Por ocasião do julgamento dos embargos de declaração opostos em face de decisão proferida nos autos do recurso extraordinário 760.931 (Tema 246 da Repercussão Geral), em 1/8/19, o plenário do STF apresentou uma resposta análoga à dos espartanos ao Rei Felipe, quando ameaçados de invasão e destruição de suas terras: um lacônico “Se”.
Esperava-se que fosse melhor esclarecido o tema relativo ao encargo probatório quanto à comprovação da culpa na eleição e fiscalização da empresa pelo Poder Público, questão esta que ficou à margem da tese, limitando-se esta a sintetizar o entendimento de que é vedada a responsabilização automática da Administração Pública pelos créditos trabalhistas devidos pela empresa contratada.
O acórdão principal – cuja leitura de suas 355 laudas revela a tensão entre visões conflitantes sobre tema que toca centenas de milhares de processos em todo o país – dirigiu-se a um resultado frágil, de uma maioria provisória e apertada de 5 a 4 em favor do desprovimento do recurso da União, julgando que a decisão do TST não negou a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei de Licitações, mas tão-somente entendeu que o ente público não se desincumbiu do ônus de comprovar a adequada fiscalização do contrato junto à terceirizada, ônus que entenderam pertencer ao tomador de serviços. Votaram nesse sentido a Relatora original, min. Rosa Weber, bem como os ministros Fachin, Barroso, Lewandowski e Celso de Mello, tendo os ministros Barroso e Fachin ainda sugerido algumas orientações para casos futuros, como a fiscalização por amostragem e a consignação em juízo, pelo ente público, de créditos da terceirizada que pudessem ser utilizados para amainar os prejuízos dos trabalhadores.
Especificamente no atinente ao encargo probatório, o min. Edson Fachin reportou-se às “premissas fáticas estabelecidas no acórdão recorrido”, abstendo-se de revalorar as provas – postura tradicional dos Tribunais Superiores, pela natureza de instância extraordinária dirigida unicamente pelas questões de direito.1 Já o min. Celso de Mello adotou na íntegra o voto da min. Rosa Weber2 e o min. Luís Roberto Barroso anotou, expressamente, em sintonia com o voto da min. Relatora, que “cabe à Administração Pública comprovar que fiscalizou adequadamente o cumprimento das obrigações trabalhistas pelo contratado”.3 No mesmo sentido foi o voto do min. Ricardo Lewandowski, trazendo à estampa a inversão do ônus da prova imperante no Direito do Consumidor, ao reverberar que “compete à Administração Pública o ônus de provar que houve fiscalização.”4
No entanto, o min. Luiz Fux abriu divergência, observando que a mais recente redação do § 2º do artigo 71 da lei de 8.666/93 (dada pela lei 9.032/95) expressamente ressalvou a possibilidade de condenação do Poder Público pelos encargos previdenciários, de modo que “se quisesse, o legislador teria feito o mesmo em relação aos encargos trabalhistas. Se não o fez, é porque entende que a Administração Pública já afere, no momento da licitação, a aptidão orçamentária e financeira da empresa contratada”.
Entendeu que o silêncio quanto à responsabilidade da Administração Pública no que se refere aos créditos trabalhistas, ao mesmo tempo em que expressa a solidariedade para verbas previdenciárias (fl. 223), indica a opção do legislador para excluir referido encargo. De outra banda, admitiu sua “perplexidade” ante a necessidade de “proteção dos direitos sociais do trabalhador”, mostrando-se favorável às proposições do min. Barroso para, de um lado, não atribuir responsabilidade automática ao ente público, tampouco desproteger o trabalhador, sugerindo, outrossim, que a Administração descreva nos editais seu modo de fiscalização e que, em sendo omissa, inevitável seria a sua responsabilização pela infração ao dever contratualmente imposto (fls. 224 e 225 do acórdão).
O min. Marco Aurélio seguiu a mesma linha de argumentação, adicionando que, considerado o sistema alusivo ao ônus da prova, a exclusão da responsabilidade trabalhista do tomador público no art. 71 levava a uma presunção incompatível com sua imputação do ônus probatório (fl. 234).
