tal nível que demanda uma completa reorganização da justiça criminal do país. Por óbvio, cada Tribunal tem a prerrogativa de decidir como essa reorganização de funções será feita, se for o caso (especialização de varas, criação de núcleos de inquéritos etc), de sorte que é inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária” (BRASIL, 2020, p. 19 e 21, grifo do autor).
4.3.2 Da análise material da constitucionalidade dos artigos 3º-A a 3ºF
Quanto à constitucionalidade material dos artigos 3º-A a 3ºF, introduzidos no Código de Processo Penal através da lei 13.964/19, enquanto o ministro Dias Toffoli entende serem as normas constitucionais, o ministro Luiz Fux é totalmente contrário nesse ponto.
Segundo o primeiro ministro retrocitado, as normas em epígrafe buscaram densificar a exigência da imparcialidade do julgador, uma vez que todos os magistrados já possuem o caráter de “garante”. Confira-se:
“Teresa Armenta Deu anota que a figura do juiz de garantias não visa enfatizar o caráter de ‘garante’ do juiz, uma vez que todos os magistrados o são, e sim ressaltar a reserva de jurisdição na adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais na fase da investigação, bem como preservar a imparcialidade (Sistemas procesales penales – la justicia penal en Europa y América. Madrid : Marcial Pons, 2012. p. 72).
Portanto, do ponto de vista material, a instituição do juiz das garantias buscou densificar a exigência de imparcialidade do julgador” (p. 18).
Ademais, argumenta que não haverá a reestruturação do Poder Judiciário, mas apenas uma reorganização da estrutura já existente. Senão vejamos:
“Esses dados demonstram que, diferentemente do que sugerem os autores das ações, o Poder Judiciário brasileiro dispõe sim de estrutura capaz de tornar efetivos os juízos de garantia.
A questão, portanto, não é de reestruturação, e sim de reorganização da estrutura já existente. Não há órgão novo. Não há competência nova. O que há é divisão funcional de competência já existente. É disso que se trata.
Como em diversos estados da federação há centrais ou departamentos de inquéritos policiais que podem ser adaptados à sistemática instituída pela Lei nº 13.964/2019 e como mais de 80% dos processos judiciais no país já tramitam em meio eletrônico, o Judiciário, com o tempo necessário, poderá se reorganizar e remanejar sua força de trabalho, de acordo com as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 3º-E).
Com esses fundamentos, reputo constitucionais os arts. 3º-A; 3º-B; 3º-C; 3º-D, caput; 3º-E e 3º-F do CPP, introduzidos pelo art. 3º da Lei nº 13.964/2019, e, portanto, neste juízo, indefiro a cautelar” (p. 25 e 26).
Em contrapartida, o ministro relator reputa inconstitucionais os arts. 3º-B a 3º-F com base em dois grupos de argumentos. Confira-se:
“Por sua vez, em uma primeira análise, a inconstitucionalidade material dos dispositivos 3º-B a 3º-F do Código de Processo Penal exsurge especialmente a partir de dois grupos de argumentos: a ausência de dotação orçamentária e estudos de impacto prévios para implementação da medida e o impacto da medida na eficiência dos mecanismos brasileiros de combate à criminalidade” (p. 21).
Quanto ao primeiro grupo, afirma o julgador que:
“[...] os dispositivos que instituíram o juiz de garantias violaram diretamente os artigos 169 e 99 da Constituição, na medida em que o primeiro dispositivo exige prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte da União, dos Estados, do Distrito Federal, e o segundo garante autonomia orçamentária ao Poder Judiciário
[...]
Em suma, concorde-se ou não com a adequação do juiz das garantias ao sistema processual brasileiro, o fato é que a criação de novos direitos e de novas políticas públicas gera custos ao Estado, os quais devem ser discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo, considerados outros interesses e prioridades também salvaguardados pela Constituição” (BRASIL, 2020, p. 21 e 22).
