No art. 131 de seu Código Civil, a Espanha reconhece como princípio geral do Direito o dever de interpretar a regra segundo a realidade social do momento. Isso, penso, encaixase perfeitamente nos moldes tridimensionais do professor Miguel Reale. A adaptação da regra ao mundo se deixa conduzir pela hierarquia do momento, tal qual um cavalo guiado pelos cocheiro ao longo de uma estrada irregular. O cocheiro é o valor, o cavalo é a norma, a estrada é o fato.
A tendência do Direito europeu tem se movido para a direção da melhor tutela dos direitos e interesses dos chamados contratantes débeis e dos credores em geral. Nesse contexto uma questão tem reclamado um préstimo especial: o conceito de solidariedade. Aos olhos deste autor as necessidades do momento parecem pedir uma mudança na antiga presunção da solidariedade. Ou melhor: na antiga impossibilidade de presumi-la.
Com a finalidade de proteger direitos e interesses dos credores, é perfeitamente razoável pensar na solidariedade dos devedores de alguma obrigação específica, sempre que possível e necessário. Valendo para o mais, também há de valer para o menos. Se cabe falar de solidariedade entre devedores de obrigações, contratuais ou não, em termos de responsabilidade civil, também se pode fazê-lo naquilo que a relaciona a outras questões.
Uma delas, muito própria do Direito Civil brasileiro e com reflexo imediato nos Direitos do Seguro e do Transporte: a carta-protesto (ou protesto do recebedor) do art. 754 do Código Civil. Deve ela obedecer à lógica jurídica da solidariedade, estendendo a serventia do protesto emitido contra um ator da cadeia de transportes a todos os outros.
Faz tempo que advogamos por esse entendimento, agora robustecido pelo Direito Comparado e o recente círculo de estudos de Derecho del Seguro e de Contratos y Danõs na prestigiada Universidade de Salamanca.
Claro, o ideal é que as cartas sejam emitidas contra todos os protagonistas da operação de transporte de carga. Mas nem sempre isso acontece. Nem sempre a Law in Books se materializa na Law in Action.
Não raras vezes nos deparamos com aquela distância assustadora entre o mundo das ideias e o mundo dos contratos, não sendo nenhuma má-ideia buscar importar, para encurtála, uma experiência estrangeira, uma adaptação de fontes externas, temperada embora pela segurança. Os princípios contratuais e de responsabilidade civil da Europa e da América Latina podem ser muito bem aplicados no país, ainda que por comparação.
Realidades distintas justificam, legal e moralmente, aplicações também distintas do Direito. O Direito Comparado age como instrumento valioso nesse sentido, ainda que por contraste e negação.
Tome-se por exemplo a limitação de responsabilidade no transporte marítimo internacional de cargas.
Sedes de armadores e clubes de proteção e indenização poderosos, os países da América do Norte, da Europa Ocidental e da Ásia desenvolvida têm grandes frotas de navios mercantes. Movimentam um volume de negócios, para todos os efeitos, espetacular. Logo, é bem compreensível o apego que demonstram às Convenções Internacionais de Direito Marítimo no ponto em que dispõem sobre limitação de responsabilidade dos transportadores, protegendo-os, de certa forma, contra as consequências dos danos que eles próprios causaram.
Felizmente, o Brasil não faz parte desse grupo seleto. É país em desenvolvimento, fundamentalmente cargo, ou seja, exportador e importador de bens, cargas, carente de armadores e afins. Afinal, por que haveria de presentear com mecanismos normativos ou contratuais de limitação de suas responsabilidades os transportadores marítimos que causam ilícitos?
Motivo razoável não há. Tanto é que o Brasil jamais incorporou a seu ordenamento jurídico qualquer convenção dessa natureza.
A realidade do Brasil, no transporte internacional de carga, exige dos transportadores a resposta integral aos prejuízos a que deram causa, em razão do princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 754 do Código Civil e a própria Constituição Federal, no rol do art. 5º.
A isso tudo, solidariedade, elasticidade na interpretação do art. 754 do Código Civil e aplicação do princípio da reparação civil integral no Direito dos Transportes, soma-se o valor da ordem Moral.
A palavra “Moral” não está aqui como elemento retórico, figura de linguagem ou adereço de virtude. Concedo-lhe o peso de lei, como faz a Espanha, por exemplo, onde a Moral se reveste do mesmo status de regra constitucional fundamental. O conjunto de condições éticas não pode deixar de ser considerado pelo Direito no caso concreto.
A moralidade nos ajuda muito bem a responder algumas perguntas.
Em uma sociedade marcada pelos riscos e pelos danos, será possível aceitar a limitação de responsabilidade dos danadores, autores da danos contratuais ou extracontratuais? Será tolerável que um navio de carga, guiado por alta tecnologia, cercado de todos os elementos de segurança, fonte potencial de riscos e danos que movimenta milhões de euros em cargas, não responda integralmente pelos prejuízos, não raro também milionários, a que der causa? Diante do cenário jurídico em que se busca proteger credores e se fala em solidariedade até mesmo por derivação, será de boa ordem altercar-se contra os efeitos da carta-protesto lançada contra um dos participantes, evitando sem mais nem menos que os produza também contra todos os membros da cadeia transportadora?
As respostas nos parecem suficientemente claras. Mas fica o convite a uma reflexão profunda sobre o assunto. O contínuo avanço do Direito no mundo tem de ecoar no Brasil com urgência, sobretudo nos temas envolvendo contratos e responsabilidade civil.
