Uma discussão bastante intensa tem versado sobre a submissão da cláusula compromissória (por meio da qual se institui a arbitragem para o fim da solução de conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis) ao art. 117, caput, da LREF, onde se lê:
Art. 117. Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do Comitê.
Dessa forma, caso se entenda que a cláusula compromissória tem a natureza jurídica de um contrato na modalidade bilateral, o dispositivo acima não se lhe aplica e, portanto, fazendo-se a sua interpretação a contrario senso, o advento de uma falência causaria a resolução automática da cláusula compromissória, em detrimento da solução por arbitragem, seguindo-se os demais efeitos decorrentes da aludida exegese.
A solução da disputa no âmbito da doutrina parece ser simples, à primeira vista, bastando verificar qual é o conceito jurídico de contrato e se a cláusula compromissória a ele se amolda.
Em obra de nossa autoria, na qual tomamos o contrato como o seu objeto precípuo1, valemo-nos da definição desse instituto conforme dada pelo art. 1.321 do C.Civ. Italiano de 1942, como seja:
Il contratto e' l'accordo di due o piu' parti per costituire, regolare o estinguere tra loro un rapporto giuridico patrimoniale.
Conforme exposto na obra citada, segundo entende a doutrina predominante, o conceito acima pode ser apropriado em toda a sua extensão pelo direito brasileiro, na falta no ordenamento pátrio do tratamento legal correspondente.
Observe-se que outros acordos de vontade podem ter o mesmo escopo, faltando-lhes para o fim de caracterizar-se
Busquemos, por sua vez, o conceito de cláusula compromissória, entendendo-a Carlos Alberto Carmona situar-se na seara do negócio jurídico de processual não pertencendo, portanto, ao campo do contrato3. Observe-se, a propósito, que o art. 4º da nossa Lei de Arbitragem teve o cuidado de designar o instituto como uma convenção e não como contrato, existindo diferenças precisas entre uma e outro, apresentando a primeira diversos signficados, interessando-nos aquele que a toma como significando um ajuste ou um acordo entre partes interessadas.
Lembre-se de um princípio essencial de interpretação jurídica no sentido de que a lei não apresenta termos inúteis. Assim sendo, se o termo utilizado foi o de convenção e não o de contrato, deste não trata o art. 4º da Lei de Arbitragem.
Voltando ao ponto central da presente discussão, deveríamos ter em conta que o art. 117 da LREF designa como o seu objeto específico os contratos bilaterais. Mais ainda, ele cuidaria de um aspecto excepcional do tratamento legal dado aos acordos de vontade no âmbito da falência, não se podendo, assim, fazer-se uma interpretação extensiva. Quer dizer, o destino normal (digamos dessa forma) dos acordos de vontade na falência, exceto os contratos bilaterais seria o de sua resolução como efeito automático da sentença declaratória da falência.
Essa interpretação mostra-se coerente com esse instituto?
Observando-se o intuito do art. 43, dispositivo similar na lei anterior de falências (decreto-lei 7.661/45), Waldemar Ferreira destaca o interesse da massa falida como o critério sobre o qual o síndico fundaria a sua decisão de dar sequência ou não aos contratos bilaterais. Como no direito contemporâneo àquele autor não estava consolidada entre nós a teoria geral do contrato tal como a vemos hoje, não teria passado pela cabeça do legislador a ideia de construir um tratamento do tema segundo uma classificação sistemática dos acordos de vontade. Observe-se que no mesmo trecho sob análise Waldemar Ferreira assimila o ato jurídico ao contrato, tendo tomado este como o ato jurídico em sua mais alta compreensão, seguindo no caso lição de Carvalho de Mendonça4.
Desde já se faz um alerta no sentido de que, como intérpretes da lei, não nos é permitida uma exegese anacrônica, que corresponderia aritmeticamente em atualizar institutos da lei anterior para sua aplicação à nova e vice-versa.
Passando para a leitura do mesmo tema na LREF, temos que, no referido art. 117, da mesma forma que na lei anterior, os mesmos contratos bilaterais não se resolvem pela falência, podendo ser cumpridos pelo administrador judicial se essa medida resultar em reduzir ou em evitar o aumento do passivo da massa falida ou se for necessário para a manutenção e preservação dos seus ativos, mediante autorização do Comitê de credores. Por outras palavras, deve o administrador judicial dar segmento a esses contratos no interesse da massa falida, tendo se mantido o critério anterior.
No mesmo sentido dispõe o art. 118 da LREF que pode ser dada sequência aos contratos unilaterais, no interesse da massa.
Por sua vez, os patrimônios de afetação (que, evidentemente, não se colocam no campo do contrato bilateral) constituídos não são atingidos pela decretação da falência, nos termos do inciso IX do art. 119 da LREF, permanecendo válidos e eficazes até o advento do seu termo ou até o cumprimento de sua finalidade. Poder-se-ia indagar se neste passo o interesse da massa é presumido como existente ou se trata de uma escolha casuística do legislador
Quanto ao mandato mercantil, aquele que, segundo o art. 120 da LREF, é destinado à realização de negócios, os seus efeitos cessam com a decretação da falência, devendo o mandatário prestar contas de sua gestão. Considerando-se que esse instituto se encontra classificado como contrato bilateral, então o tratamento e ele dado corresponde a um expresso afastamento dos efeitos do art. 117, resolvido automaticamente pelo advento da falência, não sendo o caso de verificar se o seu prosseguimento poderia ser ou não de interesse da massa falida5.
