1 – Introdução
Com maior frequência, lemos em jornais e revistas que homens e mulheres realizam a cirurgia de transgenitalização no Brasil.1 Popularmente conhecida como cirurgia de mudança de sexo, o procedimento cirúrgico tem “o objetivo de adequar as características físicas e dos órgãos genitais da pessoa transgênero, de forma que esta pessoa possa ter o corpo adequado ao que considera adequado para si.”2
Os transexuais, lutaram e ainda lutam por igualdade de direitos e pela inclusão social, ganhando então, uma importante data comemorada no dia 29 de janeiro de cada ano, intitulada como o Dia Nacional da Visibilidade de Transexuais e Travestis. Com isso, os transexuais, empenham-se ainda mais pela simetria de direitos na sociedade.
Sobre o assunto, existem grandes repercussões políticas, sociais, econômicas e sobretudo, jurídicas. Diante disso, quais são os principais direitos elencados na Constituição Federal e nas legislações esparsas do ordenamento jurídico inerentes aos transexuais? Como o Direito Desportivo tem se posicionado sobre os atletas transexuais que buscam participar e disputar competições esportivas profissionais? Existe algum posicionamento do Comitê Olímpico Internacional? Conforme os próximos tópicos, o presente artigo buscará esclarecer melhor as indagações pertinentes ao tema, contudo, antes de iniciarmos, compete-nos, conceituarmos o Direito Desportivo e as suas principais características.
2 – Do Direito Desportivo
Previsto nos artigos 5º, inciso XXVIII, alínea “a”, artigo 24, inciso IX e artigo 217 da Constituição Federal 19883, e regulamentado pela lei 9.615/984, conhecida como (Lei Pelé), o Direito Desportivo é um ramo autônomo do direito, que reúne um conjunto de normas, regras e, ainda, aplica sanções caso as regras vigentes não sejam observadas, possuindo como uma de suas principais características a estruturação do desporto. Em virtude da sua autonomia, o Direito Desportivo, elenca seus princípios5 no art. 2º do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD6.
Para Valed Perry, o Direito desportivo seria o “complexo de normas e regras que regem o desporto no mundo inteiro e cuja inobservância pode acarretar a marginalização total de uma associação nacional do concerto mundial esportivo”.7
Em 2014, Gustavo Lopes Pires de Souza, Caio Medauar, Gustavo Normanton Delbin, Leonardo Andreotti Paulo de Oliveira e Lucas Thadeu de Aguiar Ottoni, conceituaram o Direito Desportivo como:
[...] o Direito Desportivo como conjunto de normas e regras que regem o desporto e cuja inobservância pode acarretar penalizações, constituindo-se de normas escritas ou consuetudinárias que regulam a organização e a prática do desporto e, em geral, de quantas disciplinas e questionamentos jurídicos situam a existência do desporto como fenômeno da vida social.8
Com base nisso, constata-se que o Direito Desportivo possui uma função regulamentadora da prática do desporto.
O legislador brasileiro, por meio do artigo 24, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, decidiu por bem, impor a competência para legislar sobre o desporto à União, Estados e Distrito Federal, verbis:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação; (Grifo nosso).9
Surgindo a Justiça Desportiva, órgão responsável pelo julgamento dos procedimentos relativos às faltas disciplinares e as competições desportivas, o Poder Judiciário, somente poderá apreciar as questões envolvendo os referidos assuntos, caso já tenha ocorrido o esgotamento de todas as instâncias da Justiça Desportiva, nos termos do art. 217, §1º da CF/88.10 Constata-se, então, nos termos do art. 217, §1º da CF/88, um condicionamento ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. (Grifo nosso).
Dessa forma, observa-se o caráter de subsidiariedade do Poder Judiciário para a análise e resolução de conflitos inerentes ao desporto que envolvam causas disciplinares e as competições esportivas.
