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O pacote “anticrime” e seus impactos na repressão de fraudes internas

Pela atual configuração da lei, tendo as autoridades tomado conhecimento do ocorrido, a investigação e responsabilização criminal era realizada de ofício, independentemente da vontade da vítima.

9/1/2020

A lei 13.964/19 deve trazer ao menos dois impactos positivos no tratamento jurídico dado a fraudes internas cometidas em prejuízo de empresas.

São eles, em síntese: (i) a transformação do crime de estelionato em ação penal pública condicionada à representação e (ii) a obrigatoriedade de informar a vítima sobre o desfecho da investigação e a faculdade legal que ela se manifeste contrariamente aos motivos do arquivamento.

As fraudes internas, resumidamente, são crimes patrimoniais praticados em prejuízo do patrimônio da entidade por empregados ou agentes/intermediários, por vezes em concurso com terceiros externos, valendo-se de sua posição privilegiada dentro da empresa ou de sua relação comercial com ela.

O tema é de relevo: em pesquisa relativamente recente, a Kroll apurou junto a altos executivos de empresas nacionais e estrangeiras com operação no Brasil que 68% das companhias constataram processos internos fraudulentos e que 94% delas se consideravam expostas a fraudes1.

Além disso, 66% dos entrevistados reportaram perdas de 1% a 3% no caixa em razão de fraudes internas, sem prejuízos de imagem. Confirmou-se, ainda, que os grandes responsáveis pela prática de fraudes internas eram os próprios funcionários ou agentes/intermediários da companhia.

Destaca-se, ainda, a recém divulgada pesquisa do Instituto de Pesquisa de Risco Comportamental, que constatou que: (i) 46% dos profissionais submetidos a teste de integridade possuem tendência a sucumbir a desvios ou não denunciar colegas; (ii) 48% manipulariam ou aceitariam a manipulação de relatórios de despesas pagos por companhias com intuito de ganhar mais2.

As fraudes internas são, em muitos casos, categorizadas pelo direito penal como formas de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal (“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”).

É o caso, por exemplo, do funcionário que, visando desviar recursos da companhia, simula uma despesa da entidade e promove a aprovação de seu pagamento por expedientes enganosos.

O primeiro impacto do “pacote anticrime” vem na transformação da natureza jurídica da ação penal do estelionato. Ela passou de ação penal pública incondicionada para ação penal pública condicionada à representação (novo §5º do art. 171 do Código Penal).

Pela atual configuração da lei, tendo as autoridades tomado conhecimento do ocorrido, a investigação e responsabilização criminal era realizada de ofício, independentemente da vontade da vítima.

Pela lei 13.964/19, contudo, o Estado deve aguardar a concordância da vítima para que investigue e responsabilize o infrator. Foram feitas apenas quatro exceções: quando a vítima for a administração pública; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos ou incapaz.

A primeira alteração é positiva por dois motivos.

Por um lado, ela criará incentivos para que as empresas e potenciais investigados busquem soluções consensuais para ressarcimento do prejuízo sofrido antes de se adotar a solução sem volta de representar pela investigação criminal.

Pela lei anterior, quando a comunicação às autoridades era realizada, não havia incentivo para que o potencial criminoso procurasse negociar a devolução do proveito do crime, pois inexistia a possibilidade de a vítima obstar o início do procedimento criminal.

A investigação criminal, assim, deixará de ser a solução dada de início pelo sistema, para ser uma alternativa que deve ser aproveitada pelas partes para encerrarem o assunto sem intervenção estatal3.

Por outro lado, a alteração retira a obrigatoriedade de se investigar e punir condutas que, muitas vezes, não possuíam relevo econômico ou social necessário para se acionar a tutela penal do Estado e que podem ser equalizadas no âmbito particular.

O segundo impacto da lei 13.964/19 está na criação de mecanismos que facilitam e conferem maior participação à vítima em investigações de seu interesse.

Com efeito, a nova lei alterou o art. 28 do Código de Processo Penal para tornar obrigatória a comunicação à vítima do arquivamento de inquérito policial.

A vítima, caso discorde do arquivamento, poderá, no prazo de 30 dias a contar da comunicação, apresentar recurso para que a instância superior do órgão do Ministério Público revise a decisão de arquivamento (§1º).

Também esta alteração é positiva em dois aspectos.

O primeiro, por promover accountability da atividade de investigação do Estado em direção ao cidadão que a provocou, o que imprime transparência e possibilidade de controle da qualidade da atividade de Polícia Judiciária.

O segundo, por permitir que as vítimas – maiores interessadas no desfecho da investigação – possam participar mais ativamente da atividade de persecução desenvolvida pelo Estado.

A legislação, gradualmente, passa a considerar a vítima não apenas uma fonte de prova do crime, mas também uma interessada capaz de articular argumentos e sugerir linhas de investigação para maior efetividade do processo penal.

A providência tem especial importância na apuração de fraudes internas, pois elas dependem do conhecimento de processos e fluxos corporativos que são de domínio da própria empresa e não podem ser conhecidos pelas Autoridades com igual profundidade.

Portanto, a lei 13.964/19 promoveu alterações que devem dar maior racionalidade, transparência e qualidade na investigação e repressão a fraudes internas.

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1 A pesquisa da Kroll foi divulgada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC) e pode ser acessada aqui.

2 A pesquisa foi divulgada no sítio eletrônico do Valor Econômico. Disponível aqui.

3 Em termos de negociação, a representação criminal passará a ser o BATNA (best alternative to a negotiated agrement) da vítima do estelionato.

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*André Ferreira é advogado do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados,especialista em Direito Penal Econômico pela FGV.

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