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Divórcio, separação e reconhecimento de filiação com efeito ex tunc: retroatividade ou retrocesso?

Não enxergamos qualquer motivo para corroborar um fato doutrinariamente inconteste por meio de uma reforma na legislação em vigor.

16/1/2020

Com vistas a contribuir para o “aperfeiçoamento do ordenamento jurídico pátrio”1, apresentou-se à Câmara dos Deputados um projeto de lei que busca atribuir efeito retroativo às decisões judiciais que decretarem a separação, o divórcio, o restabelecimento da sociedade conjugal e o reconhecimento de filiação. A eficácia do decisum passaria a retroagir, nos três primeiros casos, à data em que ação houvesse sido ajuizada, e no último (reconhecimento de filiação), à data do nascimento do filho2. O relator do projeto, deputado Pompeo Mattos (PDT-RS), deu parecer favorável à aprovação do texto, argumentando que, “a proposta busca preservar direitos e patrimônios de dilapidações ou ocultações mediante transmissão de propriedade ou titularidade de bens ou direitos para que não sejam partilhados ou deixados como herança”.

Por mais nobres que tenham sido as intenções do relator, parece-nos desarrazoado imputar efeito retroativo à decisão desconstitutiva do liame que prende o casal, quer sob o aspecto da dissolução da sociedade conjugal (separação), quer sob o ângulo do desfazimento do vínculo matrimonial (divórcio).

Na tradição jurídica nacional, a separação judicial apenas põe termo a sociedade conjugal (CC, art. 1.571, III); de modo que o casamento válido só se dissolve com a morte de um dos cônjuges ou em razão de divórcio (CC, art. 1.571, §1º). O casamento civil estabelece “comunhão plena de vida”, nos termos do art. 1.511 do CC. A esta comunhão plena de vida pode seguir também uma comunhão patrimonial mais ou menos ampla, a depender da vontade dos cônjuges ou de certas prescrições legais. Assim, a comunhão patrimonial sob o regime da comunhão parcial ou da comunhão universal tem por causa o casamento.

Com efeito, considerar marido e mulher como se separados ou divorciados fossem desde o dia em que a ação foi proposta, e não a partir da sentença desconstitutiva, pode acarretar, na prática, sérias restrições a eventuais direitos que tenham sido efetivamente incorporados ao patrimônio de cada um deles durante a tramitação processual. Basta figurar a hipótese do cônjuge que, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, e ainda convivendo maritalmente com o outro consorte, vem a promover, na surdina, o ingresso de uma ação de divórcio litigioso, e logo em seguida à distribuição do feito, procede à compra de um imóvel de vultoso valor. Diante da hipótese, cabe-nos perquirir: seria justo, no caso, denegar a meação ao cônjuge preterido, sob o (pseudo) argumento de que, à época da celebração do negócio, o autor da ação já se encontrava divorciado, quando, ipso facto, efetivamente não estava? Queremos acreditar que não.

Por outro lado, o que dizer acerca da atribuição do efeito ex tunc à decisão restabelecedora da sociedade conjugal? Certamente o relator do projeto não revelou, neste particular, qualquer preocupação com a tutela dos terceiros de boa-fé. De acordo com os ensinamentos de Pontes de Miranda: “O patrimônio comum ou comunhão de patrimônio deixa de existir se a relação jurídica, de que se originou, cessa”.3 É em razão disto que a separação judicial “põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens” (CC, art. 1.576). Estabelecem-se então dois patrimônios autônomos após a conclusão da partilha dos bens, o que enseja a cessação da responsabilidade de um cônjuge em relação as dívidas do outro, conforme prescreve o art. 1.671 do Código Civil: “Extinta a comunhão, e efetuada a divisão do ativo e do passivo, cessará a responsabilidade de cada um dos cônjuges para com os credores do outro”.

Se assim o é, tanto o marido como a esposa, ainda que tenham consumado o matrimônio pelo regime da comunhão universal, ficam livres, a partir da separação, para alienar os imóveis que acaso tenham sido adquiridos durante o estado de separados. Pois bem, a se considerar que um terceiro venha a adquirir o domínio de um desses imóveis, através de negócio jurídico oneroso devidamente registrado (compra e venda, permuta ou dação em pagamento), e sem a vênia conjugal – que, no caso, se fazia dispensável –, existiria todo o risco de que, no futuro, a alienação viesse a se tornar ineficaz por uma simples “recaída” entre o casal.