Álvaro Melo Filho, explica:
Esclareça-se que o §1º do art. 217 da nova Lex Magna não proíbe, mas condiciona a que se esgotem, previamente, as vias da Justiça Desportiva para posterior acesso ao Poder Judiciário. Por sinal, esta “construcción”, da exigência de esgotamento da instância desportivo-administrativa está avalizada em longo e pormenorizado artigo publicado na Revista de Processo (São Paulo, Ed. RT, 1983, vol. 31, p. 56), quando sustenta a imperiosidade para que “viabilize, na prática, aquele permissivo constitucional, adaptando-o aos interesses do desporto, com o que todos ganharão: o Judiciário, que passará a conhecer somente daquelas controvérsias insuperáveis no plano pré-processual, quando a decisão da Justiça Desportiva tenha deixado a desejar, seja porque não reparou a lesão ao direito individual, seja porque ela mesma se configure numa tal lesão, seja porque ultrapassado o prazo para a prolação do decisório; as partes ganharão, porque verão a pendência decidida com maior celeridade e, porque não dizer, com mais discrição, evitando-se o alarde normalmente emprestado às questões desportivas quando chegam às barras do Judiciário; ganhará a Justiça Desportiva, que terá seu prestígio reforçado diante de seus jurisdicionados”.11
Em seguida, convém ressaltarmos o disposto no artigo 217, §2º da CF/8812, que prevê o prazo de 60 dias, a contar de a instauração do processo, para que a Justiça Desportiva profira decisão final. Com isso, não havendo a decisão final no prazo mencionado, as partes poderão litigar por seus direitos no Poder Judiciário.
Numa análise geral sobre todos esses princípios, pode-se notar que foi intenção do legislador salvaguardar a celeridade na prestação jurisdicional e valorizar a oralidade, concentrando os atos em audiência – depoimento pessoal, produção de provas, apresentação oral da defesa e julgamento – sem, contudo, deixar de garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório.13
Concluímos, então, que a Justiça Desportiva, além de ser o órgão especializado e responsável pelas causas que envolvam o desporto, busca também, em virtude dos seus princípios, trazer maior celeridade para os julgamentos dos atos que ocorram durante as competições, com o condão de solucioná-los antes mesmo do fim do campeonato, torneio, prova ou equivalente.
- Para ler o artigo na íntegra clique aqui
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1 DA REDAÇÃO. Número de cirurgias para mudança de sexo aumenta seis vezes no Brasil. Claudia, 03 de out. de 2018. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 13 out. de 2019.
2 Como é feita a cirurgia de mudança de gênero. Tua Saúde, 20 de nov. de 2018. Disponível em: <_https3a_ _www.tuasaude.com2f_cirurgia-de-transgenitalizacao2f_="">. Acesso em: 28 de dez. de 2019.
3 BRASIL, 1988, [s.p].
4 BRASIL, 1988, [s.p].
5 Art. 2º A interpretação e aplicação deste Código observará os seguintes princípios, sem prejuízo de outros: (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009). I - ampla defesa; II - celeridade; III - contraditório; IV - economia processual; V - impessoalidade; VI - independência; VII - legalidade; VIII - moralidade; IX - motivação; X - oficialidade; XI - oralidade; XII - proporcionalidade; XIII - publicidade; XIV - razoabilidade; XV - devido processo legal; (AC). XVI - tipicidade desportiva; (AC). XVII - prevalência, continuidade e estabilidade das competições (pro competitione); (AC). XVIII - espírito desportivo (fair play). (AC).
6 CÓDIGO BRASILEIRO DE JUSTIÇA DESPORTIVA. STJD, 2019. Disponível em: <_https3a_ _conteudo.cbf.com.br2f_cdn2f_2015072f_20150709151309_0.pdf="">. Acesso em: 28 de dez. de 2019.
7 PERRY, Valed. Direito desportivo: temas. Rio de Janeiro: CBF, 1981. p. 81
8 SOUZA, Gustavo. et al. Direito Desportivo. Belo Horizonte: Arraes Editora Ltda, 2014, p. 4.
9 BRASIL, 1988, [s.p].
10 SOUZA, Gustavo. et al. Direito Desportivo. Belo Horizonte: Arraes Editora Ltda, 2014, p. 29.
11 MELO FILHO, Álvaro. Desporto Constitucionalizado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n.101, 1989, p.230.
12 § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
13 SOUZA, Gustavo. et al. Direito Desportivo. Belo Horizonte: Arraes Editora Ltda, 2014, p. 33.
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*Bruno Meneses Alves Faria é advogado, sócio proprietário do escritório Milagres Meneses Sociedade de Advogados, especialista em Direito Privado, Direito do Trabalho e professor universitário.
*Douglas Sanguinete Ribeiro é bacharelando em Direito e colaborador no escritório Milagres Meneses Sociedade de Advogados.