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A recomendação 1/20 da Corregedoria Nacional do Ministério Público e os conceitos de ‘liberdade política’ e ‘independência’ da teoria de organização dos poderes de Montesquieu

Quanto à recomendação da Corregedoria Nacional do MP, trata-se de uma medida digna de elogios, que vai ao encontro da “liberdade política”; porém, ao mesmo tempo, a realidade que se revela a partir da sua edição não deixa de ser assustadora e preocupante.

4/2/2020

Ao examinar as bases sobres as quais foi estabelecida a organização de poderes de Montesquieu, bem como a estruturação que foi engendrada para a contenção do exercício do poder, encontramos dois conceitos fundamentais: ‘independência’ e ‘liberdade política’. 

Analisando ‘as leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição’, no Livro Décimo Primeiro de O Espírito das Leis, Montesquieu apresenta o modo como se atinge (ou se forma) a liberdade política na constituição do Estado; ou, em outras palavras, a regulamentação heterônoma que é capaz de alcançar a ‘liberdade política’ na formação do Estado.

O objetivo teórico é o de estruturar uma distribuição dos poderes capaz de formar a liberdade política; mas qual o conceito de liberdade? O conceito de liberdade de Montesquieu está conectado a um ‘dever’ normativo: “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que eles proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder”.

Ao delimitar o seu conceito de liberdade, Montesquieu afirma que em um Estado, isto é, uma sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar (MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 179).

Essa noção de liberdade é deontológica, o que significa que ser livre não é o mesmo que ser independente de deveres e de obrigações; a liberdade só é encontrada e praticada quando é delimitada pelo “deve ser”. Por isso, Montesquieu afirma que liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.

Independência, por outro lado, é a conformação das coisas segundo as próprias inclinações dos indivíduos, os quais fazem tudo o que desejam. Ocorre que se um cidadão pode fazer tudo o que tem inclinação para fazer, independentemente de haver conformação deontológica, não haverá liberdade, porque os outros também teriam o mesmo poder.

A liberdade política é encontrada em um agir regrado, no sentido de respeitar limites estabelecidos de modo heterônomo. Ou seja, não é o indivíduo que estabelece os seus próprios limites, mas as limitações lhe são sobrepostas. 

Acaso caiba ao próprio cidadão firmar os seus próprios limites, o que se tem (na terminologia usada por Montesquieu) é a independência. O agir independente não se encontra dentro de uma realidade deontológica; os limites poderão ser definidos por cada um e o resultado disso é a opressão de todos.

Essa análise da liberdade em face da independência, sob a ótica do agir individual, será feita de modo institucional: Montesquieu irá transpor esses conceitos para o palco do exercício constitucional dos poderes do Estado. Contudo, a base de toda construção é essa: a liberdade é de exercício regrado; para que os poderes do Estado sejam livres, devem limitar-se. 

Se o poder não encontra limites, ele será independente e nesse Estado não se encontrará a liberdade política. Então, Montesquieu aplica tais conceitos à realidade então existente em dois países, a Polônia e a Inglaterra. 

Na Polônia, o objetivo específico era a independência de cada indivíduo; a Inglaterra, por sua vez, é apresentada como tendo por objetivo de sua constituição a liberdade política. 

A independência de cada indivíduo, como objetivo estatal, resultará na opressão de todos; na medida em que cada um se comporta conforme entende adequado aos seus costumes ou suas inclinações, não se submetendo à limitações recíprocas heterônomas, haverá uma comunhão de poderes: todos podem fazer tudo, sem qualquer limitação sobreposta. Na estruturação do Estado, isso representaria a completa confusão funcional: a inexistência de linhas de divisão entre as atribuições de cada poder implicaria no exercício simultâneo de funções por um mesmo poder. Ou, ainda, vários poderes exercendo, concomitantemente e de modo indiscriminado, todas as funções do Estado.

Um Estado com poderes independentes não seria livre, mas escravo das vontades corporativas, as quais se exercem sem qualquer limite e com confusão de papeis – aqui, destaco, que o conceito de “independente” em Montesquieu não possui o mesmo significado que o termo assume hoje na CF/1988.

No dia 20 de janeiro de 2020, a Corregedoria Nacional do Ministério Público expediu a recomendação 1/20, na qual recomenda, “a todos os órgãos que compõem o Ministério Público brasileiro que se abstenham de praticar atos sujeitos à reserva de jurisdição, ainda que verificada a aquiescência judicial”.

Na exposição de motivos de referida recomendação há a informação de que “determinados membros do Ministério Público brasileiro praticaram atos privativos de autoridade judicial, inclusive contando com a aquiescência destas”.

Quando se tem a notícia de que membros do ministério público praticam atos privativos de autoridade judicial, com a concordância do próprio judiciário, é inevitável a reflexão e rememoração das lições de Montesquieu: estamos em um contexto de “independência” ou de “liberdade política”?

Não se sabe a exata medida do estrago: se está no fato de um órgão autônomo exercer papeis jurisdicionais, ou se reside na ‘renúncia’, ainda que por livre anuência, de competência jurisdicional, por parte do judiciário. 

“Independência” é um conceito de exercício arbitrário do poder, onde este não encontra limites. Já a “liberdade política” somente é encontrada em governos que, além de serem moderados, exercitem o poder de modo a limitar o próprio poder.

Evidentemente, a estrutura montada por Montesquieu é bastante diversa e peculiar, se comparamos com o nosso sistema atual. Possuímos um poder de julgar que não se restringe a decidir somente casos civis individuais e julgamento de crimes, mas que também se envolve com a produção normativa e execução de políticas públicas, na medida em que exerce o controle de constitucionalidade e que julga demandas relacionadas à deficiente prestação de serviços públicos por parte do executivo.

Contudo, muito embora, com uma conformação de poderes estruturada de modo diverso, a base teórica de Montesquieu, no nosso sentir, segue perfeitamente aplicável.

É necessário que judiciário, legislativo e executivo, bem como todos os chamados “órgãos autônomos”, caminhem em um exercício de poder limitado aos exatos termos constitucionais.

O percurso que deve ser almejado é o do encontro da liberdade política, e não o da independência. Independente será sempre o exercício do poder que só encontra ‘limites’ nas suas próprias convicções ou anseios de agir; ocorre que não há liberdade quando a conduta institucional do Estado é conformada por aquilo que um determinado órgão autônomo ou poder acha que é correto.

É preciso, portanto, que o Estado se reencontre com os termos constitucionais do exercício do poder, de modo que os poderes possam agir livremente, dentro dos quadrantes já estabelecidos pela Constituição Federal.

Quanto à recomendação da Corregedoria Nacional do MP, trata-se de uma medida digna de elogios, que vai ao encontro da “liberdade política”; porém, ao mesmo tempo, a realidade que se revela a partir da sua edição não deixa de ser assustadora e preocupante.

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*Renato Cesar Guedes Grilo é procurador da Fazenda Nacional. Assessor de ministro do STJ. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Pós-graduado em Direito Constitucional e em Direito Tributário.

 

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