Em consulta ao excelente site do Superior Tribunal de Justiça não será difícil encontrar, seja em julgamento monocrático, seja colegiado, decisões que têm em comum o reconhecimento de que um dos requisitos para a concessão das medidas coercitivas atípicas no procedimento comum da execução para pagamento de quantia contra devedor solvente é a subsidiariedade.
Isso implica reconhecer que tais medidas (atípicas) só poderiam brotar no procedimento executivo como reforço, retaguarda, auxílio, e, por isso mesmo, secundariamente à utilização dos meios executivos típicos (coercitivos ou sub-rogatórios) previstos pelo legislador para esta modalidade de execução, seja no cumprimento de sentença, seja no processo de execução. Não é a opção exegética que defendemos, mas é uma opção legitima e talvez seja adotada pelo STJ pela necessidade de se estabelecer certo freio no uso desmedido e excessivo do art. 139, IV do CPC.
O que se observa nesta linha de interpretação é que primeiro deve-se “gastar” os meios executivos típicos e depois, se eles forem ineficientes, aí sim lançar mão da criatividade permitida pelo artigo 139, IV do CPC segundo os critérios da proporcionalidade e razoabilidade (necessidade, adequação e finalidade) previstos no dispositivo.
Embora não exista uma prateleira finita de medidas coercitivas atípicas, já nos acostumamos a ver, repetidamente, o deferimento da apreensão do passaporte e da CNH como exemplos que, paradoxalmente, as tipificam. Daqui a pouco se tem um padrão de medidas atípicas indo de encontro a intenção do artigo 139, IV de dar ao magistrado a criatividade, com responsabilidade, para encontrar o meio atípico que seja adequado, necessário e atenda a finalidade desejada. A repetição destas medidas atípicas mostra, no mínimo, uma falta de inspiração na sua utilização.
A nossa intenção neste diálogo é trazer à reflexão apenas a questão da subsidiariedade da utilização do artigo 139, IV do CPC no procedimento executivo comum para pagamento de quantia contra devedor solvente.
Não se tem questionamentos, pela redação do artigo 139, IV do CPC, que tais medidas podem ser concedidas neste tipo de procedimento, afinal de contas é claríssimo o texto normativo, ainda que a expressão tutela pecuniária seja vista com certa atecnia.
A dúvida que já foi levantada, e, ao que parece vem sendo dirimida pelo STJ, consiste em saber se o juiz deve, em primeiro lugar, adotar as medidas executivas típicas (previstas no procedimento legislado) e apenas no caso de estas serem infrutíferas, aí sim lançar mão das medidas atípicas descritas no artigo 139, IV do CPC.
Enfim, trocando em miúdos, poderia já iniciar o procedimento executivo para pagamento de quantia lançando mão de medidas atípicas, ou seja, afastar os meios típicos (penhora, avaliação, etc.) e valer-se dos meios atípicos?
Respondendo a esta indagação de forma negativa o STJ tem compreendido que a subsidiariedade é um dos requisitos para a concessão das medidas atípicas, ou seja, primeiro privilegia-se a utilização dos meios típicos, e, não sendo eficazes, lança-se mão dos meios atípicos, e, inclusive, obviamente, os coercitivos.
Conquanto o artigo 139, IV esteja na parte geral do Código e assim projete-se naturalmente sobre todo o restante, e, ainda que tal dispositivo seja visto como uma cláusula geral da execução civil, tem-se buscado uma interpretação mais comedida da sua utilização. Argumenta-se – em favor da subsidiariedade – de que não teria sentido o legislador ter estabelecido um procedimento com meios típicos e específicos para a execução por expropriação contra devedor solvente para dele prefacialmente prescindir em favor de uma cláusula geral de atipicidade.
A questão da subsidiariedade dos meios atípicos em relação aos meios típicos traz consigo um outro problema, que intitula o nosso diálogo, que consiste em saber exatamente quando se dá o gatilho para que os meios atípicos sejam utilizados.
Observe bem que não é apenas a frustração do meio típico que desencadeia o meio atípico, ou seja, não basta apenas a penhora de bens do executado ser infrutífera para que inexoravelmente destrave a concessão de medidas atípicas. É preciso um “plus” e aqui mora o “nó do problema”.