Já os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes entenderam que, no caso concreto, seria necessário o provimento do recurso para sinalizar a inviabilidade do reconhecimento de uma presunção linear de culpa, equivalendo a uma negação do art. 71 da Lei de Licitações.5 O min. Toffoli ainda observou que o caso tratava de verbas rescisórias, portanto, ainda mais difícil demonstrar uma fiscalização adequada do tomador.6
Todavia, nem o min. Toffoli, nem o min. Gilmar Mendes afirmaram a imputação do ônus da prova ao autor. Pelo contrário, disse o min. Gilmar Mendes expressamente: “é fundamental que se tenha presente que estamos falando, de fato, de responsabilidade subjetiva com a inversão do ônus da prova, quer dizer, cabe ao poder público contratante fazer a prova de que fez a fiscalização. ... a mim, me parece que se deve dizer quais são, na medida do possível, esses deveres que decorrem da própria legislação, os deveres de fiscalização”.7
No mesmo sentido, o min. Toffoli insistiu que ficasse consignado, ao menos em obiter dictum, que “é muito difícil ao reclamante fazer a prova de que a fiscalização do agente público não se operou, e que essa prova é uma prova da qual cabe à Administração Pública se desincumbir caso ela seja colocada no polo passivo da reclamação trabalhista, porque, muitas vezes, esse dado, o reclamante não tem. ... a Administração Pública, ao ser acionada, tem que trazer aos autos elementos que diligenciou no acompanhamento do contrato.”8
As sessões seguintes contaram com os julgamentos da então Presidente, min. Carmen Lúcia, e do então recém empossado min. Alexandre de Moraes, revertendo o placar para 6 a 5 no sentido de dar provimento ao recurso da União, mas sem significativa alteração quanto à tese, uma vez que também concordando com a possibilidade de responsabilização do tomador público, desde que havendo “prova taxativa no nexo de causalidade entre a conduta da Administração e o dano sofrido pelo trabalhador”.9
É de se destacar que ambos admitem a possibilidade de responsabilização do Estado e que isto dependeria de efetiva demonstração de fatos que indicassem sua culpa e dos quais decorresse o dano ao trabalhador terceirizado. Entretanto, em momento algum afirmaram que esse ônus recairia sobre os ombros do trabalhador hipossuficiente, de maneira a liberar o ente público de promover a juntada de documentos, mesmo porque uma tal assertiva redundaria, em termos práticos, na completa exclusão de sua responsabilidade, contrariando, assim, o próprio núcleo da tese jurídica proclamada, sem falar, ademais, da notória inaptidão probatória do trabalhador para situações desse jaez, beirando a probatio diabolica.
Tal era o quadro quando, ainda permanecendo dúvida em relação à responsabilidade da Administração Pública, pleitearam a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e a Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais, via embargos de declaração, a exclusão do advérbio “automaticamente”, buscando, em absoluto, a impossibilidade de sua condenação subsidiária, retomando-se a máxima de que the king can do no wrong ou le roi ne peut mal faire.
De certo modo, a objeção aviada nesses embargos de declaração tinha como questão de fundo o próprio ônus probatório, já que, se a responsabilidade não é automática, há casos, entretanto, que reclamarão sua condenação, quando inequivocamente presente a culpa in eligendo ou in vigilando. Aliás, essa questão consta dos votos proferidos, como debatido acima, mas eloquentemente excluído da tese, o que corrobora a compreensão de que se trata de obiter dictum., não integrando a ratio decidendi do julgado.
Verdade seja dita: a definição do onus probandi sequer é matéria constitucional, o que, a priori, impediria fosse a questão analisada pelo STF – Corte a quem foi outorgada a missão de conferir unidade ao direito em relação a matéria constitucional.
Ou seja, a questão foi tratada nos votos e na discussão plenária, impulsionando o manejo dos embargos de declaração, ficando vencido o voto do original relator, min. Fux, que pretendia um detalhamento maior para a “tese”. Embora na fundamentação invocasse uma proibição de inversão do ônus probatório ao tomador, isto nem constou da tese proposta (e rejeitada), que apenas vedava a presunção de culpa.10 No entanto, a maioria dos ministros acompanhou o voto do min. Edson Fachin, rejeitando os declaratórios por não haver omissão, obscuridade tampouco contradição no acórdão vergastado.11 Um lacônico Se, digno dos espartanos!
Rejeitados os embargos, resta mantido in totum o acórdão principal, da forma discutida acima. Permanece, então, a tese de que o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da lei 8.666/93.
