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A (des)regulamentação do trabalho autônomo pela lei 13467/17 e o perigo do apego à forma

Em um cenário de retomada de investimentos e confiança do mercado a insegurança jurídica de tal modalidade de contrato, pode trazer efeitos revés aos imaginados pelo legislador reformista.

30/12/2019

Introdução

O mundo do trabalho está em constante transformação, sobretudo, a partir da crise do modelo clássico de contratação baseado em um vínculo de trabalho subordinado e não eventual. É verdade que os períodos de grave recessão econômica sugerem desafios aos direitos sociais (PEREIRA, 2017), o exemplo mais recente encontramos na crise financeira iniciada no ano de 2014 e a posterior edição da lei 13.467/17 com o intuito de fomentar a criação de novos postos de trabalho, estimular as contratações no mercado de trabalho, sugerir e regulamentar novas formas de contratação.

Em verdade, o que viu na prática com a edição da novel legislação foi um “sumulocídio” de precedentes vinculantes do Tribunal Superior do Trabalho construídos com base na experiência e estudos do órgão jurisdicional, bem como tentou-se flexibilizar as normas de proteção do contrato de trabalho.

 Ademais, dois anos após a reforma trabalhista, o Brasil enfrenta um exército de reserva de pouco mais de 12,8 milhões de pessoas e um crescente cenário de informalidade (FOLHA, 2019), diante da redução dos postos de trabalho formais. A legislação não cumpriu a política pública almejada pelo governo brasileiro à época de sua edição.

Entre as regulamentações muito criticada dá-se com a regulamentação do trabalho autônomo, historicamente ligada ao trabalho informal e precário, já que muitos dos direitos previstos ao vínculo de trabalho celetistas, não abrangem tal forma de contrato.

O trabalho autônomo pode ser visualizado em duas vertentes: o trabalhador autônomo vinculado a uma empresa conhecidos popularmente como o trabalho “pejota” e o trabalhador independente que dirige seu próprio negócio, os chamados microempreendedores. Essa distinção é mais bem explorada na lei 20/07 (“Ley del Estatuto del Trabajo Autónomo”) editada na Espanha em que foi realizado distinções de direitos entre os trabalhadores autônomos independentes e dependentes, tal marco regulatório deveria ter sido explorado pelo governo brasileiro.

O que analisaremos neste artigo é o contrato de trabalho autônomo firmado entre um trabalhador e uma empresa.  

Até o advento da lei 13.467/17 muito se discutia nos tribunais acerca da validade da contratação de um empregado na condição de autônomo. Entendia-se que essa modalidade de contratação caracterizava fraude às normas trabalhistas, pois na prática as empresas firmavam esse tipo de contrato de trabalho para desonerar os encargos tributários, previdenciários e benefícios que o empregado celetista possui. O que se verificava é que o autônomo laborava com as mesmas características fáticas de um empregado, isto é, com subordinação, sob as ordens e direção da organização. Geralmente, trabalhadores que recebiam salários mais altos eram coagidos a formalizar esse tipo de contrato, em virtude de a base de cálculo para os encargos serem superiores.

Em razão da controvérsia acerca do tema, diante da nova regulamentação fornecida ao instituto com a edição do artigo 442-B da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), faz-se necessário revisitar o tema frente às transformações do mundo do trabalho e os desafios da livre iniciativa no atual cenário de retomada do crescimento econômico, principalmente diante da gama de proteções e barreiras apresentadas pela CLT.

Premissas iniciais do trabalho autônomo: natureza jurídica e conceito

O trabalhador autônomo é definido pela doutrina e jurisprudência como o trabalhador que exerce sua atividade por conta própria e define a forma de organização e realização da atividade. Esse trabalhador autônomo não é subordinado à empresa que contrata os seus serviços.

É comum a doutrina mencionar que essa espécie de trabalho é marcada pela conta e risco do trabalhador, subvertendo o direcionamento clássico do elemento da alteridade.

Em todo o caso, a natureza jurídica do contrato de trabalho autônomo é de prestação de serviços consistente na realização de uma obrigação de favor de outrem que remunera o contratado.

A regulamentação desta relação jurídica é retirada essencialmente do direito privado, sobretudo do Código Civil que no artigo 593 exclui a possibilidade de aplicação das normas trabalhistas a esta relação.