A perspectiva com que se vê o problema é muito importante e interessante, pois, (guarde bem isso) independentemente do meio executivo ser típico ou atípico, toda execução por quantia pretende expropriar patrimônio do executado e transferi-lo para o exequente, de forma que sem patrimônio não há execução frutífera, tanto que ficará suspensa até que um dia seja decretada a prescrição ou, quiçá, caso se anime o exequente, transformá-la em procedimento de insolvência civil.
Enfim, não será o meio típico ou atípico que irá, como num passe de mágica, transformar um executado sem patrimônio num executado com patrimônio. O patrimônio do executado é que responde pela execução. Sem patrimônio não há o que fazer. O meio executivo, típico ou atípico, é apenas uma técnica processual instrumental ou final para se chegar à satisfação do crédito exequendo.
Dito isso, certamente que se foi infrutífera uma penhora porque o executado alega não possuir patrimônio sujeitável à execução e todas as buscas do credor revelaram que ele nada possuía em seu nome, então, torna-se inevitável o questionamento: por que, por exemplo, uma apreensão de CNH ou uma retenção de passaporte (medidas coercitivas atípicas) poderiam servir subsidiariamente para obter o êxito inalcançado pela penhora?
Ora, eis aí a chave para entender que da forma como se vem pensando a subsidiariedade das medidas atípicas em relação às típicas.
É preciso que, uma vez infrutífero (inefetivo) o meio típico previsto no procedimento executivo legislado, existam ao menos indícios de que o executado esteja ocultando patrimônio que deveria sujeitar-se à execução para pagamento de quantia.
Neste diapasão, é curioso observar, e refletir, que o mesmo gatilho faz disparar a adoção das medidas atípicas é também o que reconhece, ainda que preliminarmente, a existência de um comportamento processual ímprobo por parte do executado, seguindo os ditames do artigo 774 do CPC. Indo direto ao ponto, diz o referido artigo que “Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que: I - frauda a execução; II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; III - dificulta ou embaraça a realização da penhora; IV - resiste injustificadamente às ordens judiciais; V - intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus”. Não é preciso muito esforço para notar que se pode “fechar os olhos e escolher aleatoriamente” qual inciso aplicar ao caso concreto para aquele executado que que oculta o patrimônio para esquivar-se da sua responsabilidade patrimonial. E nem precisamos nos valer dos princípios da boa-fé e cooperação para reconhecer como improbidade processual a conduta do executado que oculta o patrimônio para à tal responsabilidade.
É justamente a combinação do binômio inefetividade da medida típica + “suspeita” de que exista patrimônio escondido que faz com que se abram as portas para as medidas executivas atípicas. Estes seriam os requisitos para configurar a “subsidiariedade” do artigo 139, IV na execução de prestação pecuniária.
Contudo, esta situação é, perceba-se, o ponto de partida de dois caminhos distintos. Primeiro, porque destrava a possibilidade de concessão – não de ofício - de medidas atípicas e, segundo, é também o que dá o pontapé para que tenha início – este sim de ofício - do procedimento para sanção processual por ato atentatório à dignidade da justiça.
Este aspecto é que faz emergir o sério problema de que tais métodos atípicos, em especial os de coerção como apreensão do passaporte e da CNH, sejam muitas vezes confundidos e misturados com medidas punitivas de atos de improbidade processual, que, de maneira nenhuma pode seguir o regime jurídico da atipicidade.
Diante deste imbróglio, e, caso se adote a subsidiariedade como gatilho como tem sido comumente adotado, é preciso que se separe o joio do trigo, ou seja, é necessário que, após regular contraditório do exequente e executado, o magistrado trate separadamente a tutela executiva por meio de medidas atípicas da tutela sancionatória processual pelo comportamento ímprobo.
A primeira é destinada a obter a satisfação do crédito exequendo, valendo-se agora do apoio (reforço) de medidas executivas atípicas que devem ser, em linguajar comum, proporcionais, razoáveis, adequadas e necessárias ao fim colimado tal como determina o inciso IV do art. 139 do CPC e como tem sido corretamente delineado pelo STJ.