Fica um outro exemplo, vindo diretamente do reino espanhol: costumava haver antigamente alguma diferença entre falta e ato ilícito. Hoje não. O sistema legal mudou, e a todo e qualquer dano recai, com a imutabilidade do hábito, o estigma rutilante dos atos ilícitos.
O navio que avaria uma carga sob sua custódia ou derrama óleo no mar, em ambos os casos, pratica ato ilícito. A diferença não está na ilicitude literal e imediata das condutas, mas nos desdobramentos e consequências. Não será preciso apurar as particularidades das condutas, pois o simples fato manejo dos riscos obriga o armador à reparação objetiva e integral dos prejuízos, contratuais ou extracontratuais.
Daí a importância de se pensar na solidariedade. Ela vai muito além daquela prevista na maior parte das legislações consumeristas da Europa e das Américas, espalhando-se pelo Direito como um todo, especialmente no segmento mais contemporâneo da responsabilidade civil, o Derecho de Daños. Própria ou imprópria, a solidariedade se impõe e se revela importante ferramental de promoção de justiça, de tutela ao contratante débil ou ao credor.
Em alguns casos saudavelmente substituída pela subsidiariedade, quando não é direta, a solidariedade é ao menos derivativa, desenhada dentro do contexto lógico, muito bem fundamentado por princípios fundamentais como proporcionalidade, razoabilidade, equidade, isonomia, boa-fé, lealdade, não surpresa, dignidade, reparação integral, entre outros.
Claro que não podem faltar critérios objetivos para configurá-la. E não faltam. São eles: 1) pluralidade de sujeitos (ainda que conhecidos a posteriori); 2) uma mesma prestação; 3) duplicidade de relações jurídicas; e 4) causa comum obrigacional.
Não é preciso um aprofundamento muito grande no Direito Contratual para notar que a maior parte dos casos de responsabilidade civil envolvendo contratos se ajusta a esses pressupostos.
Com a devida vênia para particularizar mais uma vez o assunto, que é geral, e o tratar sob a perspectiva do Direito Marítimo, interessante observar que a nova mentalidade do Direito, especialmente vivida na Europa, o celeiro eterno do pensamento ocidental, autoriza a imputação de solidariedade entre o P&I Club (o clube de proteção e indenização) e o armador, de tal modo que responda pelos danos e prejuízos causados por este. Não pode o bizantinismo jurídico se sobrepor jamais à busca incessante por Justiça. Nem servir de escudo para a indignidade. Uma coisa é certa: o causador do dano não pode ficar sem responder pela integralidade do prejuízo.
Mesmo que não exista mais de um ator na obrigação de transporte, ao menos haverá o clube de proteção e indenização como devedor solidário (no mínimo, subsidiário) do armador. Nisso se pode perfeitamente invocar o Recht, o Direito alemão, para a defesa do princípio das obrigações de mão comum. Isto é, para seguir e cumprir com a obrigação todos os devedores devem atuar conjuntamente.
E não é exatamente o que faz um clube de proteção e indenização quando um sinistro marítimo ocorre, e ele acode ao socorro do associado? Se o faz, por qual motivo não pode responder solidariamente pelos prejuízos derivados da responsabilidade direta desse armador? Não haveria aí o conceito de obrigação de mão comum?
E existindo um princípio chamado de obrigações de mão comum, que impõe um agir conjunto aos devedores todos de uma prestação, por que não pode o legítimo interessado, em transporte de carga, cumprir a regra do art. 754 apenas contra um dos participantes da cadeia de transporte, tendo-se por cumprido contra todos o seu dever legal de protestar? Se mesmo nos casos de danos extracontratuais já se pensa com tamanha envergadura, por que não fazer sempre o mesmo com os contratuais?
Em 2010 a regra civil espanhola mudou ao sabor de jurisprudência que se consolidava ao longo dos tempos, nascida nos idos dos anos 60 do século passado. Hoje, se dois aviões se batem no espaço, os danos causados a terceiros imputam-se aos transportadores e/ou donos de ambos, pouco importando apurar o causador efetivo. Essa solidariedade se presentifica sem muita dificuldade, porque o objetivo maior não é o escrutínio de esquemas jurídicos, mas a proteção das vítimas.
Por isso a solidariedade passa a ser a regra geral na maior parte dos casos de responsabilidade civil, especialmente os que tratam de delitos contratuais.
Quando sob o império da ordem moral e de princípios poderosos, como os da solidariedade, reparação civil integral, dignidade, razoabilidade, a prosperidade reserva à Justiça chances muito maiores. E a paz social fica garantida.
Por fim, considerando o interesse dessa breve abordagem nos temas de Direito do Seguro, não é demais lembrar que tudo o que vale para beneficiar corretamente a vítima direta do dano, vale para o segurador sub-rogado.
Não só porque se trata de desdobramento regular da sub-rogação ou porque o segurador se torna também a parte débil da relação jurídica, ainda que não contratante, mas porque por trás de sua busca por ressarcimento existe o poderoso princípio do mutualismo, que leva ao colégio de segurados um grande interesse no reembolso, e à própria sociedade, eis que poucos negócios jurídicos tão bem se ajustam ao conceito de função social como o seguro.
O fim faz eco ao começo e o justifica: tudo há de ser feito no Direito atual para defender a parte débil da relação jurídica, a vítima do dano e o credor, contra aquele a quem deve recair, se preciso, com o perecimento do mundo, todo o peso e a justiça da punição.
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