Em que pese a natureza jurídica civil, deve-se esclarecer que o trabalhador autônomo se insere dentro do complexo de relações de trabalho, assim como o empregado celetista, trabalhador avulso, estagiário etc. Portanto, é uma espécie de trabalho.

Existe um elemento jurídico que impede ao menos formalmente que um contrato de trabalho autônomo, seja reconhecido como um contrato celetista. O mesmo ocorre com os contratos de parceria de salões de beleza regulamentado pela lei 13.252/16.

A regulamentação do trabalhador autônomo pela lei 13.467/17

Chega soar desafiador dizer que o trabalho autônomo foi regulamentado pela reforma trabalhista, isto porque a breve disposição inserida no artigo 442-B não é suficiente para pacificar todas as discussões acerca do trabalho autônomo, sobretudo as fronteiras entre esta forma de trabalho e o contrato de trabalho celetista.

O artigo 442-B prevê que “a contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no artigo 3o desta Consolidação”.

Da leitura do artigo vê-se que o legislador optou em descaracterizar a do contrato de trabalho autônomo da relação de emprego tradicional, regulamentado no artigo 3º da CLT em que o empregado pessoa física presta um serviço habitual, mediante o recebimento de salário e sob às ordens de um empregador que assume o risco do negócio.

Pela novel disposição vê-se que as empresas poderão contratar um funcionário autônomo com base em uma previsão da CLT, mas as normas do contrato de trabalho essencialmente serão regulamentadas pelo direito privado. A CLT forneceu a base do instituto, mas não trouxe qualquer delimitação deste contrato, permanecendo o cenário de crescente insegurança jurídica. Pois, o artigo 593 do Código Civil que prevê a figura do contrato de prestação de serviços apenas realça o que o artigo 442-B da CLT prevê.

Deve-se diferenciar que de um lado há o Código Civil que proclama a liberdade de contratar e do outro lado há a CLT constituída direitos tendentes a proteger às relações de trabalho, marcada pela existência de normas cogentes e indisponíveis.

O artigo 442-B indica formalidades, mas não as apresenta, tais requisitos que deveriam ser observados pelos contratantes estavam previstos nos parágrafos vinculados ao caput do artigo inseridos pela MP 808/17, contudo, diante do exaurimento da vigência da Medida Provisória as disposições perderam vigência.

O artigo 442-B busca impedir que as relações de trabalho autônomo sejam afetadas pelo elemento da habitualidade e pessoalidade. Assim, ainda que o trabalhador não envie prepostos em seu lugar, preste serviços à outras empresas e trabalhe de forma contínua, desde que na essência o trabalhador assuma o risco do negócio e não esteja subordinado ao contratante o contrato de trabalho autônomo terá validade. Na prática, a manutenção da alteridade e da subordinação contradizem os demais elementos da não-eventualidade e da pessoalidade.

O conhecimento empírico do mundo do trabalho, revela que nem todas as atividades conseguem se desenvolver através do modelo imaginado pelo legislador reformista.

Ainda, a modificação inserida pela CLT apenas reconhece a figura clássica da relação de trabalho autônoma, mas não resolve todo o problema que a relação jurídica envolve, na prática a segurança jurídica que se busca com essa contratação ficará a cargo dos tribunais que deverão analisar frente aos casos concretos a inexistência dos elementos fáticos e jurídicos do contrato de trabalho celetista para declarar a validade do contrato de trabalho autônomo. Assim ainda que exista a formação de um contrato de autônomo, na prática a relação material poderá infringir a regulamentação almejada pelo artigo 442-B.  Pois, quando não restar demonstrado que o empregado não possuía inteira autonomia, atuando como seu próprio patrão “[...] resta afastado o trabalho autônomo. Ao revés, sobressaindo da realidade fática verificada na instrução processual, todos os elementos caracterizadores do liame empregatício, impõe-se seu reconhecimento, com os consectários legais dele advindos” (TRT-3, 2018, on-line).

Considerando que em todo o caso a segurança que se espera desta forma de contratação dependerá do aval do Judiciário, o cenário de grande insegurança jurídica subsistirá, frente as peculiaridades que cada caso concreto pode revelar.

O princípio protetivo como forma de investigação de fraudes

O que buscamos demonstrar é que não se deve levar à cabo qualquer informação que está escrita no papel, até mesmo porque o papel tudo aceita e o trabalhador na enorme fila do mercado de trabalho se submete à diversos abusos para garantir o recebimento de um “salário”.