Já a segunda, tutela sancionatória pelos atos de improbidade processual, também com o regular contraditório, é preciso que o magistrado aplique ao caso concreto a sanção processual típica para o caso de haver a confirmação da conduta praticada pelo referido sujeito processual. A advertência prévia diante dos indícios pode ser um bom começo.
É importante que o indício de ocultação do patrimônio não baralhe o procedimento executivo com o procedimento sancionatório. O ônus argumentativo do magistrado em uma e em outra hipótese é completamente diferente, e, também distintas são as funções das consequências aplicadas. O indício de ocultação pode ser gatilho para a concessão de medidas atípicas de execução, mas é apenas o ponto de partida para que se dê início ao procedimento que visa o reconhecimento do ato atentatório à dignidade da justiça que culmina com a aplicação da sanção (típica) prevista no ordenamento jurídico processual. Frise-se que a fundamentação do magistrado é essencial para distinguir as situações jurídicas.
Apreensão de CNH e retenção de passaporte podem até ser medidas atípicas da execução, mas não podem funcionar como medidas sancionatórias porque não há previsão legal para a aplicação de sanções processuais atípicas. É preciso ter todo cuidado.
Nunca é demais lembrar que as sanções por improbidade processual são sempre punitivas de uma conduta, indesejada, que já foi realizada e assim comprovada no bojo dos autos. Já a medida executiva atípica coercitiva pressupõe justamente a realização futura de uma conduta, servindo de estímulo e pressão para o executado. A temporariedade é aspecto que serve para distingui-las. Pune-se o que já foi feito e se promove a coerção para um fazer futuro, lembrando que nenhuma coerção se protrai no tempo, ou seja, se não realizada a conduta desejada para o qual o executado sofreu a pressão, então em algum momento – ou desde sempre – ela não exerceu o tal papel coercitivo. O problema da (falta de) coerção pode estar na inadequação da medida eleita, como por exemplo, reter o passaporte de quem não pretende viajar para o exterior, ou apreender a CNH de quem não tem veículo etc. Para ser uma medida adequada é preciso conhecer o que realmente é significativo para o executado, o que realmente lhe importa. É preciso ser cirúrgico na escolha da medida atípica. Recordo-me de um executado que não tinha nada em seu nome, alegava no processo a falta de patrimônio para responder pela dívida, mas era o “administrador” de várias fazendas de gado. A medida atípica de proibição de realizar atos de administração de bens de outrem por alguém que não conseguiu administrar seu próprio patrimônio é medida adequada para que o executado desocultasse o patrimônio escondido em nome de terceiros desconhecidos.
Enfim, em meu sentir, a escolha da subsidiariedade como critério para aplicação das medidas executivas atípicas revela uma nítida e legítima preocupação do STJ com excessos e vulgarização indevida do artigo 139, IV do CPC. Não defendemos a subsidiariedade - no sentido de que as atípicas só podem ser deflagradas depois de inefetivas as medidas típicas – mas reconhecemos que para que o magistrado decida pela medida atípica executiva antes mesmo da medida típica ter sido tentada é preciso que tenha elementos concretos de que os métodos executivos típicos não serão úteis, sendo, por isso mesmo, bastante denso o ônus argumentativo para afastamento da tipicidade que, como o nome mesmo já diz, é o trajeto normal a seguir.
Certamente que em execuções fundadas em título executivo judicial (cumprimento de sentença) esses elementos concretos são bem mais plausíveis de serem identificados do que na execução fundada em título extrajudicial (processo de execução), pois, o contraditório necessário e prévio à formação do título executivo naturalmente revelará dados que justifiquem a adoção preferencial das medidas atípicas em relação as típicas. Já o contraditório eventual e posterior à formação do título acentua muito a abstração que marca o título executivo extrajudicial sendo difícil imaginar que desde o juízo de admissibilidade do processo de execução já existam elementos concretos que justifiquem iniciar o procedimento com medidas atípicas sem esgotamento das típicas.
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