Outro contrato bilateral taxativamente resolvido pela decretação da falência é o de contas correntes, na forma do art. 121 da LREF, devendo apurar-se o respectivo saldo. Esse contrato muito em uso na atividade mercantil, não foi disciplinado especificamente pelo antigo Código Comercial Brasileiro de 18506, muito menos pelo CC/02, tendo sido deixado mais propriamente para a sua versão bancária (que aqui não examinaremos) que é espécie de um gênero.
Trata-se de um contrato por meio do qual um dos contratantes remete ao outro, ou dele recebe, dinheiro ou valores não destinados a emprego determinado, mas em plena propriedade, com a só condição de ter o equivalente ao dispor do remetente, mas com obrigação do que recebe de creditá-la ao remetente, salvo regulamento por compensação, até a devida concorrência, das remessas respectivas, sobre a massa inteira do crédito e do débito7.
Considerando sua natureza de contrato bilateral, mostra-se aqui mais uma exceção expressa à regra do art. 117 do qual estamos cuidando neste texto.
Caminhemos em seguida para uma tentativa de solução sistemática do tema geral aqui apresentado, que é o do destino das relações jurídicas estabelecidas pelo empresário que veio a ter a sua falência decretada, devendo-se ter em vista os seguintes pontos:
1. A lei não tem um tratamento uniforme para os mesmos casos, relativos aos contratos bilaterais, apresentando-se exceções taxativas;
2. O critério da verificação da presença de interesse da massa para o fim de dar oportunidade ao prosseguimento de contratos também não é uniforme, nem sequer se dando margem a uma avaliação caso a caso;
3. Apesar de ser a LREF relativamente bem posterior no tempo à Lei de Arbitragem, aquela não tratou do tema. Disto resultaria na busca de uma solução pela identificação da natureza da cláusula compromissória que revelou não ser um contrato, mas um negócio jurídico processual.
4. Observe-se que, apesar de tudo, o interesse da massa falida tem sido um critério histórico da nossa legislação falimentar, mesmo que o seu tratamento tenha se dado de forma errática na LREF, mas que está claramente presente em seu art. 75, uma vez que ela visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis da empresa. Este disposto corresponderia ao guarda-chuva sob o qual deveria sempre operar a falência.
Assim sendo colocam-se três interpretações antagônicas:
I – Deve ser mantida uma leitura fechada do art. 117, no sentido de que o legislador cuidou somente dos contratos bilaterais e, como a convenção de arbitragem não é contrato, o advento da falência a resolveria, extinguindo-se essa jurisdição escolhida pelas partes, cujo caso deverá seguir obrigatoriamente para o Judiciário;
II – Tomando-se o critério do interesse da massa falida, o Administrador Judicial poderia entender em favor da validade da cláusula compromissória e da solução por arbitragem, ouvido o Comitê de Credores, o que a faria depender de um elemento externo incerto;
III – Dado o silêncio do legislador, e considerando-se que a Lei de Arbitragem (Lei Especial em relação à LREF instituiu um negócio jurídico processual com a cláusula compromissória, ela seria mantida independentemente de qualquer consideração, dando-se valor ao interesse da massa falida e, consequentemente, dos credores.
O leitor escolha a sua opção por sua conta e risco.
Eu gosto da solução II, mas ela carrega a arbitragem para um futuro incerto. Assim sendo eu fico com a III.
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1 “Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato”, em co-autoria com Rachel Sztajn, 2ª ed., rev., atualiz. e ampl., Ed. Revista dos Tribunais, focando-se especialmente o Cap. 4.
2 In “Curso de Arbitragem nos Termos da Lei nº 9.307/96”, Ed. Atlas, São Paulo, 2014, p. 161.
3 Cf. “Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei nº 9.307/96”, 3ª ed. rev., atualiz. e ampl., Ed. Atlas, São Paulo. 2009, p. 102.
4 In “Tratado de Direito Comercial”, 14º vol., “O Estatuto da Falência e da Concordata”, Ed. Saraiva. São Paulo, pp 511 e segs.
5 Vide a esse respeito nosso “Direito Comercial Vol. 5 – Contratos Empresariais em Espécie (Segundo a sua Função Jurídico-Econômica), em coautoria com Alexandre Demetrius Pereira, Rachel Sztaju, Renato Buranello e Renato Stephan Pelizzaro, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2014, pp. 174 e segs.
6 Objeto de observações apropriadas por Waldemar Ferreira no Vol. 8 do seu Tratado de Direito Comercial, cit., pp. 56 e segs.
7 Cf. Waldemar Ferreira, Tratado, Vol. 8, cit., p. 59, tendo recorrido a definição de Delamarre & Lei Poitvin, “Traité de Droit Commercial”, Paris, 1840, vol. III, p. 421.
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