Considerados pela doutrina como “direitos de segunda geração”, os direitos sociais possuem grande relevância na sociedade, sendo denominados como Direitos Fundamentais pelo Constituinte (CRFB/88).
“CRFB/88 - TÍTULO II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – CAPÍTULO II – DOS DIREITOS SOCIAIS: .... Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Sem adentrar na discussão das características do Estado Moderno (social, bem-estar, liberal, fato é que, a educação, na maior parte do mundo, sempre esteve atrelada a ideia de prestação obrigatória por parte do Poder Público, sendo tratado, como visto, um direito básico do cidadão.1
E assim considerado (como um direito fundamental e básico de todo o cidadão) a educação atrai uma atenção especial do Poder Público que é obrigado a não somente colocá-la a disposição de todos, mas também dar a estes uma educação de qualidade.
Considerado inúmeros fatores e ausência de efetivas políticas públicas durante anos, o que se vê há muito tempo é uma população carente do referido direito.
Diante desse quadro optou-se por permitir a exploração da atividade educacional ao setor privado, cabendo a este complementar o sistema, mediante uma atividade remunerada, com ou sem finalidade lucrativa dos sócios, de acordo com a sua forma de constituição.
Nesse sentido dispõe a lei 9.394/96 (Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional):
“Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino; II - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público; III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal.”
Certo é que, optando por criar uma Instituição de Ensino com fins lucrativos, o empresário acaba por adquirir, também, inúmeros deveres, não somente de ordem pedagógica, mas de ordem financeira.
Dentre as obrigações financeiras podemos mencionar todas as despesas decorrentes da atividade econômica escolhida, tais como pagamento de funcionários e professores, limpeza, segurança, despesas de local (muitas vezes o aluguel), luz, água, dentre outros.
E ainda o dever fiscal com a incidência de inúmeros tributos sobre sua atividade, sem qualquer tipo de benefício (salvo, as sem fins lucrativos), o que na maioria das vezes corresponde a mais de 30 % da sua receita bruta.
Da criação da limitação indevida na atividade econômica:
A lei que rege a atividade educacional, lei 9.394/96 não destacava qualquer norma que exigisse das Instituições de Ensino Privadas o dever de manter o aluno inadimplente, sem a possibilidade de desligamento.
No entanto, no dia 22 de outubro de 1999, o Governo Federal, presidido pelo exmo. sr. Fernando Henrique Cardoso, editou a MP 1890-67, tratando do que denominou de “Norma que dispõe sobre o valor total anual das mensalidades escolares e outras providências”, sem fazer qualquer menção ao desligamento por inadimplência.
Esta MP 1890-67 foi convertida na lei 9870/99 de 23 de novembro de 1999, ocasião em que foi acrescentada a norma do art. 6º, que dispunha:
“Art. 6º: São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento, sujeitando-se o contratante, no que couber, às sanções legais e administrativas, compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com os arts. 177 e 1.092 do Código Civil Brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.”
Nota-se que, ainda poderia se pensar em discutir a questão (desligamento por desligamento).
Ocorre que, 6 (seis) dias após a vigência da lei 9870/99, no dia 29 de novembro de 1999, o Governo FHC resolveu editar a MP 1930, que passou a prever o § 1º, no artigo 6º, da lei, deixando claro que o desligamento somente poderia ocorrer ao final do ano letivo, transferindo ao particular a obrigação de manter uma atividade econômica, ainda que com prejuízo e alto grau de inadimplemento.
“Art. 2º O art. 6º da lei 9.870, de 1999, passa a vigorar acrescido do seguinte § 1o, renumerando-se os atuais §§ 1o, 2o e 3o para §§ 2o, 3o e 4o:
§ 1º O desligamento do aluno por inadimplência somente poderá ocorrer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral."
Essa medida provisória foi reeditada inúmeras vezes, sem nunca ter sido apreciada pelo Congresso Nacional, até a edição em 2001, da MP 2173 (23 de agosto de 2001), que por força da emenda constitucional 32 possui eficácia até os dias atuais.2
Veja que o Estado, através do seu Legislador impôs, através de uma injusta intervenção na atividade econômica, uma obrigação insustentável ao particular, sem mesmo oferecer uma contrapartida, causando um estrago na prestação do serviço.
“o exame das disposições consagradas no título da ordem econômica nos indica a opção do constituinte por um modelo capitalista de produção, onde os agentes econômicos disputam livremente em uma economia de mercado. Mas, ultrapassada a concepção estritamente liberal de Estado, o capitalismo, hodiernamente tem sido matizado por variados graus de intervencionismo estatal.”3
O STF vem afastando a ideia de intervenção, como no julgamento recente na limitação á liberdade econômica, exigindo a proporcionalidade na justificação regulatória.4
Da urgente necessidade de mudança:
Considerando a impossibilidade do desligamento decorrente da inadimplência o empresário do ramo educacional vive em um ambiente injusto, incerto e cruel sem saber o que irá arrecadar durante o ano, gerando um enorme problema orçamentário e de planejamento que resulta na ausência de grandes investimentos e evolução no sistema de educação e que afeta a qualidade da prestação do serviço.
Não por outros motivos algumas Instituições acabam por optar por modificar seu objeto social e sua constituição societária, a fim de evitar a descontinuidade de sua atividade tão relevante e louvável.
Hoje, infelizmente, o que se vê na prática é a total falta de respeito com o empresário que busca de forma incessante uma forma de conseguir obter o pagamento do valor das mensalidades para sustento do seu negócio, possuindo muita inadimplência.
Passou-se a crer que a Instituição de Ensino deixou de ser prioridade aos responsáveis, pois podem se servir do pagamento da matrícula e não mais pagar qualquer mensalidade até o final do ano letivo.