Entretanto, em caso de culpa inconcussa, traduzida na omissão da Administração Pública em fiscalizar os contratos por ela assumidos, enseja-se a sua responsabilização pelo adimplemento dos créditos trabalhistas. Como bem sumarizado pela min. Carmen Lúcia, “não pode haver o repasse automático dessa responsabilidade. Entretanto, dissemos: quando a Administração Pública não cumprir também o seu dever - porque a Administração não pode ser omissa, não pode ser recalcitrante, não pode ser leve e deixar que o trabalhador é que fique com o ônus -, comprova-se a situação que Vossa Excelência chama de excepcional em que, comprovada essa ausência de atuação obrigatória da Administração Pública, permitir-se-ia, então, que ela respondesse”.12
Não havendo ratio decidendi vinculante quanto à distribuição do ônus probatório em tal questão, incumbirá aos juízes a tarefa de definir a quem se impõe o ônus de demonstrar os fatos conducentes a uma convicção sobre o elemento subjetivo da culpa, o que será feito, entre outros aspectos, pela distribuição do ônus da prova, nada impedindo inclusive a sua inversão, considerado o vetor técnico da aptidão para a prova.
Enfim, eventual responsabilidade do ente público demandará que se fixe conclusão acerca de fatos específicos que demonstrem atuação ou omissão culposa, já que o ponto central do julgado é justamente evitar a atribuição de culpa genérica e linear. E, para tanto, afigurar-se-á legítima a possibilidade de adoção da mesma diretriz protetivo-flexibilizatória prevista inicialmente no direito consumerista (art. 6º, VIII), consagrada no atual CPC (art. 373, § 1º) e agora expressamente contida na CLT, art. 818, §§ 1º e 2º. Tais parágrafos, aliás, propiciam seguro roteiro para que a demonstração especificada da responsabilidade seja trazida para o centro do debate, ou seja, mediante clara delimitação da matéria fática controvertida, imputação fundamentada do ônus probatório e viabilização do adequado contraditório.
Como se percebe, o lacônico se dos embargos de declaração tem uma razão de ser. Se age com culpa, devidamente comprovada, inobstante o processo licitatório que precede a contratação, responderá a Administração Pública, subsidiariamente, pelos créditos trabalhistas devidos. Se não, imune estará. O Se, embora lacônico, já foi suficiente. De resto, quanto ao encargo de demonstração da culpa, o juiz, a quem se dirige diretamente a colheita das provas necessárias ao deslinde da questão, saberá como agir, obedecidas as garantias do devido processo legal e do contraditório.
Esse o caminho trilhado pela Primeira Subseção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho em sede de recurso de embargos, E-RR 925-07.2016.5.05.0281, julgado em 12/12/19, cujo acórdão ainda não havia sido publicado até o fechamento deste ensaio. A importância de tal precedente reside justamente no fato de que o recurso de embargos se destina a uniformizar o dissenso entre as turmas do TST em matéria de dissídios individuais (art. 894 da CLT), decisão que deve ser observada pelas próprias e também pelos juízos inferiores, conforme se depreende do art. 927, V, do CPC, combinado com a interpretação externada pelo TST na IN 39, art. 15, I, “e”. Com efeito, a SBDI-1, em tal importante julgado, decidiu que incumbe à Administração Pública o ônus de provar o cumprimento suficiente de seus deveres de vigilância do cumprimento das obrigações trabalhistas pelas empresas prestadoras de serviços por ela contratadas, a fim de rechaçar a imputação de culpa in vigilando ou in elegendo. Em que pese não publicado o respectivo acórdão, o teor da decisão da SBDI-1 é sintetizado, por exemplo, no seguinte aresto da 8ª Turma do TST:
II - RECURSO DE REVISTA - RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA - ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - TERCEIRIZAÇÃO - SÚMULA Nº 331, ITEM V, DO TST - CULPA DA ADMINISTRAÇÃO - ÔNUS DA PROVA
1. A C. SBDI-1, no julgamento dos TST E-RR 925-07.2016.5.05.0281, e em atenção ao decidido pelo E. Supremo Tribunal Federal (tema nº 246 da repercussão geral), firmou a tese de que, ‘com base no Princípio da Aptidão da Prova, é do ente público o encargo de demonstrar que atendeu às exigências legais de acompanhamento do cumprimento das obrigações trabalhistas pela prestadora de serviços’.