Quanto ao segundo grupo, o Ministro subdivide-o em dois pontos. O primeiro ponto diz respeito ao direito comparado, afirmando o julgador que o simples argumento de “sucesso” do instituto jurídico em outro país não pode ser acatado, sendo imprescindível que haja a observância de outras questões, tais como:
“[...] (i) a capacidade que o sistema judiciário brasileiro possui para a recepcionar o “Juiz de Garantias” (e.g. contingente processual, bem como os recursos humanos e financeiros disponíveis); (ii) a proximidade e/ou vinculação institucional entre os órgãos de acusação e de julgamento nos países em análise; (iii) as regulamentações das competências do juiz das garantias nos países comparados. Em verdade, torna-se também imprescindível analisar justamente as experiências comparadas que foram infrutíferas, nas quais a instituição foi implementada, porém não obteve os resultados esperados e/ou foi posteriormente extinta” (p. 27).
Já o segundo ponto, referente à presunção de que os juízes que acompanham as investigações tendem a produzir vieses prejudicais à imparcialidade do julgador, o ministro assim se manifesta:
“A base das ciências comportamentais é o caráter empírico de seus argumentos. A existência de estudos empíricos que afirmam que seres humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à acusação. Mais ainda, também não se pode inferir, a partir desse dado científico geral, que a estratégia institucional mais eficiente para minimizar eventuais vieses cognitivos de juízes criminais seja repartir as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução. Defensores desse argumento sequer ventilam eventuais efeitos colaterais que esse arranjo proposto pode produzir, inclusive em prejuízo da defesa” (BRASIL, 2020, p. 28 e 29, grifo do autor).
5 Da conclusão
Tal como já explicitado, trata-se de uma tendência natural da legislação atual, em diversos países, realizar a divisão da atividade jurisdicional nas fases pré-processual e processual.
É um movimento histórico que vem ocorrendo, máxime considerando o teor da teoria “Teoria da Dissonância Cognitiva” e do "Efeito Perseverança" / "Princípio da Busca Seletiva de Informações", criados por Leon Festinger e Bernd Schünemann, respectivamente. Ora, é atividade natural e do inconsciente humano realizar preconcepções com base em experiências já vivenciadas, sendo certo que dificilmente o paradigma criado pela pessoa pode ser desconstruído.
Nesse diapasão, se faz necessário que o juiz que atuou na fase investigativa não atue na fase de instrução, porquanto conhece tão somente dos fatos e das provas produzidas pelo lado inquisidor, formando sua convicção inicial e, portanto, um paradigma sem o devido contraditório, o que prejudica sem imparcialidade.
Tanto o é que, a título de exemplo, um dos advogados subscritores do presente atuou em um processo crime no sul de Minas Gerais, no qual o juízo responsável, atuante nas fases pré-processual e processual, indeferiu um pedido de produção de prova pericial porquanto entendeu ser ela desnecessária, ante os veementes indícios da prática do delito.
De se notar que, ante a pré-concepção de mérito já adentrada e formada na mente do magistrado, esse indeferiu a produção de prova e, por conseguinte, mitigou o direito à ampla defesa do acusado. Houvesse a devida separação advinda com a lei 13.964/19, poderia tal fato não ser verificado.
Na esteira do entendimento do ministro Dias Toffoli, a introdução do juiz da garantia veio de modo a primar pela imparcialidade no Judiciário.
Não há falar-se em inconstitucionalidade formal ou material, tendo em vista que, conforme já asseverado pelo Ministro: 1) houve respeito ao processo legislativo; 2) À exceção do parágrafo único do art. 3-D do CPP, as demais normas que tratam sobre o juiz das garantias de natureza unicamente processual geral; 3) A gênese da nova norma eleva o princípio da imparcialidade do juiz no processo penal; 4) não haverá reestruturação do judiciário, mas apenas reorganização da estrutura já existente e capaz de suportar as mudanças trazidas pela nova lei, havendo, inclusive, dados estatísticos nesse sentido; 5) no direito comparado, verifica-se o avanço em outros países trazido pela divisão de atuação dos magistrados no âmbito pré-processual e processual.
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*Gustavo Chalfun é advogado sócio diretor de Chalfun Advogados Associados.
*José Gomes de Oliveira Junior é advogado associado de Chalfun Advogados Associados.