Faço esta provocação, pois uma interpretação literal do artigo 442-B da CLT pode criar uma presunção de que a mera apresentação de um contrato de prestação de serviços autônomo é suficiente para comprovar a validade da contratação.

Este cenário poderia ser contrariado caso o legislador tivesse realizado a edição de uma legislação norteada de políticas públicas para favorecer o trabalhador autônomo dependente, sobretudo, garantir direitos sociais mínimos como férias, 13º salário e etc. Vide exemplo da já mencionada Ley del Estatuto del Trabajo Autónomo.

A precarização da mão de obra autônomo no modelo atual, corrobora fraudes e impede que o verdadeiro intento da mão de obra autônoma dependente seja alcançada, qual seja que trabalhadores verdadeiramente livres de subordinação jurídica realizem atividades que demandam expertise à uma empresa.

Mais do que nunca o Poder Judiciário deve se colocar atento à investigação das relações do trabalho, para identificar tentativas de burlar direitos trabalhistas, à luz do princípio da primazia da realidade sob a forma que impõe ao julgador o dever de olhar a relação material no contexto fático e social apresentado para além da formalidade documental, pois como já citamos a novel disposição não solucionou controvérsias, apenas deixou novamente à cargo do julgador o preenchimento de lacunas legislativas.

Contudo, em um cenário de intimidação da litigiosidade frente à imposição da sucumbência prevista no artigo 791-A da CLT o trabalhador enfrenta um outro desafio para exercer o direito fundamental de acesso à justiça ao mesmo tempo em que os fraudadores da legislação trabalhistas encontram um novo estímulo para a continuidade de seus ilícitos contra o trabalhador.

Em um cenário de retomada de investimentos e confiança do mercado a insegurança jurídica de tal modalidade de contrato, pode trazer efeitos revés aos imaginados pelo legislador reformista.

Conclusão

Em que pese a necessidade de trazer atualidade à CLT frente às modificações do mercado de trabalho, a regulamentação do trabalho autônomo pelo artigo 442-B oferece ainda mais insegurança jurídica à solução dos casos concentro, pois, a via legislativa não é suficiente para barrar a judicialização dos casos e as interpretações esparsas geradas pela jurisprudência.

Ademais, considerando o combate dos Tribunais às fraudes de direitos trabalhistas marcados por tentativas de criar relação de trabalho autônomo, diante da criação do instituto da sucumbência no art. 791-A da CLT, o trabalhador encontra o risco de suportar encargos processuais diante de eventual indeferimento parcial ou total de seus pleitos, o que poderá estimular fraudes diante da diminuição do acesso à justiça, o que já foi identificado em números.

Em todo o caso, o julgador deverá enfrentar a materialidade de documentos trazidos aos autos, para realizar um movimento aprofundado de investigação das juncasses do caso concreto, para verificar a presença dos elementos fáticos e jurados do contrato de trabalho celetista, previsto no art. 2º e 3º da CLT.

__________

GOMES, Ana Virgínia Moreira Gomes; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. Desafios para a regulação: trabalho autônomo e o Direito do Trabalho. Revista do Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho, v. 2, p. 79-95, 2016.

PEREIRA, Anna Carolina Migueis Pereira. Crise econômica e direitos sociais: uma análise sobre a constitucionalidade de restrições a direitos prestacionais. Revista Estudos Institucionais – REI, v. 3, p. 1353-1392, 2017.

Taxa de desemprego cai e fica em 12 no segundo trimestre de 2019. FOLHA. Disponível aqui. Acesso em: 20/12/19.

TRT3. Recurso Ordinário: RO 00122930520165030043. Relator: Anemar Pareira Amaral. DJE: 22 nov. 2018. Jusbrasil, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 20/12/19.

VALLEJO, Pilar Rivas. O Estatuto do Trabalho autônomo: uma revolução e regulamentação do trabalho dependente na Espanha. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte. V.46, n.76, p. 155-196, 2007.

__________

*Thiago Gonçalves Coriolano é advogado, sócio do escritório Pires e Coriolanos Advogados, graduado em direito pela Universidade São Judas Tadeu, pós-graduando em direito material e processual do trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e criador e editor do blog “diga Coriolano”.

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