2. O E. Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema nº 246 de Repercussão Geral, não fixou tese sobre a distribuição do ônus da prova pertinente à fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas, matéria de natureza infraconstitucional.
3. Na hipótese, a Corte de origem reputou concretamente caracterizada a conduta culposa do ente público, que não logrou demonstrar a efetiva fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas da prestadora de serviços, encargo que lhe competia, razão por que mantém-se a condenação subsidiária imposta ao Recorrente. Entendimento diverso encontra óbice na Súmula nº 126 do TST. Recurso de Revista não conhecido"
(RR-551-21.2010.5.10.0003, 8ª Turma, Relatora ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 07/01/2020 – grifamos).
Não é tarefa das mais simples, entretanto, a solidificação de uma cultura de coerência e estabilidade jurisprudencial, exortada através do art. 926 do CPC e ainda neófita em nosso sistema jurídico. Mesmo após o recente julgado da SBDI-1, ainda se veem decisões em sentido diametralmente contrário (por exemplo, RR-286600-28.2009.5.12.0014, 4ª Turma, Rel. min. Alexandre Luiz Ramos, DEJT 31/01/2020, expressamente considerando ser do empregado o ônus da prova aqui debatido) ou que, por outros argumentos, chegam a resultados práticos similares (como no RR - 51140-20.2007.5.24.0007, Rel. min. Dora Maria da Costa, 8ª Turma, julgado em 18/12/2019 e publicado em 07/01/2020, onde se entendeu que “foi atribuída responsabilidade subsidiária ao ente público sem nenhuma prova efetiva da conduta culposa capaz de subsidiar a condenação imposta”).
Em breve, saberemos se essas divergências se devem ao caráter recente da uniformização promovida pela SBDI-1 – quiçá não tendo havido tempo hábil para que as turmas se adaptassem ou estando a aguardar a publicação do respectivo acórdão – ou se remanescerá, no particular, abismo entre os entendimentos das turmas do TST, com consequente fragilização do sistema atual de uniformização de jurisprudência.13 Apostamos na primeira hipótese, convictos de que os órgãos fracionários de nossa Corte Superior trabalhista, ao fim e ao cabo, tão logo publicado o acórdão proferido no processo E-RR 925-07.2016.5.05.0281, privilegiarão a missão uniformizadora de seu próprio Tribunal ao aderir ao decidido pela maioria da SBDI-1, encorajando as demais instâncias a seguirem seu exemplo e fortificando nosso novel sistema de precedentes.
1 RE 760931/DF, fl. 179.
2 RE 760931/DF, fl. 248.
3 RE 760931/DF, fl. 208.
4 RE 760931/DF, fl. 228.
5 RE 760931/DF, fls. 249 quanto ao min. Toffoli e 229, 237 e 256 quanto ao min. Gilmar Mendes.
6 RE 760931/DF, fl. 249.
7 RE 760931/DF, fl. 217.
8 RE 760931/DF, fls. 349-350.
9 RE 760931/DF, fls. 314 e 324.
10 RE 760931 ED / DF, fl. 19.
11 RE 760931 ED / DF, fl. 25.
12 RE 760931 ED / DF, fl. 22.
13 Para um questionamento mais detalhado acerca das dificuldades vivenciadas pelo TST para o cumprimento de sua missão uniformizadora após as alterações promovidas pela Lei 13.467/17, vide: PRITSCH, Cesar Zucatti. A “transcendência” coloca em risco a função uniformizadora do TST?Revista de Direito do Trabalho – RDT, Editora RT, vol. 209/2020, janeiro de 2020, p. 39-75.
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*Cesar Zucatti Pritsch é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), juiz do trabalho pelo TRT da 4ª Região, conselheiro da Escola Judicial e Membro da respectiva Comissão de Jurisprudência.
*Fernanda Antunes Marques Junqueira é doutoranda e em Direito e Processo do Trabalho pela USP, Mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela UFMG, e Juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.
*Ney Maranhão é doutor em Direito do Trabalho pela USP, professor adjunto da Universidade Federal do Pará e juiz do trabalho pelo TRT da 8ª Região, eleito para a Cadeira 30 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.