Bastaria que marido e mulher resolvessem se reconciliar e obtivessem, judicialmente, o restabelecimento da sociedade conjugal através de decisão homologatória com efeito ex tunc. É como se, à época da celebração do negócio, o casal, que se encontrava separado, já estivesse reconciliado, convivendo em perfeita harmonia conjugal. E isto, em detrimento dos direitos adquiridos pelos terceiros de boa-fé.

É patente a ilogicidade, e mesmo a injustiça, da solução. Ora, considerar que o restabelecimento da sociedade conjugal implica no restabelecimento pleno da comunhão patrimonial em relação a todos os bens dos cônjuges implicaria em violação à regra do art. 1.671 do Código Civil. É por isto que os tribunais entendem que a sentença de restabelecimento da sociedade conjugal não é dotada de eficácia ex tunc: “A reconciliação de casal separado (artigo 36, parágrafo único, da lei 6.515/77), realiza-se por sentença homologatória de efeito ex nunc, porque a retroação implica na supressão da ressalva do direito de terceiros (TJ/SP - AI 250.419 - 4/6 - Rel. Des. Ênio Zuliani, j. em 15/10/02).”

Ademais, deve-se ter em mira que o restabelecimento também não pode prejudicar os efeitos da decisão que homologou a partilha dos bens, que já se encontram acobertadas sobre o manto da coisa julgada: “O restabelecimento da sociedade conjugal não tem o condão de tornar ineficaz a homologação da partilha feita em sentença de separação judicial, mormente se esta não possui qualquer vício que enseje nulidade” (TJ/MG - Apelação Cível AC 10079110294638002 MG (TJ-MG), j. 08 de outubro de 2013, DJMG 16/10/13).

Já no tocante ao reconhecimento de filiação com eficácia retroativa à data do nascimento, é preciso não olvidar o caráter declaratório da decisão judicial que certifica a paternidade. Essa decisão é, antes de tudo, fruto da constatação, pelo juiz, de que a paternidade existe e que foi constituída desde o momento em que a criança veio à luz. E, por se tratar de sentença declaratória, o efeito natural que se espera é, exatamente, o efeito ex tunc, como sói ocorrer com qualquer sentença que se limita a declarar uma situação preexistente4.

Desnecessária, nesse ponto, a inovação sugerida pelo projeto. Não enxergamos qualquer motivo para corroborar um fato doutrinariamente inconteste por meio de uma reforma na legislação em vigor. É preciso, antes de tudo, conter o ímpeto legiferante dos nossos parlamentares, que pensam inovar, quando na verdade estão repetindo velhas e desgastadas lições. Nesse sucinto esboço que fizemos, limitamo-nos a fazer algumas breves reflexões acerca do projeto em análise. Talvez um estudo de maior fôlego consiga detectar outros aspectos não abordados, que acaso evidenciem pontos positivos do PL. Por ora, manifestamo-nos contrariamente à sua aprovação.

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1 Conforme consta da justificativa do projeto de lei.

2 PROJETO DE LEI Nº , DE 2019 Acresce dispositivo à Lei no13.105, de 16 de março de 2015-Código de Processo Civil. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. Esta Lei acresce dispositivo à Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, para dispor sobre retroação de efeitos de sentenças. Art. 2º. A Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 1.059-A: “Art. 1.059-A. Retroagirão as sentenças: a) que decretarem o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal à data de propositura da ação; b) que declararem ou reconhecerem a filiação à data do nascimento do filho.” Art. 3º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, parte geral – Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000, p. 436.

4 Consulte-se, a respeito, a brilhante monografia de TORQUATO CASTRO, Ação Declaratória, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1942.

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*Mario Henrique Holanda Godoy é mestrando em Direito pela UFPE, professor de cursos de pós-graduação, membro da ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões e advogado.

*Venceslau Tavares Costa Filho é doutor em Direito pela UFPE, professor da UPE e da UFPE, Vice-presidente da ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões-PE e advogado.

 
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