O que costuma ocorrer é um desgaste ainda maior, pois inúmeras tentativas de cobrança caem em vão até a entrega do caso ao Poder Judiciário (com alto custo de ingresso) e que não vem a ser garantia de recebimento pela fragilidade do sistema.
Ressalte-se que o que se pretende é a busca ao adimplemento daqueles que se utilizam da falha no sistema para obtenção de vantagem, e não “perseguir” o responsável que arca com suas obrigações com “bastante suor” e que, por problemas da vida, não consegue adimplir suas obrigações.
A falta de uma prestação de serviço de qualidade pelo Poder Pública obriga o cidadão a buscar um ensino de qualidade no setor privado e ter que pagar com bastante sacrifício, na maioria das vezes, uma educação de qualidade para seu filho.
Neste caso, o empresário que se atreveu a ajudar o Estado nesta finalidade acaba por ser considerado como “insensível” quando busca sua contraprestação devida e que será revertida, em sua maior parte, em prol da própria Instituição e dos alunos.
Permitir a frequência de um aluno cujo responsável está inadimplente por mais de 60 dias, sem qualquer justificativa é agir com injustiça com aqueles que fazem de tudo para manter a adimplência.
Conclusão:
Qualquer norma que imponha ao particular a obrigação de garantir a prestação de um serviço, ainda que o usuário esteja inadimplente, acaba por violar os princípios básicos da livre iniciativa e atividade econômica.
O Estado, como devedor principal da obrigação de prestação de serviço educacional, claramente considerado incapaz de fornecê-lo e que conta com a ajuda de particulares, não pode impor obrigações que importem em prejuízo no exercício da atividade e afetem a qualidade.
O mínimo que se espera do Estado é que se garanta ao particular a possibilidade de prestar o serviço (essencial e fundamental) sem qualquer interferência econômica, limitando-se apenas, e com cautela, às interferências pedagógicas.
De lege ferenda poderia começar a se pensar em alternativas, com a criação de grupos e sindicatos visando à solução do problema, em prol da manutenção do sistema, não obstante considere como sendo já possível, como medida imediata, o ingresso no STF para suspensão da norma que ofende a livre inciativa e a liberdade econômica, bem como proposituras de ações contra o Estado visando o ressarcimento decorrente de perdas e danos de sua conduta.
Algumas alternativas como opção ao legislador:
1) Alterar a Legislação para permitir o desligamento do aluno em decorrência da inadimplência do responsável financeiro por 60 dias, alterando a lei 9870/99. (nesse caso específico, em decorrência de MP não analisada pelo Congresso e que sustenta a norma, impor esta obrigação á referida Casa Legislativa, buscando o diálogo com Deputados e Senadores). 5
2) Permitir que a Instituição de Ensino (em caso de não desligamento) possa reaver do Estado uma compensação financeira.
3) Permitir que a Instituição de Ensino tenha algum subsídio ou desconto em alguma tarifa ou tributo, comprovado o inadimplemento e nos mesmos valores, na modalidade de compensação.
4) Incluir uma exceção ao Bem de Família e possibilitar a execução dos valores atingindo o bem, assim como a do fiador no contrato de locação.
5) Discutir com o mercado de seguro alternativas para evitar o prejuízo permitindo a inclusão de valor (prêmio) na mensalidade, ou ainda, um seguro do próprio responsável.
6) Implementação de Normas que Possibilitem a Execução.
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1 “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” – CRFB/88.
2 “Emenda Constitucional 32: ... Art. 2º As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional. Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 11 de setembro de 2001.”
3 “Direito Econômico, Editora Fórum Jurídico, Lafayete Josué Petter. Pág. 96.
4 “... A liberdade de iniciativa garantida pelos artigos 1º, IV, e 170 da Constituição brasileira consubstancia cláusula de proteção destacada no ordenamento pátrio como fundamento da República e é característica de seleto grupo das Constituições ao redor do mundo, por isso que não pode ser amesquinhada para afastar ou restringir injustificadamente o controle judicial de atos normativos que afrontem liberdades econômicas básicas. (...) O sistema constitucional de proteção de liberdades goza de prevalência prima facie, devendo eventuais restrições ser informadas por um parâmetro constitucionalmente legítimo e adequar-se ao teste da proporcionalidade, exigindo-se ônus de justificação regulatória baseado em elementos empíricos que demonstrem o atendimento dos requisitos para a intervenção. (...) A captura regulatória, uma vez evidenciada, legitima o Judiciário a rever a medida suspeita, como instituição estruturada para decidir com independência em relação a pressões políticas, a fim de evitar que a democracia se torne um regime serviente a privilégios de grupos organizados, restando incólume a Separação dos Poderes ante a atuação dos freios e contrapesos para anular atos arbitrários do Executivo e do Legislativo. A Constituição impõe ao regulador, mesmo na tarefa de ordenação das cidades, a opção pela medida que não exerça restrições injustificáveis às liberdades fundamentais de iniciativa e de exercício profissional (art. 1º, IV, e 170; art. 5º, XIII, CRFB. ADPF 449, rel. min. Luiz Fux, j. 8-5-2019, P, DJE de 2-9-2019.]
5 No ano de 1999, um Projeto de Lei (nº 6.124-A) foi rejeitado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e previa a retirada da impossibilidade de desligamento do aluno inadimplente, de autoria do Exmo Dr Deputado Federal Clóvis Flecury, do Maranhão, sob a alegação de que a inadimplência não era tão significativa a tal ponto.
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*Sérgio Antunes Lima Junior é advogado e mestre em Direito.